O Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC) publicou no dia 09 de agosto de 2021 o relatório do Sexto Ciclo de Avaliação – AR6. Neste trabalho imenso, onde cientistas do mundo todo se esforçam para avaliar, descrever e discutir uma quantidade absurda de dados, foram reapresentadas tais conclusões: as mudanças climáticas são iminentes, irreversíveis e a influência humana é inegável. Então, eu lhes pergunto: vocês acham que esta conclusão é óbvia, dúbia ou conspiratória?
Vivemos um período em que, infelizmente, devemos reforçar o óbvio. Fatos se tornam “apenas” uma opinião e a autoverdade indica que o ato de dizer pode valer mais do que o conteúdo que foi dito. Discutir mudanças climáticas, consequentemente, tornou-se um exercício de reforço, seja a nível global, nacional, regional ou local. Assumir publicamente que “mudanças climáticas não existem” em formato de autoverdade é absurdamente fácil, uma vez que os fatos são deixados de lado e as discussões técnicas são substituídas por achismos ou crendices.
Hoje, experiências individuais podem ganhar patamar de “conclusão científica”. Notícias falsas (fake news) e desinformação se espalham como se fossem um vírus. É muito difícil, cansativo, frustrante e árdua a tarefa de reforçar o óbvio sobre as mudanças climáticas. Felizmente, cientistas são resilientes. Foi pensando sobre o efeito regional das mudanças climáticas em uma espécie-chave vegetal fundamental para todo um sistema socioecológico que notamos que é importante, necessário e fundamental continuar reforçando o óbvio.
Mas como? Como parte constituinte da Mata Atlântica existe a Mata de Araucárias ou Floresta Ombrófila Mista. A Araucária (Araucaria angustifolia) é, muito provavelmente, a principal espécie-chave de todo este ecossistema, uma vez que seu famoso pinhão é fundamental para estruturar a biodiversidade que ali ainda existe, desde gralhas, pacas, cutias, aranhas, fungos, insetos, papagaios, veados-catingueiros entre outros. Lembra do “sistema socioecológico”? É porque inúmeras famílias nas áreas rurais no sul e sudeste do Brasil usam, manejam e garantem sua subsistência por meio do comércio do pinhão.
Mas há o óbvio. Devido à exploração madeireira intensiva ao longo do século XX, somado ao processo de urbanização e conversão agrícola da Mata Atlântica, os remanescentes da Mata de Araucárias estão reduzidos a 15% do que já foi um ecossistema com 200 mil km². Atualmente, a Araucária é considerada como “Criticamente Ameaçada” na Lista Vermelha da União Internacional para Conservação da Natureza (IUCN). Cenários considerando as mudanças climáticas indicam um futuro pouco otimista para esta espécie e, consequentemente, para todo ecossistema. Estudos distintos e com métodos diferentes chegaram à mesma conclusão: as mudanças climáticas afetarão muito as populações de Araucária. As áreas climáticas adequadas para espécie até 2100 podem reduzir em até 85%.
E quais medidas podem ser aplicadas para proteger um ecossistema e suas espécies, sejam elas ameaçadas ou não? No Brasil, as Unidades de Conservação são imprescindíveis, uma vez que estas áreas servem para proteger a biodiversidade de ameaças como desmatamento, expansão agrícola/urbana ou caça. No caso da Araucária, os cientistas também têm mostrado que precisamos de mais unidades de conservação. As projeções de distribuição da Araucária, tanto no presente quanto no futuro, apontam que apenas 10% das populações relictuais ocorrem dentro das Unidades de Conservação. Reservas Legais, que são áreas de vegetação nativa dentro de qualquer imóvel rural, podem conter outros 30% dos remanescentes projetados.
Mostramos que distintas categorias das Unidades de Conservação – distribuídas principalmente no sul do Brasil – como os Parques Nacionais de São Joaquim (SC), Aparados da Serra (RS/SC), Serra Geral (RS) e Campos Gerais (PR), as Áreas de Proteção Ambiental da Serra da Francisca (SC) e Serra da Esperança (PR), o Refúgio de Vida Silvestre dos Campos de Palmas (PR), assim como os Parques Nacionais de Itatiaia (MG/RJ) e Serra da Bocaina (MG/RJ/SP), abrigam populações relictuais da Araucária, reiterando a importância dessas Unidades de Conservação. Entretanto, dos mais de 110.ooo km² que calculamos como áreas potenciais de ocorrência da Araucária no presente, apenas 7.500 km² encontram-se dentro de alguma área protegida. Isso representa apenas 7% da sua área de ocorrência devidamente protegida. No futuro, o cenário será pessimista, uma vez que as áreas climáticas favoráveis para a Araucária serão limitadas às maiores altitudes, reduzindo sua área potencial de ocorrência para aproximadamente 12.000 km², onde apenas 1.352 km² (11%) estarão dentro de alguma Unidade de Conservação. Perder populações de Araucária sinaliza a perda de inúmeras interações com distintas espécies. A Araucária como espécie-chave estrutura a biodiversidade da Floresta Ombrófila Mista. Com menos populações dela, toda a floresta perde.
Há algo a ser feito? Sem dúvidas. Primeiro, ainda no nosso trabalho nós buscamos traçar uma medida para avaliar se, teoricamente, os remanescentes das populações de Araucária estariam “conectados” uns com os outros e entre diferentes Unidades de Conservação, tanto no presente quanto no futuro. Felizmente, o atual cenário de distribuição das populações de araucária permite que suas populações relictuais consigam se conectar, principalmente do Rio Grande do Sul até o Paraná, além das manchas de ocorrência na região da Serra da Mantiqueira, como nos municípios de Cunha (SP) e Virgínia (MG), duas das principais cidades que abastecem o estado de São Paulo com as safras anuais de pinhão. Outro aspecto relevante é que com populações potencialmente se conectando na paisagem, a manutenção da variabilidade genética da espécie ocorre, garantindo ainda mais sua resiliência frente a distúrbios, dentro deles as mudanças climáticas. O uso e manejo feito por comunidades tradicionais, somado aos remanescentes protegidos são e serão fundamentais para a espécie.
Lembra da árdua tarefa de reforçar o óbvio? São vários os estudos que têm indicado a vulnerabilidade da Araucária frente às mudanças climáticas. Alguns apontaram a tendência da espécie se isolar nas áreas de maiores altitudes – micro-refúgios. Outros ainda mostraram que as Unidades de Conservação são insuficientes. Ainda temos trabalhos que consideraram que o uso-do-solo: agricultura, estradas, plantações de pínus e eucalipto; reduzem as áreas que seriam adequadas para a Araucária. Nós constatamos que as manchas de remanescentes de populações de Araucária podem ficar ainda mais isoladas. Contudo, reiteramos também a importância das Unidades de Conservação e das comunidades tradicionais que usam e manejam o pinhão. Ainda sugerimos onde e por qual razão novas unidades deveriam ser implementadas.
Como cientistas, devemos reforçar o óbvio, mas talvez o óbvio ainda esteja limitado a um clube seletivo. A cada nova descoberta ou implicação de uma hipótese, avançamos e destacamos ainda mais sobre a necessidade de destinarmos a atenção na conservação desta espécie emblemática que são as Araucárias. Possivelmente, outras pessoas fiquem a par desta realidade e se engajem – ou cobrem – para que medidas sejam tomadas e/ou reavaliadas. No nosso trabalho, que destaca a importância de uma espécie-chave vegetal para um sistema socioecológico no sul e áreas específicas no sudeste do Brasil, foi feito um trabalho imenso. Assim como os estudos mais recentes que chegaram a conclusões semelhantes sobre a vulnerabilidade da Araucária. Vários cientistas do mundo todo também se esforçaram e foram resilientes para avaliar, descrever e discutir uma quantidade absurda de dados. Apenas em uma escala menor, em relação ao relatório do IPCC. Só que eu ainda lhes pergunto: “Caros leitores, vocês acham que esta conclusão é óbvia, dúbia ou conspiratória?”. Pensem com carinho.
REFERÊNCIAS
Todas as referências estão indicadas nos hiperlinks ao longo do texto.
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O Dr. Mário Tagliari é um grande estudioso do assunto e descreve a situação do futuro das nossas araucárias com muita propriedade. Parabéns.