Análises

Só a restauração ecológica será o suficiente para a persistência dos ecossistemas?

Não, visto que lidamos com inventários limitados das espécies. Uma solução viável seria a realização de inventários e monitoramento da fauna e flora antes, ou concomitante com a execução de projetos de restauração

A restauração ecológica de ecossistemas é uma das principais soluções identificadas pela sociedade para reverter o atual quadro de degradação ambiental que vivemos. Neste sentido, entendemos por restauração ecológica o processo de auxiliar a recuperação de um ecossistema que foi degradado, danificado ou destruído (SER, 2019). Quando pensamos em ecossistemas terrestres, dentre as diversas intervenções existentes, a mais popular é o plantio de mudas, classificada como restauração ativa porque envolve intervenção humana direta. No entanto, outras intervenções também são aplicadas a fim de atingir o objetivo final dos projetos de restauração: o reestabelecimento de um sistema auto-organizado, ou seja, sem a presença de um controle ou manipulação externa, que permita a manutenção dos processos ecossistêmicos.

Uma recente análise publicada no site O Eco discute a importância da fauna no processo de restauração de ecossistemas. Seguindo a definição acima, para termos ecossistemas restaurados devemos ter, além das espécies da flora, também espécies da fauna e, por consequência, as interações ecológicas entre eles. Em essência, projetos de restauração de ecossistemas dependem da fauna para o seu sucesso. Iniciativas de restauração passiva, também conhecida como regeneração natural, ocorrem quando sementes e propágulos estão presentes no solo ou são trazidos pelo vento ou por animais que se movimentam entre estas áreas. Animais são de fato essenciais para trazer sementes de plantas arbóreas, necessárias para uma floresta estruturada na região tropical e mantendo processos do ecossistema (Wendt, Chazdon, and Ramirez 2022). Portanto, conhecer quais espécies são mais facilmente carreadas para áreas em restauração e quais necessitam de uma intervenção ativa, como o plantio de mudas e a semeadura de sementes, são aspectos cruciais para termos projetos de restauração com sucesso. 

Mas, e quando nem conhecemos a fauna e flora de um local que perdeu sua vegetação nativa? Qual é o tamanho da nossa ignorância sobre a biodiversidade? Um conceito fundamental na Restauração de Ecossistemas é o de áreas de referência, que significa, como o nome já indica, áreas utilizadas como referências para a condução e avaliação de projetos de restauração. Nestas áreas temos pelo menos algum conhecimento da sua fauna e flora e, assim, podemos almejar o ecossistema futuro que está sendo restaurado.

A extensão de áreas em que não há nenhum conhecimento sobre a biodiversidade, no entanto, é assustadora. Aproximadamente 40% do bioma Amazônico nunca foi pesquisado, e não temos conhecimento da distribuição geográfica precisa para a maioria das espécies vegetais que ocorrem nesta região (Bush and Lovejoy 2007). Até o ano de 2017, 30% das localidades onde haviam informação sobre espécies de árvores foram desmatadas, além de 300.000 km² do bioma terem sido desmatados sem ter um único registro prévio das espécies ali presentes (Stropp et al. 2020).

Isso demonstra que grandes áreas vêm sendo degradadas antes mesmo de acessarmos a biodiversidade da região. Mesmo em áreas com alguma informação, lidamos com inventários de espécies limitados, que não detectam espécies raras ou mesmo espécies novas para a Ciência (dos Santos et al. 2015). Só nos últimos cincos anos, 23 novas espécies de mamíferos foram descritas (um dos grupos de animais mais estudados) (SBMz, 2024). E essa lacuna é mais pronunciada para táxons/organismos pequenos e pouco estudados, como os insetos (Hortal et al. 2015), mas também se estende a grupos relativamente muito estudados, como é o caso das árvores (Hopkins 2007, Feeley 2015). E ainda tem os novos ecossistemas. Recentemente foi descoberto um novo ecossistema marinho, as Colinas Coralinas, na costa do Estado do Espirito Santo (UFES, 2024).

Aproximadamente 40% do bioma Amazônico nunca foi pesquisado, e não temos conhecimento da distribuição geográfica precisa para a maioria das espécies vegetais que ocorrem nesta região

De forma geral, podemos identificar quatros estágios da ignorância do conhecimento  e que podem ser aplicados para entendermos a biodiversidade, sendo eles (Loxdale, Davis, and Davis 2015): i) conhecido-conhecido, quando conhecemos a fundo o número de indivíduos, preferência de habitat e funções desempenhadas pelas espécies; ii) conhecido-desconhecido, quando temos uma grande quantidade de informações sobre as espécies, deixando a interpretação e aplicação dos dados em aberto; iii) desconhecido-conhecido, quando sabemos que uma espécie existiu em uma localidade, porém assumimos sua extinção devido aos dados insuficientes levando a incapacidade de comprovar a razão de sua extinção; e iv) desconhecido-desconhecido, esta categoria representa o potencial ilimitado de descoberta de novos fenômenos e, consequentemente, a grandes avanços em nossa compreensão científica.

A nossa ignorância da biodiversidade está direta ou indiretamente relacionada a diversos fatores (biológicos, econômicos e sociais) e devem ser vista como prioridades de financiamento (Correia et al. 2019). Um estudo avaliando sobre a ignorância de anfíbios, aves, abelhas, briófitas, fungos, plantas com e sem flores e borboletas no bioma da Caatinga (Correia et al. 2019) constatou que áreas com maior dificuldade de acesso, com baixa densidade populacional humana, distantes de instituições de pesquisa (ex. universidades e institutos) e de áreas protegidas são menos conhecidas/estudadas (Correia et al. 2019). Este padrão sugere que fatores socioeconômicos influenciam o conhecimento que temos sobre a biodiversidade.

Aqui propomos a urgente retomada e aumento de investimentos em inventários da biodiversidade, em paralelo às iniciativas de restauração de ecossistemas degradados. Direcionando esforços não somente para os vertebrados, mas também para os invertebrados, assim como as áreas pouco assistidas e de extrema importância para a restauração, que é a biodiversidade dos solos brasileiros. Alguns projetos atualmente ativos como o Projetos Ecológicos de Longa Duração (PELD) e o Programa de Pesquisa em Biodiversidade (PPBio) poderiam receber maior financiamento e projetos direcionados exclusivamente para áreas geográficas em que há grandes estágios de ignorância poderiam ser desenvolvidos. 

Com base nestas propostas, voltamos à pergunta do título deste texto, e a resposta é não porque:

  • i) há a necessidade de ter dados de referência para restauração, e na falta, associar monitoramento com a coleta de dados de biodiversidade com a execução dos projetos de restauração,
  • ii) interesse dos pesquisadores para direcionar esforços nas áreas sem ou com dados insuficiente, priorizando as regiões com alto potencial de sofrerem ações de desmatamento,
  • iii) se tratando de restauração de ecossistemas, direcionar os esforços e recursos (financeiro, humano e instrumental) de projetos de pesquisa para conhecer a biodiversidade de vertebrados e invertebrados acima e abaixo do solo e
  • iv) a colaboração entre diversos atores, incluindo o setor privado, organizações não governamentais (ONGs), consultorias ambientais, centros de pesquisa e órgãos reguladores ambientais, como os Institutos Estaduais de Meio Ambiente, o ICMBio e o IBAMA. Essa integração assegura que diferentes perspectivas e expertises contribuam para a sustentabilidade e eficiência na restauração dos ecossistemas.

Bibliografia

Bush, Mark B., and Thomas E. Lovejoy. 2007. “Amazonian Conservation : Pushing the Limits of Biogeographical Knowledge.” JOURNAL OF BIOGEOGRAPHY 34: 1291–93.

Correia, Ricardo A et al. 2019. “Using Ignorance Scores to Explore Biodiversity Recording Effort for Multiple Taxa in the Caatinga.” Ecological Indicators 106.

Feeley, Kenneth. 2015. “Are We Filling the Data Void? An Assessment of the Amount and Extent of Plant Collection Records and Census Data Available for Tropical South America.” PLoS ONE 10(4).

Hortal, Joaquín et al. 2015. “Seven Shortfalls That Beset Large-Scale Knowledge of Biodiversity.” Annual Review of Ecology, Evolution, and Systematics 46: 523 – 549.

Hopkins MJG. 2007. Modelling the known and unknown plant biodiversity of the Amazon Basin. J. Biogeogr. 34:1400–11

dos Santos, Jhonatan Guedes et al. 2015. “Geographic Trends and Information Deficits in Amazonian Conservation Research.” Biodiversity and Conservation 24(11): 2853–63.

Stropp, J. et al. 2020. “The Ghosts of Forests Past and Future: Deforestation and Botanical Sampling in the Brazilian Amazon.” Ecography 43(7): 979–89.

Wendt, Amanda L., Robin L. Chazdon, and Orlando Vargas Ramirez. 2022. “Successional Trajectories of Seed Dispersal Mode and Seed Size of Canopy Tree Species in Wet Tropical Forests.” FRONTIERS IN FORESTS AND GLOBAL CHANGE.

As opiniões e informações publicadas nas seções de colunas e análises são de responsabilidade de seus autores e não necessariamente representam a opinião do site ((o))eco. Buscamos nestes espaços garantir um debate diverso e frutífero sobre conservação ambiental.

  • Bruno Umbelino

    Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Ecologia do Departamento de Ecologia da UFRJ, pesquisador no Laboratório de Vertebrados/UFRJ e Laboratório de Conservação do Séc. XXI/UFAL.

  • Carlos Eduardo de Viveiros Grelle

    Doutor em Zoologia e professor do Departamento de Ecologia da UFRJ, pesquisador do Centro de Conhecimento em Biodiversidade INCT/CNPq, coordenador do BioMA PPBio/MCTi e coordenador de biodiversidade do CMA

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Comentários 1

  1. Joao Victor diz:

    Excelente texto e propostas! Muito bom! 👏🏻