Análises

A nostalgia como combustível para a ação

O sentimento do porto-alegrense que nunca se banhou nas águas do Guaíba está entre o desgosto e o desejo. Mas olhar para o passado pode trazer propostas para o futuro

Juliana Campos Meurer · Leonardo Capeleto ·
19 de maio de 2023

Apesar de ser a capital mais ao sul do Brasil, Porto Alegre tem verões bastante quentes, com temperaturas que beiram os 40 ºC. Há cinquenta anos, nossos avós poderiam caminhar do centro da cidade até a margem mais próxima para se refrescar nas águas do Lago Guaíba. Mas o tempo ampliou a distância segura destas águas: graças ao constante despejo de esgotos não tratados, hoje em dia é preciso se deslocar por uma hora até o extremo-sul da cidade para nadar no Lago sem correr o risco de contaminação por agentes patogênicos. Assim, para alguns porto-alegrenses parece mais viável investir em um veraneio no litoral do Estado (que fica a apenas duas horas de distância) do que frequentar áreas cada vez mais distantes de suas casas. O sentimento atual, de quem sequer banhou-se nas águas do Guaíba, está entre o desgosto de entrar em águas tão poluídas e o desejo aparentemente inalcançável de ter um corpo hídrico balneável perto de si. 

Não é novidade para os moradores da Região Metropolitana que o Guaíba esteja poluído. Para além dos coliformes fecais provenientes do esgoto, o Lago também está contaminado por farmacêuticos, pesticidas, metais e microplásticos – fora os grandes plásticos, pneus e entulhos em suas margens. Entretanto, é importante ressaltar que a situação já foi ainda pior. A redução do despejo de resíduos industriais e o tratamento parcial do esgoto antes de sua diluição no Guaíba contribuíram para uma relativa melhoria na qualidade de suas águas. Essa transformação mostra que a poluição não é algo inerente aos corpos hídricos, mas sim um elemento passível de mudança. Cabe a nós decidir se seremos os únicos afetados pelas consequências da contaminação das águas ou se nossos filhos e netos também serão. 

Se encararmos a poluição do Lago como algo “inevitável”, fruto do desenvolvimento da cidade, estaremos cometendo um erro. A Praia de Ipanema, como outras localizadas na Zona Sul de Porto Alegre, era definitivamente um ponto turístico entre os anos 1970. Com os resultados pouco animadores dos Relatórios de Balneabilidade e o consequente abandono das praias, a região do bairro homônimo acabou perdendo a atenção – tanto da prefeitura quanto da iniciativa privada. O local chegou a receber novos usos, com áreas esportivas, bancos para contemplação da paisagem e alguns cafés próximos. Entretanto, tornar esse trecho do Guaíba balneável novamente não deveria ser também foco do desenvolvimento da cidade?

A urgência de agir no presente é a possível compensação dos erros do passado para permitirmos um cenário diferente às futuras gerações. A poluição já não parece ser um problema central para a população, mas apenas um pequeno inconveniente. O Rio Grande do Sul foi pioneiro no ambientalismo brasileiro: ativistas como Luiz Henrique Roessler nos anos 1950 e José Lutzenberger nos 1970 já alertavam sobre a contaminação destas águas. A desocupação das praias e a mudança de percepção pública sobre o Guaíba não ocorreu sem que muitas entidades ambientais, como a Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural (Agapan, fundada em 1971), lutassem para reverter a situação. Talvez agora seja a hora de reacender as esperanças daquelas gerações que se perderam em um presente onde estas águas se limitaram à contemplação. 

Os múltiplos usos das águas se perderam no tempo: temos que lutar pelo direito de nadar neste lago e aumentar os lugares para praticar esportes, nos locomover, pescar e conviver com um ambiente limpo e saudável. Não é coerente que um corpo d’água tão grande quanto a capital que está em suas margens tenha seus usos reduzidos apenas a navegação, estampas de cartões postais e diluição de esgotos não tratados – ao mesmo tempo que abastece de água a cidade. Com pressão popular e vontade política, podemos ampliar os usos das águas do Guaíba, que vão desde o fortalecimento das comunidades pesqueiras até a preservação de comunidades biológicas.

É preciso manter viva a memória de uma cidade onde desfrutar diretamente das águas do lago era algo possível. A ocupação do entorno do lago, com competições, festas e shows, nos aproxima do lago e aumenta a relação de pertencimento da população. Se as margens do Guaíba já pertencem à comunidade, o próximo passo é que as suas águas, em seus múltiplos usos, também pertençam. A despoluição do Guaíba não é um sonho impossível. 

As opiniões e informações publicadas nas seções de colunas e análises são de responsabilidade de seus autores e não necessariamente representam a opinião do site ((o))eco. Buscamos nestes espaços garantir um debate diverso e frutífero sobre conservação ambiental.

  • Juliana Campos Meurer

    Graduanda em Ciências Biológicas – Bacharelado pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul desde 2021.

  • Leonardo Capeleto

    Engenheiro Ambiental, doutor em Ciência do Solo e pós-doutorando USPSusten, no Instituto de Geociências (IGc) da Universidade de São Paulo (USP), na área de águas subterrâneas.

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