Análises

Atropelo no licenciamento de termoelétrica coloca em risco a baía de Sepetiba

A condução célere e silenciosa de todo o processo de licenciamento é um verdadeiro estouro da boiada, que só se percebe quando já estamos sendo atropelados

Mário Luiz Gomes Soares · Leonardo Flach ·
15 de março de 2022 · 2 anos atrás

São notórios os efeitos deletérios de décadas de má gestão pública da baía de Guanabara e de sua bacia hidrográfica, um dos berços da sociedade brasileira. O descaso do poder público, movido por interesses não compatíveis com a conservação de importante patrimônio nacional, levou à crescente e progressiva degradação ambiental, baixa qualidade de vida da população que reside no entorno, aumento dos conflitos socioambientais e redução da diversidade de usos e beneficiários dos serviços ambientais que poderiam ser providos por um ecossistema adequadamente gerenciado e conservado. Todavia, parece que a triste realidade da baía de Guanabara não tem servido de exemplo, ou mesmo comovido as autoridades, sobre a necessidade de adoção de um outro modelo de gestão para sua vizinha baía de Sepetiba, também localizada na região metropolitana do Rio de Janeiro.

No dia 09 de março, o Instituto Estadual do Ambiente (INEA) do Rio de Janeiro adicionou mais um capítulo na crônica de uma morte anunciada da baía de Sepetiba. Nesse dia, fomos surpreendidos pela emissão, por parte do INEA, de licença ambiental integrada para a Karpowership Brasil Energia Ltda. A referida licença autoriza a instalação de 36 torres temporárias de linha de transmissão de energia de 138kv, como parte de empreendimento, que inclui ainda a instalação, no espelho d´água da baía de Sepetiba, de quatro termoelétricas flutuantes e uma unidade flutuante de armazenamento e regaseificação de GNL (gás natural liquefeito), além de operações de suprimento de GNL por navios transportadores, que realizarão a transferência do produto para a unidade de armazenamento e regaseificação.

Lembremos, que a baía de Sepetiba apresenta grande relevância ecológica, social e econômica, sendo classificada pelo Ministério do Meio Ambiente como de importância biológica extremamente alta e uma das mais piscosas do litoral brasileiro. A baía mantém uma grande diversidade biológica, com destaque para uma ampla variedade de ecossistemas e habitats, abriga várias espécies da fauna marinha ameaçadas de extinção (ex: Boto-cinza, Sotalia guianensis; tartaruga-cabeçuda, Caretta caretta; Mero, Epinephelus itajara), sustenta dezenas de comunidades pesqueiras, compostas por milhares de pescadores e seus familiares, mantém importantes estoques de espécies que são comercialmente exploradas e é importante área de turismo e lazer, que representam uma significativa fração da economia dos municípios que são banhados por suas águas. 

Ademais dos impactos causados por empreendimento dessa natureza sobre o sistema natural e social da baía de Sepetiba, o que causou grande preocupação a pesquisadores, pescadores, moradores e ambientalistas, foi a condução célere e silenciosa de todo o processo, um verdadeiro estouro da boiada, que só se percebe quando já estamos sendo atropelados.

Vista da Praia da Pescaria Velha na Ilha da Marambaia, Baía de Sepetiba, Foto: Tânia Rêgo/Agência Brasil.

Ao analisarmos o processo pouco transparente e sem a devida discussão pública, que culminou com a licença ambiental concedida e, conduzido de forma extremamente acelerada, cabe entendermos um pouco da constituição das empresas envolvidas. Consulta à base do Ministério da Fazenda, permite constatar que a empresa turca Karkey Karadeniz Elektrik Uretim A.S., constituiu duas empresas no Brasil: a Karpowership Brasil Energia Ltda e a Karpowership Futura Energia Ltda, ambas sediadas no mesmo endereço na cidade do Rio de Janeiro. Esse fato é importante para entendermos as estratégias adotadas até o momento e que ainda terão desdobramentos, pois uma das práticas utilizadas por empreendimentos com grande potencial de dano ambiental é o fracionamento do licenciamento, no presente caso, da geração de energia e da transmissão de energia. A breve cronologia que apresentamos a seguir permite uma melhor compreensão do processo até o momento:

Outubro de 2021 – As empresas Karpowership Brasil Energia Ltda e Karpowership Futura Energia Ltda, ambas de origem turca, são registradas no Brasil; 

Outubro de 2021 – A empresa Karpowership Futura Energia Ltda, 4 dias após ter aberto processo de registro de CNPJ, participa do Procedimento Competitivo Simplificado Nº 01/2021-ANEEL, para contratação de energia de reserva;

Novembro de 2021 – A empresa Karpowership Futura Energia Ltda, assina 4 contratos de venda de energia para a Câmara de Comercialização de Energia Elétrica – CCEE, antes mesmo de possuir o licenciamento para o empreendimento, por meio do qual se obriga a garantir o início da operação das termoelétricas até o dia 1° de maio de 2022;

Novembro de 2021 – A empresa Karpowership Brasil Energia Ltda solicita o enquadramento do projeto como estratégico, utilizando-se como argumento o enfrentamento da situação de escassez hídrica, visando garantir a continuidade e a segurança do suprimento eletroenergético no país;

Dezembro de 2021 – O governador do estado do Rio de Janeiro aprova o enquadramento do empreendimento na qualidade de projeto estratégico, o que garante um processo de licenciamento mais célere;

Fevereiro de 2022 – O governador do estado do Rio de Janeiro assina decreto declarando as obras de infraestrutura do empreendimento, como de utilidade pública, para fins de intervenção em áreas de vegetação primária ou secundária em estágios avançado e médio de regeneração pertencentes ao bioma Mata Atlântica bem como eventuais desapropriações, a favor das sociedades empresariais Karpowership;

Fevereiro de 2022 – A Agência Nacional de Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP) autoriza a Karpowership Brasil Energia Ltda. a exercer a atividade de importação de gás natural liquefeito – GNL;

Março de 2022 – O Instituto Estadual do Ambiente (INEA) emite Licença Ambiental Integrada (LAI Nº IN000312) para que a empresa Karpowership Brasil Energia Ltda. instale 36 torres de linha de transmissão de energia, que inclui a supressão de vegetação de Mata Atlântica e manguezal, além de estruturas no espelho d’água da baía de Sepetiba.

Assim, pode-se constatar que todas as ações são articuladas e tramitam de forma coordenada e avassaladora por diversas instâncias, antes mesmo de haver a aprovação da licença. Todo esse processo ocorre sem um debate sobre os riscos ambientais e sociais. Na verdade, essa estratégia parece buscar garantir a aprovação do empreendimento sem chamar a atenção, prática pouco democrática e participativa, mais uma de tantas boiadas. Cabe destacar ainda, que segundo o Decreto n° 46.890 de 23/12/2019, ao se referir ao enquadramento do empreendimento na qualidade de projeto estratégico, menciona em seu artigo 16, parágrafo 2, que “A celeridade e a prioridade previstas neste artigo não implicarão diminuição da tutela ambiental nem da intensidade do controle estatal”, fato que nos leva a questionar onde encontram-se as análises dos impactos ambientais e por que não foram submetidas a debate da sociedade e da extensa comunidade de cientistas que atuam na baía de Sepetiba.  

A forma com que o referido processo foi conduzido, mas parece a Blitzkrieg ou guerra-relâmpago, estratégia utilizada na Segunda Guerra Mundial, baseada em grande articulação e rapidez das forças de ataque, para evitar que as forças oponentes tivessem tempo de organizar a defesa. O levantamento da fauna, por exemplo, foi feito a partir de dados secundários epropõe que todas as atividades de resgate e salvamento da fauna sejam realizadas no decorrer das atividades de supressão da vegetação, sem qualquer análise prévia. Importante esclarecer que a Lei da Mata Atlântica (Lei nº 11.428/2006), em seu artigo 15 dispõe que “Na hipótese de obra ou atividade potencialmente causadora de significativa degradação do meio ambiente, o órgão competente exigirá a elaboração de Estudo Prévio de Impacto Ambiental, ao qual se dará publicidade, assegurada a participação pública.”  

Ainda merece destaque o potencial impacto do referido empreendimento. Considerando-se a NOP-INEA-46 (Norma Operacional de Enquadramento de Empreendimentos e Atividades Sujeitos ao Licenciamento), o empreendimento é classificado com potencial poluidor alto e porte excepcional, o que o enquadra na Classe 6C (Impacto Significativo) – SEI/ERJ- 28552465, o mais alto nível de uma matriz que possui 20 classes.

A urgência de transparência, de debate público e sobretudo de estudos sérios acerca dos reflexos ambientais e sociais de tal empreendimento na região que envolve a baía de Sepetiba e seu entorno, fica ainda mais evidente ao analisarmos o histórico de atuação da referida empresa turca, Karpowership, que se resume a contratos em países pobres da África e Ásia, que são facilmente induzidos a aceitar tais projetos. Destaca-se ainda a tentativa, pela referida empresa, de implantação de projeto similar na África do Sul, conduzido sob o mesmo pretexto de suprir emergencialmente a oferta de energia no país, o qual foi rechaçado, pela preocupação com o alto impacto socioambiental no ecossistema marinho, tanto por não cumprir requisitos de participação pública, como pelos estudos ambientais serem considerados de baixa qualidade, exatamente as preocupações que aqui apontamos na proposta em curso, sendo que para a baía de Sepetiba, sequer foram apresentados estudos de impactos. 

Merece menção, que em dezembro de 2021 o ONS (Operador Nacional do Sistema Elétrico), descartou a possibilidade de racionamento de energia no país, o que, portanto, invalida esse argumento como justificativa para implantação de empreendimento de tão elevado potencial de impacto de forma tão atabalhoada.

Mais uma vez presenciamos no Brasil atual, a estratégia de passar a boiada, que se utiliza de legislação flexibilizada, para garantir o aparente caráter legal, mas que não garante o caráter de moralidade e de justiça socioambiental e, que ainda se pauta na pouca transparência e renuncia ao debate democrático. 

Fica, portanto, a pergunta de que interesses estão sendo defendidos, quando uma proposta com tamanho potencial de impacto, vinda de uma empresa com histórico nebuloso, tramita de forma tão célere e obscura na esfera pública. Talvez se olharmos para a vizinha e moribunda baía de Guanabara não obtenhamos essa resposta, mas com certeza nos ajuda a refletir sobre o possível destino trágico da baía de Sepetiba.

*Artigo endossado pela Coalizão Ciência e Sociedade, composta por cientistas de todas as regiões do Brasil.

As opiniões e informações publicadas nas seções de colunas e análises são de responsabilidade de seus autores e não necessariamente representam a opinião do site ((o))eco. Buscamos nestes espaços garantir um debate diverso e frutífero sobre conservação ambiental.

  • Mário Luiz Gomes Soares

    Oceanógrafo, Doutor em Oceanografia e Professor Associado da Faculdade de Oceanografia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, onde coordena o Núcleo de Estudos em Manguezais (NEMA).

  • Leonardo Flach

    Biólogo, Doutor em Ecologia e Evolução. Coordenador Científico do Instituto Boto Cinza

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