Análises

Estamos comendo golfinhos, tartarugas e aves marinhas?

A pesca acidental e suas consequências são problemas tão graves quanto complexos, mas a atenção que lhes é dada está longe de ser proporcional

Larissa Dalpaz · Mário Tagliari · Samuel Costa ·
23 de junho de 2020 · 4 anos atrás
Corpo de tartaruga enrolado em rede de pesca. Foto: Wikipédia.

O que seu almoço tem a ver com golfinhos, tartarugas e aves marinhas? Se você achou essa pergunta sem sentido, precisamos conversar sobre pesca acidental. Este é um grave problema ambiental, que está contribuindo com a extinção de espécies no Brasil e no mundo. A pesca acidental ou captura acidental (bycatch, em inglês) pode ser definida como espécies que são capturadas de forma não intencional nas pescarias.

Para entendermos melhor este conceito, podemos pensar em um tiro ao alvo. O centro corresponde às “espécies-alvo” – aquelas com interesse econômico e comercial -, enquanto o entorno é repleto de outros animais que podem ser atingidos acidentalmente. Se considerarmos a pesca, há um desafio adicional nos arremessos: já que não vemos o que está no fundo do mar, é como se lançássemos os dardos com olhos vendados.

A pesca acidental é como um tiro ao alvo, onde animais são acidentalmente atingidos por arremessos errados. Fonte: Larissa Dalpaz e Mario Tagliari, 2020.

Por serem pouco seletivos, os artefatos utilizados na pesca acabam capturando muitos outros animais. Entre estes artefatos estão: redes de arrasto de fundo, que são arrastadas pelo fundo do mar para capturar principalmente camarões; redes de emalhe, que ficam esticadas na coluna d’água e capturam animais de passagem; e o espinhel, uma sequência de anzóis (20 a 300) presos em um cabo que permanece esticado em diferentes profundidades. 

Ilustração de diferentes artefatos de pesca: (A) Arrasto de fundo; (B) Redes de emalhe; e (C) Espinhel. Fonte: adaptado de CEPSUL/IBAMA.

A consequente quantidade de animais capturados de forma não intencional é alarmante. Segundo relatório da FAO (Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura), entre 2010 e 2014 foram 9,1 milhões de toneladas de animais capturados por pesca acidental no mundo. Isso equivale a 3.600 piscinas olímpicas cheias de animais que serão descartados – mortos ou feridos. Uma das espécies-alvo com maior taxa de captura acidental associada é o camarão: neste caso, são capturados até 20 quilos de outros animais para cada quilo de camarão comercializado.

A triste realidade da captura acidental: são milhões de animais mortos a cada ano. Fonte: adaptado de Natural Environment Research Council; Food & Agriculture Organization of the United Nations.

De acordo com o mesmo relatório, as regiões que mais contribuem com a captura acidental no mundo estão no Hemisfério Norte: entre a Groenlândia e Noruega (nordeste do Oceano Atlântico); e na extensão costeira do Japão e leste da Rússia (noroeste do Oceano Pacífico). Ambas somam aproximadamente 40% da pesca acidental global. Contudo, é no Atlântico Sul Ocidental – região que inclui a costa brasileira e que se estende até o limite com a Antártica – que se encontra a faixa com a maior taxa de descarte. Isso quer dizer para cada tonelada de pescado comercializado, há uma maior proporção de animais descartados associada.

Distribuição das taxas de descarte pesqueiro no mundo (toneladas de descarte por toneladas de pesca). As estrelas vermelhas indicam as regiões com maior captura acidental absoluta (em toneladas). Fonte: adaptado de Natural Environment Research Council; Food & Agriculture Organization of the United Nations.

Que espécies são vítimas dos arremessos errados?

Os animais capturados de forma acidental incluem diversas espécies: podem ser peixes que não serão consumidos ou com tamanho muito pequeno, além de aves marinhas, tubarões, golfinhos, tartarugas marinhas, baleias. Muitos destes animais ficam presos nas redes e acabam morrendo por estresse ou afogamento.

Uma característica comum entre várias espécies que são capturadas acidentalmente é que estes animais se reproduzem em ritmos lentos. Isto quer dizer que têm poucos filhotes por vez e sua gestação é demorada. Dessa forma, ao terem as populações reduzidas, sua recuperação será lenta. Essas perdas são ainda mais graves quando falamos em espécies ameaçadas e que já têm populações pequenas.

A toninha (Pontoporia blainvillei) é um exemplo de animal que atende a todos esses pré-requisitos preocupantes: está entre os golfinhos mais ameaçados do mundo, as fêmeas têm apenas um filhote a cada dois anos e sua gestação dura 11 meses. Estes golfinhos só existem em águas rasas do Brasil, Argentina e Uruguai e suas populações estão diminuindo em função de várias ameaças. Dentre elas, a pesca acidental figura como principal causa de suas mortes.

Toninhas mortas por estresse, asfixia e afogamento após emalhe em rede de pesca. Foto: Santiago Anguita/PMP-BS/UDESC.
Toninha grávida, morta por afogamento e com marcas de emalhe em rede de pesca. Foto: PMP-BS/Univille.

As capturas desta espécie são alarmantes, pois além da população reduzida, a maioria dos animais que ficam presos em redes é jovem. Isto acontece porque indivíduos jovens ainda não desenvolveram de forma ampla o seu sentido de ecolocalização (capacidade de perceber o ambiente através dos sons e dos ecos produzidos). Como estes animais não conseguem detectar a presença das redes, acabam sendo as principais vítimas. Para a população, perder indivíduos jovens é inestimável: além da redução no número de indivíduos, estes jovens mortos não tiveram a oportunidade de se reproduzirem e deixarem descendentes.

A pesca acidental e suas consequências são problemas tão graves quanto complexos, mas a atenção que lhes é dada está longe de ser proporcional. Ao olhamos para o Brasil, o horizonte de solução parece ainda mais distante, já que sequer temos estatística pesqueira básica. Se quisermos uma mudança promissora nesse tiro ao alvo e a garantia de um oceano com vida, é imprescindível resgatarmos nossa gestão pesqueira da deriva. 

Fonte: Instituto VIVA Verde e Azul.

*Textos produzidos pelos(as) alunos(as) da disciplina “Conservação da Biodiversidade no Antropoceno”, ministrada no Programa de pós-graduação em Ecologia da UFSC, pela Profa. Dra. Michele de Sá Dechoum (UFSC) e pela Dra. Paula Drummond de Castro (Labjor – UNICAMP). 

As opiniões e informações publicadas na área de colunas de ((o))eco são de responsabilidade de seus autores, e não do site. O espaço dos colunistas de ((o))eco busca garantir um debate diverso sobre conservação ambiental.

 

Referências

[1] O título do artigo é uma alusão ao trabalho intitulado “We are eating whales, dolphins et al…” (“Nós estamos comendo baleias, golfinhos et al…”), apresentado durante a Reunião de Trabalho dos Especialistas em Mamíferos Aquáticos da América do Sul, em 2018. A autoria deste trabalho é de Maria Emilia Morete, Daniela Abras, Marina Leite Marques, Rafaela Cristina Faria de Souza e Marcio Motta.

[2] Saiba mais em: www.ted.com/talks/ayana_elizabeth_johnson_and_jennifer_jacquet_will_the_ocean_ever_run_out_of_fish

[3] Relatório da FAO (Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura). Pérez Roda, M.A. (ed.), Gilman, E., Huntington, T., Kennelly, S.J., Suuronen, P., Chaloupka, M. and Medley, P. 2019. A third assessment of global marine fisheries discards. FAO Fisheries and Aquaculture Technical Paper No. 633. Rome, FAO. 78 pp. Disponível em: http://www.fao.org/3/CA2905EN/ca2905en.pdf

[4] Créditos imagens figura 3 : (i) https://bityli.com/YprMG – Raias presas em embarcação; (ii) https://bityli.com/kUlI7 – Albatrozes em linhas; (iii) https://bityli.com/AHea3 – Tartaruga presa em rede; (iv) Getty Images – Tubarão preso em rede.

 

Leia Também 

A história de um mar vazio

Brasil segue brincando de cabra cega com a pesca

 

 

 

  • Larissa Dalpaz

    Larissa Dalpaz é bióloga, doutoranda do Programa de Pós-graduação em Ecologia da UFSC e bolsista “STOP Bycatch” do Instituto ...

  • Mário Tagliari

    Mario Tagliari é biólogo, professor e pesquisador da Faculdade Municipal de Educação e Meio Ambiente (FAMA-PR), doutorando em Ecologia e idealizador do projeto de divulgação científica Ciência no Bar.

  • Samuel Costa

    Samuel Costa é biólogo, Mestre em Ciências Ambientais e Professor do Instituto Federal de Santa Catarina.

Leia também

Reportagens
25 de junho de 2019

Brasil segue brincando de cabra cega com a pesca

Números e impactos da atividade são desconhecidos há uma década. Única política pesqueira foi a imposta pela lista vermelha de espécies ameaçadas. Vigilância eletrônica engatinha

Colunas
17 de março de 2011

A história de um mar vazio

Os peixes e grande parte da megafauna marinha estão ameaçadas de extinção, uma consequência da exploração desde a Idade Média

Salada Verde
8 de novembro de 2024

Projeto lança livro inédito dedicado aos manguezais do Sul do Brasil

O livro Mangues do Sul do Brasil será lançado nesta sexta (8) pelo projeto Raízes da Cooperação, em evento realizado no Parque Estadual da Serra do Tabuleiro, em Palhoça (SC)

Mais de ((o))eco

Deixe uma resposta

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.

Comentários 1

  1. jtruda diz:

    Excelente artigo, parabéns aos autores! Precisamos falar mais dos impactos medonhos da pesca, inclusive da dita "artesanal" que vai extinguir as toninhas e massacra dia e noite espécies ameaçadas e vulneráveis, mas falar disso não é "politicamente correto"…