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Publicado originalmente por Observatório do Clima
Eu nunca assisti a um jogo de futebol entre lesmas, mas imagino que a dinâmica seja mais ou menos parecida com a das negociações internacionais sobre mudança climática. Os jogadores demoram para chegar até a bola, depois tentam engoli-la, e somente quando não conseguem passam-na para a frente. O campo inteiro fica coberto por uma trilha de muco brilhante, que ofusca os espectadores e os impede de apreciar a real dinâmica da partida. Algumas lesmas deixam mais muco que as outras no gramado. Vez por outra um menino entediado resolve jogar sal em cima do campo, com resultados trágicos. Mas o que importa mesmo no futebol de lesmas é que nunca, em toda a história, ninguém marcou um gol. Eu também nunca vi o livro de regras do futebol de lesma, mas imagino que o objetivo seja exatamente esse.
Nas últimas duas semanas, na reunião da ONU na Alemanha que tem a missão de arredondar a bola quadrada do manual de operação do acordo do clima de Paris, o distinto público pôde apreciar um partidaço de futebol de lesmas. Logo no segundo dia de debates, uma reunião marcada para definir o esquema de trabalho de outra reunião terminou sem acordo (!): em três horas de discussões, os negociadores não produziram nada além de muco. O presidente da reunião, o francês Paul Watkinson, foi obrigado a apitar o fim de jogo, depois de mais de uma hora de prorrogação.
O objeto da reunião era discutir um dos principais entraves à implementação do acordo do clima, a questão dos mercados de carbono. Ela está delineada no artigo 6 do Acordo de Paris, por isso os aficionados chamam essa parte da negociação simplesmente de “artigo 6”. No ano passado, na Polônia, negociadores de 196 países praticamente finalizaram o manual de operação do acordo do clima, ou seja, o conjunto de decisões que tornarão implementáveis as elevadas aspirações inscritas no tratado de 2015. O único grande capítulo desse manual que ficou de fora foi justamente o artigo 6. Como ele regulará a participação do setor privado no esforço de reduzir emissões, dá para imaginar a importância de que suas regras sejam robustas.
Segundo Paris, o mercado de carbono pode acontecer de duas formas. A primeira é por meio de créditos transferidos internacionalmente, vendidos por países que produziram reduções de emissão em determinados setores a países que precisam comprar direitos de poluir para cumprir suas metas nacionais (NDCs). É a versão global do mercado de carbono que já opera há mais de 15 anos na Europa. Isso está previsto no parágrafo 2 do artigo 6 do Acordo de Paris, daí essa parte da negociação ser conhecida simplesmente como “6.2”.
O outro método foi proposto pelo Brasil e pela União Europeia na conferência de Paris: trata-se do Mecanismo de Desenvolvimento Sustentável, ou MDS, delineado no quarto parágrafo do artigo 6 — o que empresta à discussão, você adivinhou, o apodo carinhoso de “6.4”. Pelo MDS, qualquer empresa, país ou prefeitura que tenha realizado uma ação de redução de emissões pode gerar créditos para vender no mercado. A ideia é muito boa, mas realizá-la na prática é um perereco.
O Brasil diz que esses créditos de MDS precisam ser adicionais às NDCs de cada país, o que é uma boa ideia. Dessa forma, o setor privado teria estímulo econômico para acelerar os cortes de emissão além do que seria necessário apenas para cumprir a meta da NDC. No entanto, como definir o que é adicional? Por exemplo, o Brasil tem uma meta de redução de 37% de suas emissões até 2025. Digamos que isso corresponda a 7,625 bilhões de toneladas acumuladas entre 2021 e 2025, período de cumprimento da meta. Em tese, qualquer redução elegível para o MDS precisaria estar além disso. Mas, Dilma Rousseff que me perdoe, como saber se um projeto é adicional à meta antes de o país cumprir a meta?
Para resolver essa questão, foi criada na negociação do Acordo de Paris a figura exótica dos “ajustes correspondentes”. Se eu tenho, digamos, um projeto de reflorestamento com eucalipto para gerar energia e isso me abate, digamos, 100 toneladas de CO2, eu poderia vender essas 100 toneladas no MDS contanto que esse crédito fosse descontado da meta nacional. Dessa forma, não haveria risco de contar o mesmo crédito duas vezes, para o vendedor e o comprador.
O Brasil, porém, nunca topou os “ajustes correspondentes” e, na conferência de Katowice, na Polônia, ficou sozinho em sua posição. O impasse levou a COP24, em Katowice, a terminar dois dias depois do prazo, com o artigo 6 pendurado por cartões amarelos. A conversa seria retomada justamente agora, na reunião deste mês de junho em Bonn, ex-capital da Alemanha Ocidental. E é aqui que as lesmas entram em campo.
A primeira reunião destinada a abordar o tema, na imensa sala Nova York do World Conference Centre de Bonn, deu a dimensão da dificuldade da negociação. Não houve acordo nem mesmo sobre o plano de trabalho dos próximos dias, proposto por Watkinson. A Arábia Saudita, falando em nome do chamado Grupo Like-Minded (a linha-dura dos países em desenvolvimento), denunciou supostas manobras dos países ricos para prejudicar os pobres já na preleção, no que foi contraditada por EUA, Nova Zelândia e Austrália, do chamado Grupo Umbrella (a linha-dura dos países desenvolvidos). O gramado ficou cheio de muco. Sem acordo, a reunião da manhã virou duas à tarde e só na quarta-feira os trabalhos de fato começaram.
Os textos propostos em Bonn sobre o artigo 6, que serão encaminhados para mais considerações técnicas e enfim (quem sabe) uma decisão política na COP25, que acontece no fim deste ano em Santiago do Chile, trazem alguns avanços e muitas controvérsias. Entre os principais avanços estão a proposta do estabelecimento de uma instituição para governar os mercados de carbono e de um mecanismo chamado OMGE (sigla em inglês para “mitigação geral de emissões globais”), uma espécie de taxa imposta aos compradores de créditos de carbono de forma a aumentar a ambição das reduções praticadas. Pelo OMGE, moça bonita paga, mas não leva: um crédito comprado no mercado vale menos do que o número de toneladas de carbono que sua atividade geradora reduziu, de forma que, se eu sou um poluidor e quero direito de emitir 100 toneladas, terei de comprar, digamos, 120 certificados em vez de 100, como ocorre hoje. Esta é uma maneira que as pequenas ilhas, os países mais vulneráveis à mudança do clima, encontraram para evitar que o mercado de carbono se descole demais daquela que é sua razão de existir: reduzir emissões e mitigar o aquecimento da Terra.
A principal controvérsia diz respeito ao debate central do futebol de lesmas, que em 25 anos de negociações nunca foi resolvido: a diferenciação entre países desenvolvidos e países em desenvolvimento. Os países ricos exigem compromissos dos emergentes, ao passo em que não querem nem botar mais dinheiro para implementar esses compromissos, nem aumentar a própria ambição na proporção de sua responsabilidade. Os emergentes, por sua vez, cobram ambição e dinheiro dos ricos, mas não querem escrutínio sobre suas ações. Em resumo, ambos os times de moluscos tentam engolir a bola.
No caso do artigo 6, uma das principais cisões se verifica justamente entre Brasil e União Europeia. O Brasil quer regras mais estritas para o 6.2, mas não quer ser escrutinado pelo que fizer no 6.4, invocando nas entrelinhas seu status de “país-em-desenvolvimento-que-já-faz-muito-e-não-precisa-prestar- contas”. A mensagem central da delegação brasileira para os outros países parece ser “confiem em mim”, mas nenhum dos delegados de outros países com quem conversei em Bonn conseguiu entender o que garante, na proposta brasileira, que não haverá dupla contagem de carbono no MDS (rebatizado em Bonn de “A6.4ER”, como se alguém ainda precisasse complicar mais as coisas). Os europeus, por outro lado, pretendem seguir operando o mercado criado no 6.2 com regras mais frouxas. A arenga não se resolve em Bonn e deverá ser um dos principais pontos de fricção da COP25, em Santiago do Chile.
Os primeiros textos com o resultado das discussões do artigo 6 em Bonn saíram na última terça-feira (25), dia em que os termômetros na ex-capital alemã marcaram 36ºC — 14ºC acima da média histórica ‒ em meio a uma onda de calor apelidada de “El Infierno” e que levou a Alemanha a bater o recorde de temperatura para o mês de junho nesta quarta-feira (quase 39ºC na fronteira com a Polônia). É o terceiro ano consecutivo em que a Europa experimenta uma onda de calor: em 2017 os europeus a “Lúcifer” e os incêndios que mataram dezenas em Portugal; em 2018, ano em que vários recordes de temperatura foram batidos, uma onda de calor prolongada causou incêndios até no Ártico e matou mais de uma centena na Grécia. E o verão de 2019 está apenas começando. O clima parece dizer aos negociadores que não tem tempo de esperar que cada país consiga o máximo que puder na barganha do acordo internacional. Como disse a ativista sueca Greta Thunberg a uma plateia apalermada de líderes globais em Davos no começo do ano, “nossa casa está em chamas”.
A sessão de Bonn havia começado sob gritos de “emergência climática” vindos de cantos tão diferentes quanto o Reino Unido, que chafurda em crise política, o papa Francisco e o Canadá. A expressão é bonita e denota senso de urgência e, até mesmo, medidas excepcionais para dar conta de um problema. Quando um município no Brasil entra em situação de emergência, por exemplo devido a uma enchente ou seca, a prefeitura pode contratar sem licitação, entrar na casa das pessoas para resgatá-las e faz jus a créditos federais especiais para lidar com a crise.
Mas e a “emergência climática”? Países que a decretam podem desligar usinas a carvão sem aviso, suspender exploração de petróleo ou subsídios a combustíveis fósseis? Aparentemente não. À parte chamar atenção para a crise climática ‒ e mandar, como fez o Reino Unido, um projeto de lei para o Parlamento visando zerar emissões líquidas daqui a 35 anos –, nenhuma medida concreta no sentido de cortes radicais e imediatos de emissões foi tomada pelos países que decretaram emergência climática. Ao contrário, o Canadá licenciou um oleoduto no dia seguinte.
O contexto externo não esquentou a cabeça dos negociadores em Bonn nem mesmo quando eles estavam sentindo literalmente na pele os efeitos do fenômeno que se juntaram para combater. O drama antigo das negociações internacionais de clima foi ter virado um fim em si mesmo ‒ um imenso campeonato de futebol de gastrópodes, cujo único gol, o Acordo de Paris, ainda depende de uma lenta revisão do VAR. Porém, se é ruim com elas, sem elas seria muito pior. A Convenção do Clima, embora não seja suficiente, é condição necessária para lidar com um problema global na única escala em que ele pode ser solucionado, a global.
Um consolo, se for possível falar nisso num planeta em chamas, é que a reunião de Bonn marca um ponto de virada importante na negociação de Paris. Agora enfim os países estão brigando sobre detalhes de implementação em vez de discutir sobre se haverá ou não um acordo global e sobre quem precisa tomar providências. Há exatos 18 anos, em junho de 2001, a mesma cidade de Bonn sediou uma inédita prorrogação de uma COP, a COP6-Bis, porque países não conseguiram chegar a um consenso sobre como contabilizar sumidouros de carbono para efeitos do cumprimento de suas metas no então Protocolo de Kyoto, o primeiro acordo do clima. O debate acabou se provando fútil, uma vez que nove meses depois George W. Bush jogou um quilo de sal no gramado ao tirar os EUA de Kyoto ‒ atitude que seria repetida em 2016 por Donald Trump em relação ao Acordo de Paris.
Que estejamos voltando à fase de brigar sobre como fazer em vez de pensar se algo deve ser feito é algo a comemorar. Que tenha levado quase duas décadas para isso, tempo basicamente roubado ao combate substantivo às emissões, é uma das tragédias do clima ‒ pela qual esta geração será cobrada em breve.
*Texto originalmente publicado no blog do Observatório do Clima.
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Não, meu caro! O que dói (profundamente) é ter que ler gente que não sabe sequer escrever nossa língua, usar achismos como argumentos e claro, clichês medíocres do tipo :" A verdade dói, né?"
A verdade dói né fia?
O emprego do OC depende da polêmica em volta da discussão climática. Pra eles, reclamar sempre é garantia da manutenção do emprego
Boring!
Parei de ler em Cláudio Ângelo.