Reportagens

Aneel revoga outorga de autorização de usinas termelétricas na Baía de Sepetiba

Sociedade civil questiona desde altos riscos em região sensível a impactos socioambientais aos erros cometidos nos trâmites legais para a implementação das térmicas

Elizabeth Oliveira ·
11 de agosto de 2022 · 2 anos atrás

Deflagrador de inúmeras controvérsias desde que foi anunciado como parte das soluções para o enfrentamento das crises hídrica e energética ocorridas do ano passado, o projeto para a instalação de quatro usinas termelétricas flutuantes, na Baía de Sepetiba, acaba de sofrer um revés que pode inviabilizar a sua implementação. Por descumprimento de prazos, a diretoria da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) revogou, na terça-feira (9), a outorga de autorização concedida à Karpowership Brasil Energia. A agência reguladora também negou pedidos de excludente de responsabilidade e de alteração de cronograma da empresa de origem turca, além de determinar a abertura de processo administrativo para apurar possíveis penalidades decorrentes da não instalação das térmicas.

Contratadas pelo Procedimento Competitivo Simplificado (PCS) para reserva de capacidade diante de um contexto emergencial, as usinas termelétricas Karkey 13, Karkey 19, Porsud I e Porsud II não passaram a operar conforme o cronograma estabelecido. O parecer do relator da Aneel, Hélvio Neves Guerra, destacou que o leilão foi realizado em 25 de outubro de 2021 e as outorgas emitidas em 5 de novembro do mesmo ano, para o início de suprimento previsto para 1º de maio de 2022. “Ou seja, o período compreendido entre a outorga e a data de suprimento corresponde era de apenas 177 dias, até mesmo em vista da excepcionalidade do certame que buscava reforçar o atendimento a demanda de energia num breve espaço de tempo.” No documento, o relator ressaltou ainda: “Assim, novamente, não é razoável um agente reclamar 214 dias de atraso. É demonstrar pouco apreço aos objetivos daquele processo competitivo e a efetiva caracterização de nexo de causalidade que tanto buscamos nesta casa.”

O relator rebateu os argumentos da empresa contratada nos seus pedidos encaminhados à agência reguladora, dentre os quais, o de que o atraso no processo de licenciamento ambiental dos empreendimentos teria inviabilizado o cumprimento do cronograma. Para mais de 20 organizações da sociedade civil que assinaram uma carta aberta, encaminhada na segunda-feira (8) ao ministro das Minas e Energia, Adolfo Sachsida, essa justificativa não é válida, uma vez que se percebeu uma celeridade inédita nesse caso, resultando em uma série de falhas processuais. 

“Apontamos como descabida, também, a alegação da KPS de que houve demora na expedição das licenças e autorizações necessárias pelos órgãos ambientais, pois o que se observou, na verdade, foi justamente o contrário: uma celeridade no processo de licenciamento nunca antes vista, mesmo com todas as falhas na realização de estudos, consultas prévias à população e descumprimento de prazos estabelecidos pelo órgão ambiental (INEA)”, afirmam as organizações no documento pelo qual foram reivindicadas a manutenção de penalidades e a rescisão de contrato com a Karpowership por descumprimento de prazos acordados. 

Pesquisador alerta para riscos à biodiversidade

Vista da Baía de Ilha Grande que tem ampla conectividade com a Baía de Sepetiba. Foto: Elizabeth Oliveira.

Cascos de navios, plataformas e outras estruturas artificiais podem contribuir para a introdução de espécies não nativas em ambientes aquáticos. Esse é um dos riscos destacados pelo biólogo marinho Luis Felipe Skinner, professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), ao ser consultado sobre possíveis impactos causados à biodiversidade marinha por projetos como os das termelétricas flutuantes da Baía de Sepetiba. “Em que condições vieram os cascos das usinas ou das barcaças que as trouxeram?”, questiona o pesquisador.

Além disso, espécies invasoras transportadas por embarcações que, por ventura, viessem a afetar a Baía de Sepetiba, poderiam, também, alcançar a Baía da Ilha Grande. “A conectividades entre ambas é enorme do ponto de vista oceanográfico e biológico. Temos várias espécies exóticas que foram detectadas em ambas as baías”, alerta. Outro fator de preocupação que o especialista aponta envolve “a proximidade com unidades de conservação, como a Reserva Biológica de Guaratiba, o Parque Estadual da Ilha Grande” e outras áreas protegidas, localizadas na região.

O pesquisador relata que “as superfícies das usinas servem de substrato para espécies incrustantes e como são substratos artificiais, há uma predominância de espécies exóticas e muitas invasoras já estabelecidas em nosso litoral”. 

Ele explica que, a exemplo do que ocorre na Usina Nuclear de Angra dos Reis, “a utilização de água do mar para resfriamento do sistema causa um impacto térmico na saída deste efluente”. “Não sei onde está sendo feita a captação de água nem onde será seu descarte. Mas considerando que Sepetiba é caracterizada por ser uma baía rasa, isto pode ser fortemente agravado e impactar as comunidades marinhas em seu entorno, desde o plâncton, base da cadeia trófica até peixes, tartarugas e botos”, alerta. 

Segundo Skinner, “é usual também utilizarem cloro dissolvido na água injetada nos trocadores de calor como substância anti-incrustante, pois os organismos crescem nesses dutos e a Baía de Sepetiba possui uma comunidade desse tipo que se desenvolve com grande velocidade, muito superior ao observado em Angra”. Para o especialista, “isso significa que potencialmente, muito mais cloro será utilizado e volumes de água muito maiores serão movimentados”.

Outra questão de alerta apresentada pelo pesquisador, se refere “às linhas de transmissão que possuem bases de ferro fincadas no solo”. O especialista explica que, da mesma forma, essas estruturas “servem de substrato para organismos incrustantes, alguns indesejáveis”.

Linha de transmissão na Baía de Sepetiba. Foto: Instituto Arayara.

Mobilização social gera impedimentos jurídicos

O projeto sob a responsabilidade da Karpowership envolve a geração energética a partir de quatro embarcações (powerships), além de uma unidade flutuante para armazenamento e regaseificação de gás natural liquefeito. A capacidade instalada é de 560MW e essa infraestrutura também prevê a instalação de 36 torres de transmissão em uma baía de inúmeras fragilidades, onde espécies, incluindo a do boto-cinza, estão ameaçadas de extinção.  

Diante dos altos riscos de danos ambientais que o empreendimento poderia causar à Baía de Sepetiba, o Ministério Público Federal (MPF) ingressou em junho deste ano, com uma segunda ação civil pública, para impedir a instalação dessas atividades, liberadas de apresentar estudo e relatório de impacto ambiental (EIA/RIMA), no âmbito do Instituto Estadual do Ambiente (Inea). 

“O MPF esclarece que os respectivos relatórios e avaliações (EIA/RIMA) devem abarcar os impactos cumulativos e sinérgicos entre as quatro termelétricas, as 36 torres de transmissão de energia e demais empreendimentos que impactam na Baía de Sepetiba. Além disso, a empresa Karpowership Brasil Energia Ltda deve se abster de realizar qualquer obra ou atividade, ainda que preparatória, visando à instalação das quatro usinas termelétricas flutuantes (Powerships) na Baía de Sepetiba, antes de obtida licença ambiental concedida mediante apresentação e avaliação do indispensável EIA/RIMA”, informou à época, o MPF, que também já havia pedido, em março, a anulação da licença de instalação dessas torres na região, em outra ação.

Erros cometidos nos trâmites para a aprovação da infraestrutura energética pelos órgãos estaduais, apontados pelo MPF e pelas organizações da sociedade civil, foram reconhecidos pelo Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro (TJRJ). Em decisão assinada em 22 de julho,  pela juíza Georgia Vasconcellos da Cruz, da 2ª Vara da Fazenda Pública do Rio de Janeiro, foi determinada a suspensão da licença de instalação das termelétricas.  A juíza considerou “frágil e insustentável” a argumentação do Governo do Estado para a dispensa de EIA-RIMA das termelétricas, medida que, segundo noticiado em ((o))eco, estava ancorada em parecer do Inea. 

Entretanto, o próprio parecer do órgão ambiental estadual sinalizava que o empreendimento era “potencialmente causador de significativo impacto ambiental”. Apesar desse alerta, contraditoriamente, o Inea acatou a decisão da Comissão Estadual de Controle Ambiental (Ceca) pela não exigência de EIA-RIMA por envolver “uma estrutura emergencial, temporária e de fácil e rápida mobilização”. 

Empreendimento energético não tem sentido para organizações da sociedade civil

O entendimento de organizações da sociedade civil é de que fora do cenário de crise e, principalmente, diante do não cumprimento de prazos contratuais acordados, a implementação dessas termelétricas movidas a combustível fóssil não tem sentido. As fragilidades socioambientais e os erros cometidos pela gestão estadual para garantir a instalação das termelétricas também são apontados como fatores preocupantes nesse caso.   

Para Nicole Oliveira, diretora executiva do Instituto Arayara, a decisão da Aneel foi acertada. “Não seria justo com outras empresas que cumprem prazos e apresentam EIA-RIMA”, analisa. “Além disso, não precisamos dessas usinas sete vezes mais caras do que a média dos leilões. Se perdeu o sentido de urgência para justificar esse empreendimento”, opina. A ambientalista considera que a empresa turca poderá recorrer, mas não acredita que conseguirá reverter o posicionamento da agência reguladora. 

Ela também ressalta a série de “atropelos causados pela Ceca e pelo Inea para garantir a instalação das termelétricas com dispensa ilegal de EIA-RIMA”. E alerta, ainda, que, apesar de a recente decisão do TJRJ ter estipulado pagamento de multa diária, em caso de descumprimento da determinação, uma equipe do Instituto Arayara flagrou operações em navio da Karpowership, na Baía de Sepetiba, no dia 5 de agosto. Na ocasião, a comunicação com a tripulação foi muito difícil já que não se falava português ou inglês na embarcação. Para a ambientalista, esse episódio sinaliza com outra falácia envolvida no projeto das termelétricas: “As promessas de geração de emprego locais não são cumpridas. Os empregados vêm da Turquia”. 

Outra questão que está em jogo no processo que envolve as termelétricas, segundo a ambientalista, é a falta de consulta aos pescadores artesanais atuantes na Baía de Sepetiba. São mais de três mil pessoas envolvidas nessa atividade na região que não foram consultadas sobre o empreendimento. Isso contraria a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) que determina a consulta prévia, livre e informada de populações tradicionais residentes em áreas afetadas por projetos potencialmente causadores de impactos socioambientais. “Eles souberam pela mídia”, afirma. O caso foi discutido em audiência pública realizada na Câmara dos Deputados, no dia 3 de agosto, para debater os problemas relacionados a esse empreendimento. Parlamentares se comprometeram a tomar medidas, diante dos relatos apresentados durante o evento.

Até o fechamento desta publicação, o Inea não havia respondido às solicitações encaminhadas pela reportagem para esclarecimentos sobre o processo de licenciamento ambiental para instalação das usinas termelétricas na Baía de Sepetiba. O órgão ambiental sequer confirmou se já foi notificado da decisão judicial que determinou a suspensão da licença de instalação do empreendimento energético.

  • Elizabeth Oliveira

    Jornalista e pesquisadora especializada em temas socioambientais, com grande interesse na relação entre sociedade e natureza.

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