Reportagens

Os guardiões das aves invisíveis de Sepetiba

Em pesquisa inédita, casal venezuelano que vive há 4 anos no Rio contabiliza 64 mil pássaros migratórios num único ano na Zona Oeste – mas aves são desconhecidas pela população local

Emanuel Alencar ·
31 de outubro de 2022 · 1 anos atrás

RIO – À primeira vista é impossível dizer quantos pássaros compõem a revoada. Então, o clique de Francisco Inciarte, antropólogo nascido em Maracaibo, Venezuela, há 46 anos, vai ganhando pontinhos coloridos. Uma a uma, as aves vão sendo marcadas por números. Depois de um exaustivo trabalho, que compartilha com a mulher, a veterinária Libicni Rivero, 46, o quebra-cabeça vai sendo montado. Os resultados são sempre surpreendentes. Neste momento em que você lê essa reportagem, em apenas uma praia da Baía de Sepetiba, no extremo oeste da capital fluminense, mais de 8 mil aves migratórias estão se alimentando, guardando energia para seguir viagem. Num único ano, a reunião de batuíras e maçaricos formam um mosaico de 64 mil indivíduos na Baía de Sepetiba.

Os números superlativos vêm sendo compilados por Francisco e Libi de forma voluntária. Eles integram um movimento global de apaixonados pelas aves limícolas – bichos associados a zonas úmidas costeiras, como estuários e lagunas. A turma, do Canadá à Argentina, se debruça a investigar hábitos desses pequenos animais alados, que cumprem jornadas de mais de 30 mil quilômetros toda temporada. As fotografias e relatos irão para o International Shorebird Survey (ISS) – um censo cujo objetivo principal é garantir a proteção das aves migratórias.

De onde elas vêm?

Essas limícolas – o casal já identificou 19 espécies em Sepetiba, das quais 15 chamadas migratórias boreais – vivem um curioso paradoxo: apesar de numerosas, muitas vezes são totalmente desconhecidas por moradores e pescadores que convivem com as revoadas. Na faixa que vai de Guaratiba e Sepetiba, conta Libi, as aves encontram alguns riscos maiores que os falcões-peregrinos ou falcões-de-coleira, seus predadores naturais: a expansão da malha urbana para os territórios de alimentação das limícolas.

Catálogo de aves. Imagem: Divulgação.

“A maioria dessas aves nasce nas tundras do Canadá, ou no Alaska, nos Estados Unidos. As fêmeas deixam o ninho e partem em migração sul imediatamente após os ovos eclodirem, e são seguidas pelos machos e depois pelos filhotes. Seguem à Patagônia (na Argentina)”, explica a pesquisadora. “O que nosso trabalho está demonstrando é que Sepetiba é a capital das aves migratórias do Sudeste. Desconhecemos uma concentração tão relevante de batuíras e maçaricos na região. Mas, ao conversarmos com pescadores, notamos que elas são ignoradas: ninguém sabe de onde vêm ou para onde vão”.

Francisco e Libi passam boa parte da semana em praias de Sepetiba, com uma Nikon com lente 300mm, clicando as limícolas (do latim limus, significando que vive no limo, lodo ou lama). Ora registram as majestosas revoadas, ora os hábitos das aves, de se alimentarem de pequenos invertebrados que vivem no lodo. Os picos migratórios vão de outubro a dezembro e de março a maio.

“Todo mundo que viaja precisa parar num posto de gasolina para abastecer. Com as limícolas é a mesma coisa”, compara Francisco. “Para cumprirem seus ciclos de vida, essas aves precisam migrar. Sincronizam toda a viagem com uma precisão incrível. Se não chegar a um ponto em um momento dado, não conseguem sobreviver. Muitas vêm do Canadá, param em Sepetiba por até nove meses, onde ficam se alimentando antes de seguirem viagem ao Ártico, já no verão”.

Registro de espécie ameaçada

De tanto fotografarem as aves, o casal construiu uma relação de confiança com pescadores e moradores das praias de Sepetiba. Eles trocam informações sobre os hábitos das aves e formaram uma rede importante para disseminar a importância da proteção das faixas de lama das praias.

Francisco Inciarte e Libicni Rivero. Foto: Arquivo pessoal.

“A educação ambiental é um aspecto chave para buscarmos novas unidades de conservação para proteger essas aves. A comunidade está animada, nos ajuda na colocação de placas e avisos sobre a preservação”, diz Francisco.

Após dois anos de trabalho incansável, Francisco e Libi viveram um momento de grande emoção ao clicarem um grupo de 220 maçaricos-de-papo-vermelho (Calidris canutus), em maio deste ano, em Sepetiba. A espécie, em perigo crítico de extinção, a reboque da superexploração do caranguejo-ferradura na Baía de Delaware, nos EUA, onde cerca de 80% da população faz uma parada para se alimentar antes de continuar a migração ao Ártico para reprodução. A aparição de tantos indivíduos foi um momento de muita emoção, conta Francisco, que sobrevive fazendo entregas de mercadorias.

“Em 2021, havíamos identificado apenas 12. Este ano quase caímos para trás com tantos maçaricos-de-papo-vermelho. Imediatamente mandamos o registro na plataforma do International Shorebird Survey”, conta Francisco.

Outros momentos de comoção estão associados a cliques que mostram aves identificadas por uma espécie de etiqueta nas patas. Outro dia mesmo o casal fotografou um jovem Calidris canutus rufa nascido no Parque e Reserva Nacional Arquipélago Mingan, em Quebec, no Canadá, em setembro de 2021, distante 8,3 mil quilômetros do Rio de Janeiro, em linha reta.

E quando esse esforço todo termina, Libicni?

“O trabalho não para: precisamos saber onde elas estão para garantir que seus habitats não sejam destruídos”.

Incentivadas por Francisco e Libe, crianças moradoras Sepetiba se engajam na proteção do meio ambiente. Foto: Francisco Inciarte
  • Emanuel Alencar

    Jornalista e mestre em Engenharia Ambiental. É autor do livro “Baía de Guanabara – Descaso e Resistência” (Mórula Editorial) e assessor de Comunicação na Prefeitura do Rio

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