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Naturalmente polêmico

O Rio Grande do Sul é um estado repleto de histórias polêmicas e conspiratórias: povoados com número incomum de gêmeos, linguiças feitas de carne humana, túneis secretos sob cidades. Mas uma polêmica que beira ao conspiracionismo e atravessa décadas a fio é uma simples divergência toponímica

Leonardo Capeleto ·
19 de julho de 2023 · 1 anos atrás

Uma polêmica é uma “discussão sobre ideias ou pensamentos que causa divergências, bate-boca, contestação”. Uma polêmica pode ou não ser derivada de um fato, de uma verdade. Por vezes pode beirar ou até se sobrepor à uma conspiração – “conluio, maquinação, trama”.

Dizem que conhecimento é saber que um tomate é uma fruta, mas sabedoria é nunca o colocar numa salada de frutas! No século 17 a Igreja Católica decidiu que os castores e capivaras eram peixes. Sendo peixes, o consumo de suas carnes seria permitido durante a Quaresma. Taxonomia à parte, problema solucionado.

O Rio Grande do Sul é um estado repleto de histórias polêmicas e conspiratórias: povoados com número incomum de gêmeos, linguiças feitas de carne humana, túneis secretos sob cidades. Mas uma polêmica que beira ao conspiracionismo e atravessa décadas a fio é uma simples divergência toponímica.

Porto Alegre, a capital do estado, foi fundada nas margens do corpo hídrico denominado “rio ou lago” Guaíba. Guahyba, na língua Guarani, remeteria ao grande encontro de águas que ocorria naquele local: aquela é a foz dos rios Jacuí (rio dos jacus), Caí (rio da mata), Gravataí (rio dos gravatás) e dos Sinos – que se juntam no “Delta do Jacuí”, um arquipélago de ilhas fluviais típico da foz de rios. 

A partir do Delta as águas passam a ser chamadas de “Guaíba”, fluindo até o encontro com a Laguna dos Patos. Esta, também popularmente chamada de Lagoa dos Patos, não tem seu nome em função das aves da família Anatidae, mas de uma etnia indígena dos povos Guarani, conhecida como “Patos”, que vivia nesta região.

A toponímia de “laguna” se deve a sua ligação com o Oceano, próximo de onde fica a cidade de Rio Grande. E a cidade, assim como o estado, foi nomeado pela percepção de que o Rio Jacuí (o rio dos jacus), o Guaíba (do encontro das águas) e a Laguna dos Patos (que não eram aves) se “reúnem ali para formar o Rio Grande do Sul”.

Lá pelos anos 1820 as águas do que hoje chamamos de Guaíba tinham outros nomes, sendo popularmente chamadas de “lagoa de Viamão ou de Porto Alegre, e mais frequentemente o de rio de Porto Alegre”. Ou seja, a discussão não era apenas sobre chamar o corpo hídrico de “rio ou lago”: este tinha até mais de um nome.

Apesar de parecer uma simples polêmica, a classificação de um corpo hídrico já teve efeitos geopolíticos em outros locais: O Mar Cáspio é ao mesmo tempo considerado um “mar interno” e “o maior lago do mundo” – uma disputa que remete aos tempos da União Soviética. Mas essa distinção não é meramente semântica: se suas salobras águas fossem divididas como um “mar”, cada país em suas bordas teria algumas de suas milhas náuticas; se como um “lago”, sua área seria completamente dividida entre os países vizinhos.

A disputa pela denominação geográfica do Lago Guaíba felizmente se limita a embates ecológicos e científicos. Suas margens já são legalmente protegidas, sendo na realidade a poluição urbana um de seus maiores desafios ambientais atuais – o que independe de sua classificação geográfica ou toponímia.

Ao longo dos anos o Guaíba foi classificado como “rio”, “ria”, “estuário”, “lago” e até consideraram o chamar apenas de “Guaíba”, sem qualquer designação, como se fosse um corpo único – talvez para evitar polêmicas. Mas as polêmicas seguem há décadas!

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  • Leonardo Capeleto

    Engenheiro Ambiental, doutor em Ciência do Solo e posdoc na Universidade de São Paulo. Divulgador científico, escreve sobre a ciência e o meio ambiente

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