Recentemente O Eco publicou uma coluna, no dia 09 de maio de 2018, elaborada pelo ilustre autor André Ilha, onde estão apontadas séries de considerações a respeito de planos de manejo e, em especial, do Plano de Manejo do Parque Natural Municipal do Penhasco Dois Irmãos – Arquiteto Sérgio Bernardes (nome completo e correto da Unidade de Conservação – PNMPDI), situado na área urbana do município do Rio de Janeiro. Primeiramente devo registrar aqui nossa concordância com muitos pontos elencados pelo autor, a maioria deles comprovando lucidez sobre o tema e apresentando argumentações bastante válidas relacionadas ao planejamento e gestão de áreas de proteção ambiental. Certamente André Ilha conhece a causa, porém, no caso da Unidade de Conservação (UC) em questão, demonstrou não conhecer o caso! Permito-me a alguns esclarecimentos e registros, a título de contribuição, tendo em consideração que a empresa que conduzo foi autora do plano de manejo.
O planejamento de unidades de conservação adotado no país demonstrou alguns equívocos importantes ao longo da história, uma vez que muitos planos de manejo foram estabelecidos prioritariamente como grandes tratados técnico-científicos focados nas diversas especialidades de meio ambiente. Priorizavam, portanto, muito de diagnose e pouco de planejamento propriamente dito, o que gerou dificuldades na aplicabilidade dos planos e, em muitos casos, perdas de eficácia de proteção e usos públicos em muitas unidades de conservação espalhados pelo Brasil. São os chamados “planos de manejo de prateleira”, aqueles que cumprem formalismos na medida em que disponibiliza à UC um plano de manejo conforme determinam leis e normas, porém pouco aplicáveis para a efetiva gestão e monitoramento.
Entre outros motivos, tal cenário derivou e foi consolidado, com muita ênfase, pelos modelos conceituais adotados nos “roteiros metodológicos para elaboração de planos de manejo”, documentos oficiais que orientam a elaboração de planos de manejo. Neles estão estabelecidas diretrizes aos elaboradores, delineando abordagens a realizar, assim como os conceitos, critérios e padrões a serem adotados para a elaboração do diagnóstico, do zoneamento, dos planos de ação e dos planos de monitoramento.
No caso do Rio de Janeiro, o roteiro metodológico possui conteúdo e enfoque similar ao roteiro metodológico nacional, definido pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), porém com algumas diferenças, especialmente no que tange à definição de zonas. Ao contrário do modelo nacional, o roteiro metodológico oficializado pelo Instituto Estadual do Ambiente do Rio de Janeiro (INEA) ainda em vigor, estabelece apenas duas zonas possíveis em unidades de conservação, inclusive citadas por André Ilha em seu artigo, quais sejam: a “zona de preservação” e a “zona de conservação”. Tal configuração, um tanto absurda, dá aos elaboradores de planos uma condição dicotômica e pouco flexível para estabelecer o zoneamento, aliás, por diversas vezes criticada construtivamente por nós, indicando a necessidade de uma retificação na lógica imposta pelo roteiro, especialmente quanto à configuração do zoneamento. No modelo nacional estão dispostas 10 zonas possíveis internas à Unidade de Conservação – além da Zona de Amortecimento, essa externa à UC – aplicáveis conforme atributos e destinação de cada porção territorial.
Na esteira de outras iniciativas no país, inclusive do próprio ICMBio, somente por iniciativa da atual Diretoria de Biodiversidade e Áreas Protegidas do Inea é que se tem promovido ações no afã de ajustar os delineamentos propostos no roteiro de elaboração de planos de manejo, tendo como alvo sua simplificação e centralização no objeto principal que é orientar os gestores e parceiros para implementar ações e monitorar resultados.
De fato a elaboração do Plano de Manejo do PNMPDI seguiu os preceitos do Roteiro Metodológico de Elaboração de Planos de Manejo de Unidades de Conservação de Proteção Integral estabelecido pelo INEA. Assim como delineado nos termos de referência emitidos pela SMAC (atual SECONSERMA), a elaboração do plano de manejo do PNMPDI considerou também diversos procedimentos participativos de maneira a garantir a contribuição da sociedade em sua construção, discussão e consolidação. A participação pública na construção do plano de manejo foi considerada prioridade não só porque é preconizada pelo Roteiro, mas também por constituir-se em fundamento de nossos trabalhos de planejamento territorial. Deu-se não só a partir de diversos eventos e reuniões realizados ao longo do trabalho, mas também por entrevistas e consultas com as comunidades do entorno. Assim, foram envolvidas as comunidades da Chácara do Céu, Leblon e Rocinha, citadas pelo autor do artigo, como também Gávea, Vidigal e Jardim Pernambuco, não citadas, além do envolvimento de usuários do Parque, instituições parceiras atuais e potenciais, bem como de organizações civis diversas, incluindo algumas vinculadas ao montanhismo, dadas as características da UC em questão.
Ressalte-se que no caso do PNMPDI, a SMAC teve sua equipe de direção alterada quase que em sua totalidade, o que provocou turbulência significativa na construção do plano de manejo e interrupção no processo participativo de discussão, por um longo período de tempo. Apesar de nossa argumentação e dos esforços da atual gestora do PNMPDI no sentido de manter o processo conforme inicial, não obteve-se sucesso.
É certo que não realizamos contato com facção criminosa alguma atuantes ou não em qualquer dos territórios citados, nem mesmo com aquelas que “realizam seus negócios” no entorno ou dentro do parque. Não por falta de intenção ou de possibilidades, mas por proibição expressa expedida pela SMAC, além de termos sido proibidos de entrar em certas áreas do próprio Parque, para levantamentos, sem a devida notificação e autorização do Batalhão da PM da UPP do Vidigal, em função de riscos. Muito menos – no escopo dos trabalhos de elaboração do plano de manejo em questão, e em nenhum outro – faríamos contato para informar aos líderes de facções criminosas sobre os atos infracionais que cometem, nem concordamos que esta seja uma ação a ser promovida por gestores da UC, conforme sugere André Ilha, posto tratar-se de questão de segurança pública e não de gestão ambiental ou de uso público do PNMPDI (e qualquer outro parque). Portanto, ressaltamos, agora sim solenemente, que não há ignorância alguma de nossa parte quanto à importância e potenciais contribuições obtidas por quaisquer tipos de usuários de trilhas e demais áreas da UC, a tanto que colhemos relevantes contribuições por parte de usuários das trilhas e vias de acesso nas áreas mais próximas às comunidades da Rocinha, inclusive as que relataram constituir-se em áreas de risco a ser evitada.
E quanto ao zoneamento do PNMPDI? Bem, estamos convictos de que zoneamentos não devem ser pautados por análises e procedimentos estatísticos, portanto, estabelecer comparações quanto ao percentual desta zona em comparação com outra ou com o todo do parque é completamente inútil para o processo de planejamento e gestão. Não zoneamos UC pensando em percentuais! O estabelecimento de zonas e “áreas” – termo de designação para “subzonas” utilizado no roteiro metodológico do INEA – obedeceu a análise dos atributos, dos potenciais e das limitações de cada porção territorial da unidade de conservação, apontados técnica, científica e rigorosamente pelos mais de 10 temas das áreas do meio físico, biológico e antrópico contemplados no estudo para a elaboração do PM, além das contribuições dos eventos participativos (reuniões com comunitários e autoridades municipais e do entorno da UC, Oficinas de Diagnóstico Rápido Participativo e de Planejamento Participativo). Sendo assim, todas as áreas com atributos e potenciais para usos públicos foram destacadas e orientadas para se consolidarem como “Áreas de Visitação” delineadas sobre Zona de Conservação, incluindo acesso aos paredões da face norte do penhasco (área de visitação AV-4). A Zona de Preservação delineada no PNMPDI foi estabelecida em território ainda em processo de recuperação florestal e, mais do que isto, onde não há atrativo notório ou atributo natural digno de justificar usos públicos. Corresponde também à área definida como de maior risco potencial à integridade da população pretensamente usuária que, definitivamente, não é formada apenas por trilheiros e montanhistas. O restante dos acessos às vias de escalada está totalmente fora do Parque e, portanto, não vemos prejuízos aos usos e acessos sabidamente de maior interesse do autor do artigo citado. Observe-se na figura abaixo o zoneamento do PNMPDI.
Discordamos de muitas afirmações que foram registradas no artigo publicado no dia 09.05.2018, nitidamente tecidas a partir de uma visão idealista, desprovida de conhecimento sobre o processo de construção do plano de manejo em questão.
Essencialmente, planos de manejo são documentos técnicos focados em ordenamento territorial e gestão. Considera-se, neste enfoque, que a gestão deve ser programada em conformidade com as capacidades institucionais existentes, dentro de projeções de prazos normalmente considerado de 5 anos, evitando-se a formulação de planos de manejo com base em cenário ideal, porém inexequível. A exequibilidade do plano também é variável em função dos recursos disponíveis e da priorização dos órgãos governamentais para com as UCs. Portanto, há uma dinâmica das organizações, tanto quanto deve haver dinâmica na atualização dos planejamentos estabelecidos, incluindo o zoneamento. No Brasil, assim como em outros locais do mundo, a atualização dos planos de manejo é muito mais fundamentada como um ato jurídico do que de rotina, como deveria ser normal para um instrumento constituído predominantemente para servir de guia à gestão e monitoramento da UC. A dinâmica de atualização do plano deveria ser correspondente à constatação de necessidades mas, infelizmente, não é assim que ocorre!
Mesmo que alguns não aceitem a ideia, o planejamento de unidades de conservação deve considerar visões plurais e multidisciplinares. Não foi diferente no caso do PNMPDI, que envolveu muitos técnicos e especialistas (mais de 20 profissionais, em sua maioria cariocas profundos conhecedores da área), gestores de outras UCs, autoridades e membros de comunidades, colaboradores e líderes de segmentos de diversas áreas de conhecimento. Foram colocados à mesa de análise muitos elementos técnicos, pontos de vista e argumentações importantes, efetivamente consideradas no processo de zoneamento e elaboração dos planos de ação. Se por um lado há aqueles que querem conservar o ambiente pretendendo preservar mais, há outros que estão mais interessados em vias de acesso ao montanhismo e, portanto, relegam a conservação ambiental como elemento secundário. A elaboração do Plano de Manejo do PNMPDI considerou os vários enfoques levantados pelos colaboradores estabelecendo, na medida do possível, uma proposta de equilíbrio sem que isto viesse a constituir o plano como um “documento político apaziguador de interesses”, o que certamente o comprometeria, lembrando que sempre esteve considerado todo o estudo técnico supracitado. Destaque-se, ainda, que os defensores de um zoneamento apenas constituído por Zona de Conservação e 100 % aberto ao uso público ficou longe da unanimidade ou mesmo da maioria.
A falta de visão do plural, do múltiplo e do comum a todos é tóxica à uma sociedade que se propõe à democracia. Portanto, esdrúxulo é o autoritarismo mascarado de alguns, que agem guiados pelo lema “estamos de acordo com tudo, desde que as únicas ideias aceitas sejam as nossas!”. Sorrateiramente, mais se preocupam em defender interesses individuais ou de grupos específicos do que realmente pressionar por soluções para a correta gestão de unidades de conservação. Promovem a divisão em “nós (temos a razão)” e “eles (todos errados)”, polarização esta totalmente contraproducente que não promove mais do que a cizânia.
Inegavelmente, a promoção de uso público em unidades de conservação é ferramenta fundamental para o sucesso da gestão e da proteção ambiental. A lógica da “redoma de vidro” para a proteção de unidades de conservação é retrógrada, todos têm ciência disto há tempos, até mesmo os mais novatos. Porém, é leviano o raciocínio de que “sendo parque, tudo deve ser destinado a usos públicos”. Há que se ter certa parcimônia na aplicação da lógica de destinação de áreas e usos em unidades de conservação, especialmente daquelas definidas como de proteção integral, como é o caso do PNMPDI.
*Coordenador-Geral durante 9 anos do Projeto Proteção da Floresta Atlântica – Paraná (SEMA-PR/IAP) e Consultor Permanente durante 6 anos do Projeto Preservação da Mata Atlântica em Santa Catarina (FATMA-SC), ambos com escopo de implementação e gestão de UC. Já realizou a coordenação geral e elaboração de 25 planos de manejo em diversos estados do Brasil. Foi Coordenador Geral e responsável técnico pela elaboração do Plano de Manejo do PNMPDI.
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O artigo anterior tomou um fact-checking, hein?
Quais foram os consultores cariocas que participaram da elaboração do plano de manejo do PNMPDI?