O Sul do Brasil é território de paisagens belíssimas que compõem um mosaico bastante diverso de ecossistemas dos biomas Mata Atlântica, Pampa e relictos do bioma Cerrado. Talvez a paisagem mais conhecida no país e fora dele seja a composição formada pelas Cataratas do Iguaçu e a densa floresta tropical que a cerca. Inclusive, ela foi eleita como uma das sete maravilhas da natureza. Mas, para mim, isso não é tão óbvio. Na minha cabeça as Cataratas do Iguaçu enfrentariam uma disputa acirrada dentro do próprio território brasileiro. Nem mesmo seria a minha paisagem preferida do Sul do Brasil, onde ela teria que disputar esse posto contra a Serra do Mar paranaense e a Serra Geral entre Santa Catarina e Rio Grande do Sul. Mesmo o estuário de Paranaguá-Guaraqueçaba, as praias catarinenses ou a Floresta com Araucária do planalto seriam concorrentes difíceis de enfrentar.
Todas elas têm em comum o fato de serem paisagens grandiosas. Algumas mais conservadas, outras bastante alteradas, como são as praias de Santa Catarina, mas que ainda mantém a sua beleza e causam impacto em quem as observa. Outro aspecto em comum é o fato de todas elas contarem com Unidades de Conservação que prometem conservá-las na sua condição original.
Porém, nem todas as paisagens grandiosas resistiram ao avanço civilizatório. Algumas estão em frangalhos, como papel picado. Talvez a primeira delas que deixará de existir durante o tempo de nossa geração é a paisagem composta pelos campos naturais do Primeiro Planalto do Paraná. Essa região geográfica é limitada a leste pela Serra do Mar, a oeste pela Escarpa Devoniana no início do Segundo Planalto paranaense, ao Norte pelas montanhas do Vale do Ribeira, e ao sul pelas montanhas que bordejam a Serra do Mar catarinense. No cerne desse espaço geográfico foi fundada em 1693 a Vila de Nossa Senhora da Luz dos Pinhais, hoje Curitiba.
Conta a lenda que o cacique Tindiquera percorreu seu vasto território coberto por campos naturais para indicar um lugar adequado para a fixação dos bandeirantes que procuravam ouro. O lugar indicado por ele era chamado de Curitiba, palavra que na língua indígena significa “lugar com muito pinhão”, “pinheiral” ou “pinhal”, dando a entender que a região do centro histórico continha Araucárias em abundância. Certamente isso favoreceu a sua povoação, tanto pela fonte de alimento que é o pinhão, quanto pela madeira para a construção das primeiras casas. Uma escolha óbvia, pois no campo não há árvores e a única fonte de alimento vem da caça.
Com base no que a ciência sabe atualmente e também nos registros históricos, é possível afirmar que a vegetação predominante entre a Floresta Atlântica da borda oeste da Serra do Mar e o centro histórico era o campo natural ou, como passou a ser referido, os Campos de Curitiba. Trata-se de uma vegetação campestre adaptada ao clima subtropical do planalto, sem estação seca definida, o que implica na qualidade de ser uma vegetação herbácea-arbustiva submetida à umidade elevada durante o ano todo. Também, adaptada à ocorrência frequente de geadas e à neve no auge do inverno, o que raramente ocorre nos dias de hoje. Por isso, é uma vegetação que evoluiu para sobreviver a eventos de queima natural, não pelo fogo como no Cerrado, mas pelo frio do congelamento.
Essa característica moldou o campo subtropical para ser uma fênix. Uma vegetação capaz de esconder sua chama vital durante o pesado golpe do inverno, para então ressurgir com toda a força e beleza na primavera, cobrindo as imediações da cidade com cores e delicadeza que só podem ser apreciadas de perto. Isso faz com que o campo pareça feio ou “morto” na época mais fria. Esse aspecto talvez leve a maioria dos curitibanos a pensar que ela é uma vegetação sem valor, ou simplesmente pela ausência de árvores pensem se tratar de uma área desmatada, portanto, já degradada.
Eu percebo que quase nenhum dos mais de 3 milhões de habitantes de Curitiba e região metropolitana sabe qual era a paisagem natural da região onde mora. Vale mencionar que a vegetação campestre cobria aproximadamente metade do território do município. Hoje restam apenas fragmentos desconexos e poucos bem conservados nos municípios vizinhos. O fato é que ao longo do tempo o curitibano perdeu o vínculo com sua paisagem, seu habitat. Parte dessa percepção distorcida tem raízes no que Curitiba criou de melhor, o que pode parecer uma grande contradição.
A “Capital Ecológica” é reconhecida pelo bom planejamento urbano, o qual foi eficiente ao preservar diversas áreas verdes transformadas em parques e praças. A ideia central por traz disso era proteger as margens dos rios e impedir a ocupação irregular desses espaços. Um exemplo é o parque Barigui que abriga a vegetação aluvial ao longo do curso do rio de mesmo nome e um grande remanescente com Araucárias centenárias. Contudo, até o ano de 2015 Curitiba não possuía uma única Unidade de Conservação que abrigasse os Campos de Curitiba. Todos os parques protegiam apenas a floresta. Hoje, a cidade possui um pequeno remanescente de campo na Estação Ecológica Tereza Urban e outro menor ainda dentro do Jardim Botânico Municipal.
A mesma tendência serve para os municípios da região metropolitana. Até hoje não foi criada uma única Unidade de Conservação de proteção integral de tamanho adequado no Primeiro Planalto do Paraná para conservar esse tipo de vegetação. Isso me leva a especular que, provavelmente, os Campos de Curitiba serão o primeiro grande ecossistema do Estado do Paraná a ser extinto. Caro leitor, observe que eu não estou falando de extinção da espécie A ou espécie B, mais sim da extinção de um ecossistema inteiro, de uma paisagem. É obvio que a maioria das espécies ocorrem também em outras regiões campestres do Sul do Brasil. Porém, qual é o impacto genético pelo desaparecimento das populações de todas essas espécies? Mas, para mim, o mais significativo é o impacto moral. Nós, paranaenses, orgulhosos por um dos Estados mais ricos e desenvolvidos do país, moradores de capital ecológica, seremos coniventes com a extinção dessa paisagem, desse ecossistema? Faz sentido um povo que busca o bem estar, dar as costas para uma paisagem que é pura beleza e bem estar?
Esse pensamento me traz a angústia que é nata a quem trabalha com conservação da natureza. Ademais, os campos não estão ameaçados só aqui. As chamadas grasslands estão ameaçadas em todo o planeta, como afirma José Tadeu Arantes (Estudo aponta diretrizes para barrar a degradação acelerada de campos e savanas – ((o))eco (oeco.org.br).
Por outro lado, nos últimos cinco anos eu tenho articulado parcerias com pessoas que estão comprometidas a estudar melhor os Campos de Curitiba e propor ações de conservação. Nos próximos anos iremos publicar trabalhos sobre sua riqueza florística e faunística, bem como uma proposta de método para salvamento da flora que poderá ser adotado em processos de licenciamento ambiental. Afinal, aquela velha máxima de conhecer para proteger faz todo sentido! Os curitibanos não vão apoiar a conservação de uma paisagem que eles nem sequer sabem que existe.
Mas, enfim, quero relatar o que me motivou a escrever esse ensaio.
Recentemente eu visitei uma área com os Campos de Curitiba bem conservada e que havia sido incendiada um ano antes. Era o primeiro dia de sol de outubro após quase um mês de chuva farta no início da primavera. E, como eu imaginava, o campo ressurgiu como uma fênix. Sem dúvida, o mito se encaixa perfeitamente ao que ele é, uma vegetação que evoluiu por milhões de anos para desaparecer ao rigor do inverno e renascer na esperança que a primavera traz.
O campo estava deslumbrante, todo colorido. A cada passo, literalmente, eu me ajoelhava para ver mais de perto as delicadas flores e as fotografava. Assim é o campo, ele te convida ao toque, ao olhar íntimo e ao perfume no ar. De algum modo ele te desarma da tão conhecida percepção antropocêntrica. Então ali eu estava, não como um expectador distante, mas sim em consciência presente, tocando as folhas verdejantes feitas de carbono, sentindo o solo feito de carbono, exalando carbono pela respiração. De toque em toque eu senti o sagrado em meu coração. Eu, que não me apego às crenças religiosas de qualquer tipo, me vi de joelhos por horas diante daquelas espécies num ato de referência à vida. Aliás, não é exatamente para isso que servem as religiões? Prestar reverência ao que o planeta Terra tem de único, a vida?
Depois dessa experiência eu posso dizer que: As Cataratas do Iguaçu são espetaculares, a Serra do Mar moldou o meu caráter, mas são os Campos de Curitiba que me fazem ficar de joelhos. Por isso eu recomendo, vá conhecer o campo pessoalmente. Ele vai te surpreender!
As opiniões e informações publicadas nas seções de colunas e análises são de responsabilidade de seus autores e não necessariamente representam a opinião do site ((o))eco. Buscamos nestes espaços garantir um debate diverso e frutífero sobre conservação ambiental.
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