A obra de Robert Louis Stevenson, publicada no século XIX, Strange Case of Dr Jekyll and Mr Hyde, conhecida no Brasil como O médico e o monstro, relata a tentativa do médico, Dr. Jekyll, de separar o lado bom do lado mau do ser humano. Para tanto, ele elabora uma poção que o transforma no sombrio e violento Sr. Hyde. Já transformado em monstro, Sr. Hyde realiza diversas atrocidades, mas o Dr. Jekyll segue encobrindo a verdade. Alguns analistas interpretam, o que Stevenson descreve, como um caso de múltiplas personalidades, outros como transtorno bipolar, mas, nas palavras do próprio Dr. Jekyll, ele possuía uma “vida dupla”. Independentemente do correto termo técnico, a trama descreve a aberração social e moral representada pelo Sr. Hyde, cujo comportamento foge ao controle do médico, e confronta suas convicções morais.
No mês de março, que agora chega ao fim, o governo do estado do Rio de Janeiro, incorporou o espírito de O médico e o monstro. No dia 22 de março, Dia Mundial da Água, conforme relatado na página da Secretaria de Estado do Ambiente e Sustentabilidade, o governador do estado “… abriu as agendas de mobilização, que colocam o Rio como um polo pelo desenvolvimento sustentável internacionalmente”. Na ocasião, o governador afirmou: “Com a Rio 2030, o Rio de Janeiro se coloca como um dos porta-vozes da Agenda 2030 da ONU. Elaboramos uma programação plural, onde as discussões sobre o tema vão nos ajudar a fortalecer as políticas públicas em âmbito estadual”.
Todavia, na semana anterior, vinha a público a notícia de licenciamento, por parte do Instituto Estadual do Ambiente, vinculado à Secretaria de Estado do Ambiente e Sustentabilidade, para instalação de 36 torres de linha de transmissão de energia na baía de Sepetiba. O referido empreendimento faz parte de um projeto mais amplo, que inclui a instalação, no espelho d’água da baía de Sepetiba, de quatro termoelétricas flutuantes e uma unidade flutuante de armazenamento de GNL (gás natural liquefeito), além de operações de suprimento de GNL por navios transportadores.
A instalação desse complexo fere frontalmente diversos dos princípios dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS) da ONU, defendidos pelo governo do estado na cerimônia de 22 de março e coloca em risco o sistema socioambiental da baía de Sepetiba, classificado pelo Ministério do Meio Ambiente como de importância biológica extremamente alta, com grande variedade de ecossistemas e habitats, além de abrigar espécies ameaçadas de extinção, como o Boto-cinza e tartarugas-marinhas. Mas o pujante sistema da baía de Sepetiba extrapola a importância ecológica, possuindo extrema relevância social e econômica, através de atividades de pesca, turismo e lazer, que sustentam milhares de pessoas e representa parcela significativa da economia dos municípios de seu entorno.
Parece que as autoridades se recusam a entender (ou aceitar) que os ODS se pautam na justiça socioambiental e na manutenção da diversidade de usos e atributos que beneficiam, por conseguinte, uma diversidade de setores e cidadãos. Na contramão desse entendimento, a exemplo do Sr. Hyde (cujo nome faz parte de um jogo de palavras do autor, em referência a hide, que significa esconder, ocultar) da novela de Robert Stevenson, todo o processo de licenciamento do empreendimento estava sendo conduzido de forma acelerada, silenciosa. Soma-se a isso o agravante de não terem sido realizados estudos prévios de impacto ambiental e social, além do licenciamento ter sido fracionado.
Em resposta a essa aberração, o Ministério Público Federal considerou o licenciamento inadequado e recomendou sua anulação, reconhecendo que “não se pode desmembrar projetos que no seu todo implicarão em impactos cumulativos e sinérgicos sobre o ecossistema”. Na mesma direção, a sociedade civil também se manifestou contra o empreendimento, através da análise de pesquisadores, ongs e pescadores, além da organização de petição aberta para adesões e assinaturas.
Se realmente o estado do Rio de Janeiro deseja se engajar à Agenda 2030 da ONU, só há um caminho a percorrer, que implica na difícil transposição do campo da retórica para o campo das ações realmente sustentáveis. O atual cenário é uma ótima oportunidade para se demonstrar isso, extinguindo o processo de licenciamento das termoelétricas.
A boa notícia para as instituições estaduais de meio ambiente é que, ao contrário da novela de Stevenson, na qual o doutor se livra do monstro, matando-se, no caso das termoelétricas da baía de Sepetiba, basta se livrar do monstro e da aberração, sem a necessidade de sacrificar a baía de Sepetiba.
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