Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), ter saúde é um “estado completo de bem-estar físico, mental e social”, não apenas o estado de ausência de doenças. Nesse contexto, um impressionante número de estudos recentes nas mais diferentes áreas do conhecimento, que vão de arquitetura às áreas da saúde, acumulam evidências científicas de que o contato e, sobretudo, a conexão com a natureza são benéficos à nossa saúde em graus variados. Nos últimos meses, a ausência de muitos desses benefícios tem sido sentida profundamente diante das limitações trazidas pela quarentena.
Embora “caminhada na natureza” e “tomar um ar puro” (antigo tratamento para a tuberculose) desde sempre tenham sido sinônimos de atividades saudáveis, ou para recuperação da saúde, foi apenas nas últimas décadas que evidências científicas começaram a se acumular mostrando que o que era considerado por alguns como uma excentricidade, hoje encontra suporte em experimentos científicos. No início da década de 1980, Roger Ulrich publicou na prestigiada revista Science um estudo pioneiro demonstrando que a natureza é capaz de promover um ambiente restaurador para a saúde humana, mesmo em pacientes cirúrgicos internados. Seus resultados demonstraram que, pessoas internadas em quartos com vista para áreas verdes, tiveram menor tempo de internação e menor requisição de analgésicos em relação aos que tinham vista para construções. Assim surgiam algumas das primeiras referências científicas para algo sabido empiricamente, que a natureza é um ambiente restaurador para a saúde humana.
Ulrich também é reconhecido por sua teoria da recuperação psicofisiológica do estresse (1983), que diz que a influência do ambiente no desencadeamento de emoções positivas possui efeitos com ação restauradora imediata. Desde então, outras teorias foram surgindo e explicitando cada vez mais essa relação benéfica da natureza sobre a saúde. Entre elas estão a Teoria da Restauração da Atenção (Kaplan & Kaplan, 1989) e a Teoria da Biophilia, popularizada por Edward O. Wilson (1989, 2004), segundo a qual temos uma atração e interesse instintivo pela conexão com mundo natural, pelo fato de praticamente toda nossa história evolutiva como espécie ter se desenrolado, como qualquer outro animal, em meio à natureza. Você já parou para pensar por que, mesmo demandando tempo, atenção e custo, faz bem para tanta gente manter plantas dentro e próximo de casa e ter contato com animais domésticos?
A importância de lavar as mãos
Voltando um pouco mais no tempo, encontramos Florence Nightingale, a dama da lâmpada, atualmente considerada a fundadora da enfermagem moderna, trouxe ao mundo a importância da lavagem de mãos no século XIX, que agora se tornou ainda mais necessária. É dela também a Teoria Ambientalista (1859) de cuidado à saúde e que apresenta como foco principal o meio ambiente, interpretado como todas as condições e influências externas que afetam a vida e o desenvolvimento de um organismo, capazes de prevenir, suprimir ou contribuir para a doença e a morte. Nightingale preconizava a importância do ar fresco, iluminação natural, os banhos de sol e o contato com os animais. Ela incorporou o hábito de levar consigo seu jabuti de estimação quando atendia a feridos na guerra da Criméia, após ter observado o quanto a presença do animal diminuía a ansiedade dos soldados feridos. Amante da natureza, tinha ainda como companhia uma coruja, Athena, que resgatara de maus tratos na Grécia.
A admiração pela natureza também sempre foi muito presente em algumas culturas, e se encontra refletida de diversas formas na aguçada percepção oriental sobre a sua importância para saúde. Já no início da década de 1980, o governo japonês promovia o conceito de Shinrin-Yoku (traduzindo literalmente, banho de floresta) como uma forma de medicina preventiva e tratamento.
Na último década, cada vez mais estudos têm se acumulado sobre o papel restaurador do contato com a natureza na saúde humana, tanto física quanto mental. Atualmente, o que sabemos de fato, a partir dos melhores níveis de evidência, que são as revisões sistemáticas e metanálises (lembrando que ausência de evidência não significa ausência de efeito), é que o contato próximo com a natureza é capaz de regular a pressão sanguínea, reduzir a glicose no sangue, regular a atividade endócrina, promover saúde mental, aumentar a imunidade e tratar doenças respiratórias. Mesmo que seu mecanismo fisiológico ainda não esteja bem elucidado, pode influenciar significativamente os níveis de cortisol a curto prazo, de maneira a reduzir o estresse, com a ressalva de que os efeitos esperados do placebo podem desempenhar um papel importante, razão pela qual mais estudos são desejáveis. Além dos banhos de floresta, outras modalidades que levam em conta a experiência sensorial, tais como os jardins restauradores, áreas verdes, e a horticultura também têm apresentado resultados benéficos para o bem-estar e saúde mental, inclusive de crianças e adolescentes. Intervenções pautadas na terapia cognitivo-comportamental em ambiente natural também vêm ganhando espaço. Dois tipos de intervenções baseadas na natureza têm sido apontadas na literatura, as que modificam o ambiente ou o comportamento.
Fora do mundo acadêmico, conceitos como “Transtorno de Déficit de Natureza“ e “Vitamina N”, em referência a “N” de natureza, ambos cunhados por Richard Louv, autor do best seller “A última criança na natureza”, tem auxiliado a disseminar os resultados encontrados pelos pesquisadores, não apenas na mídia, mas resultando também na criação de organizações dedicadas a promover a conexão entre pessoas, especialmente crianças, e o mundo natural. Entre elas a Children & Nature Network e a No Child Left Inside Coalition, ambas nos EUA.
No Brasil, o entendimento das potencialidades ainda é incipiente, pelo fato de sermos o país com a biodiversidade mais rica do mundo. Embora o tema tenha sido colocado em evidência por iniciativas coordenadas pelo Instituto Alana, especialmente com foco em crianças, em levantamento que realizamos sobre a natureza como ambientes restauradores em saúde, constatamos que a produção científica brasileira sobre esta temática é praticamente inexistente. Por aqui também são escassas ações que busquem transpor o conhecimento para a prática.
Encorajados pelos resultados promissores de um estudo sobre o impacto de uma prática de autocuidado mediado pelos sentidos sobre o estresse e autoestima de profissionais de saúde, em que fotografias de natureza despertaram reflexões importantes em um dos grupos da pesquisa, e pela necessidade de validar cientificamente um banco de imagens de natureza para uso clínico, resolvemos dedicar nossa atenção ao tema. Assim, surgiu o projeto interdisciplinar e-Natureza (financiado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq), que hoje integra uma linha de pesquisa do Instituto Israelita de Ensino e Pesquisa Albert Einstein, focada na investigação da interface entre a conexão com a natureza, suas vertentes e a saúde humana. O projeto foi desenvolvido em colaboração com pesquisadores associados do Instituto Butantan, Universidade Federal Tecnológica do Paraná, além de um fotógrafo da National Geographic e atualmente tem evoluído para um programa de pesquisa ao incorporar projetos de natureza em realidade virtual, conexão e engajamento de estudantes de medicina e enfermagem com a natureza, além de um desdobramento voltado à saúde mental relacionado ao COVID-19.
Uma outra pandemia
Na última década, o aumento de estudos sobre a relação benéfica entre natureza e saúde soa bastante paradoxal, uma vez que desde 2008, o Homo sapiens oficialmente tornou-se uma espécie urbana segundo relatório da OMS, que pela primeira vez destacou que mais pessoas ao redor do mundo vivem em áreas urbanas do que em áreas rurais. Outra linha de estudos tem mostrado que esta tendência de sociedades e pessoas, cada vez mais urbanas e distantes do mundo natural, pode impactar, não apenas a saúde das pessoas, mas efeitos na saúde da biosfera como um todo.
O contato com a natureza, especialmente na infância e juventude, tem sido apontado como um dos fatores que melhor explica atitudes positivas em prol da conservação do meio ambiente. Consequentemente, sociedades e pessoas distantes da natureza se preocupam menos com o mundo natural ao seu redor, fenômeno que tem sido investigado por uma série de estudos recentes. Ao comentar sobre os impactos do que chamou de “a extinção da experiência”, o naturalista e conservacionista Robert Pyle alerta que, “a extinção da experiência não está relacionada apenas com perder benefícios pessoais oriundos do contato com a natureza, também implica um ciclo de desafeto com o mundo natural que pode ter consequências desastrosas.”
Este “ciclo de desafeto” é retroalimentado da seguinte forma: pessoas, desconectadas do mundo natural a sua volta, se preocupam menos com a conservação da natureza, o que resulta em menos natureza e, consequentemente, em uma diminuição ainda maior das possibilidades de interação com esta, resultando em uma geração ainda mais desconectada da natureza. Entre as “consequências desastrosas” deste ciclo, que tem girado cada vez mais rápido, está o agravamento de uma outra pandemia que há muito tempo vem acumulando vítimas.
As primeiras vítimas surgiram assim que as populações de uma determinada espécie de primata começaram a se expandir e a colonizar praticamente todo o globo, mas foi a partir do séc. XVI que o ritmo de “contágio” começou a acelerar. Desde então, a biodiversidade tem sucumbido à esta pandemia que, muito além de vitimar indivíduos, extingue espécies. As mortes e extinções são provocadas por um conjunto de ações promovidas por este primata em escala planetária, incluindo destruição de habitats naturais, introdução de espécies exóticas e até mesmo mudanças do clima do planeta. Esta outra pandemia é conhecida como a “sexta extinção” e seu agente causador somos nós, os seres humanos.
Conservacionistas, os enfermeiros e médicos da biodiversidade, tem pesquisado e testado inúmeros tratamentos nas últimas décadas para conter essa pandemia de extinções, mas o quadro geral tem piorado a cada ano. Neste contexto, o “ciclo de desafeto”, alimentado pela “extinção da experiência”, nos mostra que um tratamento eficaz contra a sexta extinção é expor as pessoas à doses constantes de natureza. Este não é um pensamento novo, já em 1968 o conservacionista senegalês Baba Dioum, em discurso durante uma Assembléia Geral da União Internacional para Conservação da Natureza e Recursos Naturais (IUCN), alertou que “No final, conservaremos apenas o que amamos e amaremos apenas o que entendermos.” Ou simplificando ainda mais, sem medo de soar piegas, “quem ama, cuida” e “cuidar”, é o verbo mais utilizado pelos profissionais de saúde. Não por acaso, em algum momento, profissionais da natureza e da saúde acabariam se unindo para defender um objetivo comum: um cuidar ampliado em prol da vida. Para assim inverter o “ciclo de desafeto” e fomentar um “ciclo de conexão” entre pessoas e natureza, em uma forma efetiva de promover saúde e bem-estar para o ser humano e para todas outras espécies.
O entendimento que cuidar da natureza e cuidar da saúde são sinônimos, nos permite expandir a compreensão sobre a conservação da biodiversidade de inúmeras formas. Por exemplo, ressignificar completamente nossa relação com unidades de conservação, parques e até mesmo praças e outras áreas verdes. Por esta ótica, estes espaços devem então ser vistos não apenas como tendo a função de conservar a biodiversidade e/ou áreas de lazer, mas também como ambientes de promoção da saúde. Isto nos traz a compreensão que ao desmatarmos a Amazônia, Cerrado e outros domínios naturais brasileiros, não perdemos apenas biodiversidade, mas também saúde.
Também é preciso ressignificar o incentivo à prática de atividades que aproximem as pessoas da natureza, como trilhas, piqueniques, observação de aves, fotografia de natureza, etc. Que muito além dos limites de atividades de lazer e instrumentos de educação ambiental, devem ser promovidas como práticas de saúde preventiva, situação que inclusive já é realidade no Reino Unido, Japão, Nova Zelândia, Coreia do Sul, entre outros, onde profissionais de saúde estão prescrevendo intervenções baseadas na natureza e há investimento vultoso do governo para pesquisas e incremento das áreas verdes.
Finalmente, vemos escancarada uma janela de oportunidades para ampliar o diálogo interdisciplinar entre os profissionais da área da saúde e os profissionais da natureza de forma a elaborar projetos conjuntos que resultem no conceito de EcoHealth – campo emergente que examina as complexas relações entre seres humanos, animais, meio ambiente e como estas afetam a saúde de cada um destes domínios. Buscamos assim, a promoção de bem-estar que se constitua de fato, em uma autêntica via de mão dupla, com benefícios tanto para a saúde pública como para a conservação da natureza e que ajude a combater esta e outras pandemias.
Sobre os autores
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- Lis Leão é graduada em Enfermagem e Letras. Especialista em Saúde Pública, com doutorado e pós-doutorado em Ciências. É pesquisadora e docente de pós-graduação do Instituto Israelita de Ensino e Pesquisa Albert Einstein. Líder do Grupo de Pesquisa e-Natureza – Estudos Interdisciplinares sobre Conexão com a Natureza, Saúde e Bem-estar (CNPq) que investiga a conexão e intervenções baseadas na natureza para uso clínico em serviços de saúde e promoção de saúde mental. É também fotógrafa de vida selvagem.
- Luciano Lima é biólogo e mestre em Zoologia, é idealizador, cofundador e coordenador técnico de três observatórios de aves brasileiros, incluindo o Observatório de Aves (Instituto Butantan), o primeiro criado no Brasil. Mantidos por meio de parcerias com instituições públicas e/ou privadas, observatórios de aves conduzem monitoramento e pesquisa de biodiversidade a longo prazo e promovem o ato de “passarinhar” como ferramenta e sensibilização e engajamento para conservação da biodiversidade e para o bem estar humano, conectando adultos e crianças com a natureza através das aves.
- Daniela Dal Fabbro é enfermeira, mestranda em Enfermagem desenvolvendo o estudo e-Natureza VR: avaliação do impacto da realidade virtual na percepção da dor, desconforto e bem-estar durante biópsia de mama. É assistente de Pesquisa do Instituto Israelita de Ensino e Pesquisa Albert Einstein.
- Erika Hingst-Zaher é zoóloga, pesquisadora do Instituto Butantan, onde coordena projetos relacionados à pesquisa com biodiversidade. É responsável pelo monitoramento de longo prazo da fauna do parque do Instituto Butantan, envolvendo sua relação com saúde única (one health) e atividades com o público visitante. Participou da elaboração de Planos de Manejo de Parques e Estações Ecológicas no Estado de São Paulo e no Brasil, e acredita que a melhor forma de promover a conservação e manter as áreas naturais é aproximar as pessoas da natureza. Organiza o Avistar Brasil, evento de divulgação científica que junta pesquisadores e o público em geral.
- Karina Patricio é médica, mestre em Ciências Biológicas, doutorado em Saúde Ambiental e pós doc em Saúde Sustentável. É professora da Faculdade de Medicina de Botucatu, UNESP, Depto de Saúde Pública. Coordena a Unidade Especial de Saúde Sustentável do Hospital das Clínicas da FMB e a Comissão de Ética Ambiental da FMB. Vem orientando pesquisas na área de meio ambiente e saúde há vários anos, acreditando que a conexão com a natureza pode ser um medicamento eficaz para a saúde humana.
- Lis Leão é graduada em Enfermagem e Letras. Especialista em Saúde Pública, com doutorado e pós-doutorado em Ciências. É pesquisadora e docente de pós-graduação do Instituto Israelita de Ensino e Pesquisa Albert Einstein. Líder do Grupo de Pesquisa e-Natureza – Estudos Interdisciplinares sobre Conexão com a Natureza, Saúde e Bem-estar (CNPq) que investiga a conexão e intervenções baseadas na natureza para uso clínico em serviços de saúde e promoção de saúde mental. É também fotógrafa de vida selvagem.
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Muito bom.
Muito interessante a reportagem parabéns aos colunistas. Gostaria de ouvir uma roda de conversa de vcs juntos seria um privilégio ouvir pessoas experientes compartilhando essas informações.