Nos dias finais de dezembro de 2021, lamentamos o falecimento de dois excepcionais naturalistas contemporâneos. Edward O. Wilson, 92, e Thomas Lovejoy, 80, ambos norte-americanos, combinaram competências diversas, seja como pesquisadores reconhecidos por suas contribuições fundamentais em Ecologia, como cientistas engajados na formação de uma consciência ambiental, ou como agentes de novas políticas de conservação da biodiversidade com repercussão global. Foram celebrados em memoriais e obituários na imprensa brasileira e internacional, periódicos científicos e mídias sociais.
Há convergências e diferenças em suas obras e modos de atuação. Notável especialista em formigas, Wilson estudou sua classificação, biogeografia e evolução. A partir dos estudos de campo sobre esses insetos ele formulou, com Robert MacArthur, uma das teorias mais importantes da Ecologia do século 20, a Teoria de Biogeografia de Ilhas. Depois, passou a considerar outros animais sociais, o que o levou a formular uma síntese geral da socialidade e de sua evolução, sob o nome de Sociobiologia. Em um passo ainda mais ambicioso, Wilson propôs o embasamento biológico do comportamento social humano no livro “Da Natureza Humana”, premiado com o primeiro dos dois prêmios Pulitzer que recebeu. Esse livro, e outros que se seguiram, receberam tanto resenhas entusiásticas como críticas contundentes e ainda suscitam controvérsias. Em 2016, no livro “Half Earth”, Wilson lançou a proposta de conservar metade do planeta como estratégia para salvar a biosfera e manter a estabilidade necessária para nossa própria sobrevivência.
Wilson e Lovejoy foram pioneiros na disseminação do conceito de biodiversidade, tanto no âmbito científico como no público. Wilson organizou reuniões e escreveu livros sobre a importância da natureza viva para o bem-estar humano continuado (como a ideia de “biofilia”). Lovejoy, por sua vez, capitaneou iniciativas mais pragmáticas, entre as quais se destacam as primeiras revisões das relações entre mudanças climáticas e biodiversidade. Nesse texto, no entanto, destacamos a forte ligação que Lovejoy manteve com o Brasil em toda sua carreira, por quase 60 anos. Neste tempo, sedimentou amizades duradouras na comunidade científica brasileira, influenciou o desenvolvimento da ciência ecológica no país e contribuiu para a formação de muitos jovens pesquisadores. A maneira como o fez é atual e relevante para o período crítico que vivemos.
Enquanto Edward Wilson realizou sua carreira na universidade de Harvard, onde se aposentou como professor emérito, Thomas Lovejoy fez uma opção pouco comum para a época. Recém-doutor, em vez de prosseguir em uma carreira acadêmica, tornou-se diretor científico do Fundo Mundial para Natureza (WWF), revolucionando a atuação desta organização mundial com programas de conservação mais proativos. Após o WWF, ocupou cargos diretivos em fundações científicas como a Smithsonian, em organismos internacionais de desenvolvimento como o Banco Mundial e o Banco Interamericano de Desenvolvimento e no governo americano. Em todas essas funções, promoveu agendas amplas de conservação, sempre ancoradas no conhecimento científico existente.
Pouco após ingressar no WWF em 1974, Thomas Lovejoy concebeu o que viria a ser o mais duradouro experimento ecológico realizado até hoje em florestas tropicais. Ainda durante a graduação, Lovejoy estagiou na Amazônia. Posteriormente, em seu doutorado estudou a organização de comunidades de aves em florestas do Pará. Ao ser informado que a legislação brasileira nos anos 1970 exigia a manutenção de uma Reserva Legal não desmatada de 50% nas propriedades na Amazônia, e que a Superintendência da Zona Franca de Manaus (Suframa) iria financiar empreendimentos agropecuários na Zona Franca de Manaus, Lovejoy vislumbrou a oportunidade de realizar um experimento de grande escala para avaliar a persistência de espécies em parcelas de florestas de diferentes tamanhos. Esse experimento tinha como referência a Teoria de Biogeografia de Ilhas de MacArthur e Wilson. Mas, além de testar esta teoria recente em um sistema complexo como a floresta tropical, os resultados deveriam oferecer diretrizes para a conservação da diversidade biológica na Floresta Amazônica. Nesse período, ocorria a aceleração do desmatamento e da ocupação humana sobre a floresta, incentivados como política dos governos militares no Brasil. Lovejoy convenceu o governo estadual, a diretoria da Suframa e o os proprietários das fazendas a realizar os desmatamentos de acordo com um desenho experimental que permitisse avaliar a teoria ecológica. Para viabilizar a empreitada e obter autorização do CNPq, Lovejoy associou-se a pesquisadores do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA) e de universidades brasileiras. Com um convite aberto para colaborações e estudos da maior variedade possível de plantas e animais dentro desse experimento, implementou um em rede de forma pioneira. Hoje, outras iniciativas de pesquisa no Brasil seguem o modelo colaborativo implementado por Lovejoy, possibilitando ampliar o repertório de objetivos e integrar abordagens.
Os muitos resultados obtidos e os percalços para desenvolver um projeto extenso em meio à floresta foram descritos em numerosos livros, artigos e entrevistas. Alguns aspectos, no entanto, merecem destaque. Ao longo do tempo, o projeto consolidou sua relação com o INPA e com pesquisadores de várias instituições brasileiras e estrangeiras e fomentou a formação de gerações de jovens cientistas brasileiros, alguns dos quais viriam a assumir sua gestão de campo nas últimas décadas. Também vale notar que seu nome inicial, “Tamanho Crítico Mínimo de Ecossistemas”, foi depois mudado para “Projeto Dinâmica Biológica de Fragmentos Florestais” (PDBFF), refletindo a ampliação de sua perspectiva teórica, mas também as condições e limitações reais que um projeto desse porte encontra ao ser efetivamente implantado.
Seu vínculo com a Amazônia foi duradouro. Ele seguiu apoiando a divulgação da ciência amazônica como membro do Science Panel for the Amazon que reúne mais de 200 cientistas. Em 2019, juntamente com o cientista brasileiro Carlos Nobre, Lovejoy assinou um editorial na prestigiada revista científica Science alertando para um potencial ponto de não retorno com o avanço do desmatamento e da degradação florestal, indicando que nossas oportunidades de ação estão diminuindo e advogando por uma nova visão para a Amazônia.
Qual o legado de Thomas Lovejoy para a atualidade que vivemos no Brasil? Em primeiro lugar, a ousadia de empreender um experimento de campo de grande porte e que, com muitas modificações e dificuldades, se mantém até hoje. Experimentos de campo de longa duração são indispensáveis para entender ecossistemas complexos e biodiversos, sobretudo em condições ambientais sob mudança. Iniciativas semelhantes são ainda demasiadamente escassas e precariamente sustentadas no Brasil. Em segundo lugar, o PDBFF foi um criadouro de cientistas brasileiros com formação de naturalistas na Amazônia, o que impactou positivamente o desenvolvimento da ciência ecológica brasileira. Além disso, ajudou a fomentar uma cultura de pesquisa colaborativa em rede, o melhor modelo para se realizar “Big Science” em Ecologia.
Thomas Lovejoy também foi pioneiro na interface ciência-política, integrando a atuação em pesquisa científica de campo e em organizações de fomento e de política ambientais. Transitou com igual desenvoltura em reuniões científicas e em gabinetes de governo em todo o mundo, inclusive no Brasil. A sua trajetória é reproduzida hoje por um número crescente de jovens cientistas que, a exemplo de Lovejoy, entendem que ciência, políticas públicas e a compreensão das ações humanas sobre o meio ambiente estão no centro das soluções para os grandes desafios globais.
Sua visão sobre as demandas que enfrentamos foi sintetizada por Hugo Aguilaniu, ao recordar as recomendações recentes de Lovejoy como membro do Conselho Científico do Instituto Serrapilheira: a formação prioritária de mais cientistas nas áreas de Biologia e Ecologia, considerando a diversidade e a representação de jovens de todo o país, e a necessidade desses jovens cientistas aprenderem a se comunicar com tomadores de decisão, incluindo um módulo sobre articulação política em sua formação.
Em sua trajetória no Brasil, Lovejoy deixou contribuições duradouras para o entendimento de nossos ecossistemas, abriu novas frentes na formação de cientistas, colaborando com diversas instituições e universidades, dialogou com a sociedade civil e com governos. Mas, sobretudo, forneceu um exemplo concreto e marcante dos benefícios de investimentos de longa duração em ciência, da necessidade de abordagens experimentais audaciosas para testar teorias e da colaboração generosa para ampliar os impactos científicos.
Em uma entrevista à revista Pesquisa Fapesp em 2015, Lovejoy comentou que para iniciar o PDBFF “a parte mais fácil foi conseguir a aprovação e a colaboração do INPA e da Zona Agropecuária [da Zona Franca]; consegui no primeiro dia”.
Lovejoy alcançou isto ainda em pleno regime militar. Fica a pergunta: esse projeto seria sancionado hoje, em tempos de cortes brutais de recursos para ciência e educação por um governo declaradamente anticientífico e que talvez o visse como ameaça aos interesses predatórios que campeiam na Amazônia?
* Artigo endossado pela Coalizão Ciência e Sociedade, que reúne cientistas de todas as regiões brasileiras.
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