Continuando o formato das duas matérias anteriores, o presente artigo faz a tradução de um artigo escrito por mim, originalmente em inglês, “Top cat in a vast Brazilian marsh” (Predador de topo em um vasto pântano brasileiro) e publicado no Animal Kingdom Magazine, Setembro/Outubro 1986, e republicado em 1988 (Ultralight Flying!, February (144): 16-19) e em 1989 (Current Science, 74 (11): 4-6). O artigo continua a história de como saímos da fazenda Acurizal, para retomar o estudo das onças na Miranda Estância, no sul do Pantanal, com um período entre os dois projetos que passamos em Poconé, entre agosto de 1978 e abril de 1980.
“Por sobre o barulho do motor, o bip do sinal de rádio aumentava de volume no fone-de-ouvido. À medida que eu fazia uma curva descendente para verificar de onde vinha o sinal, o Dr. Wonderful – uma das nossas onças-pintadas com rádio-colar – emergiu de um capão de mata para o campo aberto, 60 metros abaixo de mim. Ele parou em um trilheiro de gado, olhou diretamente para mim por alguns segundos, e continuou caminhando, aparentemente sem se importar com o estranho e barulhento pássaro colorido voando acima dele. Feliz e extremamente excitado, virei para o leste e comecei a voltar para a nossa estação de pesquisa. Essa foi muito provavelmente a primeira vez que uma onça-pintada foi vista na Natureza de um ultraleve – uma aeronave experimental capaz de voar muito mais lentamente que qualquer outro avião. Sua incrível dirigibilidade me permitia uma visão muito mais íntima do Pantanal, uma região do sudoeste do Brasil que abriga uma das maiores concentrações de fauna dos Neotrópicos.
Esse meu encontro incomum com um macho quase adulto de onça-pintada ocorreu durante o primeiro estudo da espécie. Apropriadamente, nossa pesquisa, financiada pela Wildlife Conservation International (WCI, uma divisão da New York Zoological Society) e pelo Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal – IBDF (o precursor do IBAMA), foi iniciada pelo Dr. George Schaller, zoólogo mundialmente famoso que havia anteriormente realizado os primeiros estudos de outros grandes felinos, como leões, tigres, e leopardo-das-neves. Eu havia sido contratado pelo IBDF como contraparte brasileira do estudo, no início de 1978, ainda no início do projeto.
O Pantanal abrange cerca de 140 mil km² ao longo do curso superior do rio Paraguai, nos estados de Mato Grosso e Mato Grosso do Sul. O terreno varia de plano a ondulado, com extensas savanas pontilhadas de palmeiras e capões de matas semidecíduas, matas de galeria ao longo de cursos d’água, e diferentes configurações de cerrado. A maior parte dessa área é inundada anualmente entre dezembro e março, quando apenas ilhas de terras mais altas permanecem fora d’água. Em maio, as águas da enchente começam a retroceder, e em outubro/novembro, apenas poças esparsas permanecem. Um clima quente e úmido predomina na maior parte do ano, com temperaturas subindo acima de 40 C, mas ventos frios do sul podem baixar os termômetros para baixo de zero entre junho e agosto. As enchentes sazonais e a ausência de estradas desencorajaram até agora empreendimentos maiores para o desenvolvimento da região. A pecuária é a principal atividade econômica, com rebanhos totalizando cerca de seis milhões de animais, entre gado zebuíno e búfalos asiáticos.
“O estudo estava indo muito bem, até que descobrimos que empregados da fazenda haviam matado duas das onças que estávamos estudando”
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Nosso estudo estava inicialmente localizado na fazenda Acurizal, na borda oeste do Pantanal perto da divisa com a Bolívia. Por 16 meses, nós acompanhamos os movimentos de várias onças residentes na área e coletamos informações na flora e na fauna, incluindo capivaras, os grandes roedores que constituem uma das principais presas das onças. O estudo estava indo muito bem, até que descobrimos que empregados da fazenda haviam matado duas das onças que estávamos estudando (ver “Epitáfio para um Jaguar“, Animal Kingdom Magazine, Abril/Maio, 1980). A morte desses animais quebrou a estrutura social da já pequena população e nos forçou a procurar uma nova área de estudo.
Por indicação de um amigo comum, escolhemos uma nova área no sul do Pantanal, num lugar chamado Corcunda, um retiro na Miranda Estância, uma fazenda de pecuária com 248 mil hectares. O retiro ficava a 20 km da sede da fazenda e a 56 km da cidade de Miranda, a cidade mais próxima. Nós escolhemos esse lugar não apenas pela sua beleza, com a floresta na beira de uma baía, mas também por ser o último ponto em terra alta que se podia chegar com carro. Dali para frente se estendia a parte baixa do Pantanal, habitat favorito das onças. Como para nos dar sorte, em nossa primeira visita ao lugar, encontramos pegadas de uma onça-pintada na beira da baía.
Quando me mudei para a fazenda, George já havia deixado o projeto para começar o seu estudo sobre o panda gigante, na China, deixando o pesquisador Howard Quigley, que havia sido contratado pela WCI, para substituí-lo no Brasil. Nossa primeira missão era construir as casas e um hangar e pista de pouso para o ultraleve.
A vida no Corcunda era fácil. Nós dividíamos o retiro com funcionários da fazenda e suas famílias, que ocupavam duas outras casas. Eu sempre me impressionava como a minha esposa Mara e nossas duas filhas, Danielle e Beatriz, se adaptaram à vida na fazenda. Nascida e criada em Porto Alegre, a capital do Rio Grande do Sul, Mara de repente se via às voltas com queixadas e cutias atacando a sua horta e sucuris comendo as nossas galinhas. Quando mais tarde nós tivemos que mandar a Danielle para a escola, em Porto Alegre, com os avós, ela teve problemas convencendo suas colegas de aula que suas historias não eram mentiras.
Voando sobre o Pantanal em nosso ultraleve com capacidade para uma pessoa, Howard e eu tínhamos acesso às áreas mais remotas de uma forma que nem mesmo o piloto da fazenda, com o Cessna 182 Skylane, conhecia. Ter o nosso próprio avião também nos economizava as despesas regulares com táxi-aéreo comerciais para as localizações das onças aparelhadas, necessárias para o seu monitoramento. Ele nos permitia checar diariamente os seus movimentos e, às vezes, podíamos até descobrir, do ar, carcaças de animais abatidos.
Visão privilegiada
É difícil descrever a sensação de voar lentamente sobre uma região inóspita, selvagem, sentado na “cabine” aberta do nosso aparelho, com os primeiros raios do sol começando a esquentar o ar fresco da manhã. Eu olhava grupos de bugios abaixo se alimentando na copa das árvores; Cervos-do-Pantanal, com água até a metade das pernas, escolhendo diferentes espécies da vegetação aquática; famílias de capivaras pastando pacificamente ao longo de cursos d’água e jacarés esquentando ao sol.
Nós logo caímos em uma rotina diária. Usando o ultraleve nas primeiras duas horas de luz, localizávamos as onças com colar, selecionando uma delas para acompanhar no solo. Então, usando cavalos ou canoas, dependendo da estação do ano, de seca ou de cheia, passávamos de 3 a 4 horas para alcançar o lugar onde o animal havia sido localizado mais cedo, algumas vezes apenas para descobrir que ele já não se encontrava mais ao alcance do equipamento. Mas usualmente encontrávamos o sinal distante até mais que 2 km, e fazíamos um acampamento volante com nossas redes. A cada 15 minutos, registrávamos a temperatura ambiente e movimentos e mudança de atividade do animal. Esses felinos permanecem em um local por um longo tempo – entre dois e quatro dias – apenas se tiver matado uma presa grande, como uma queixada ou uma capivara, e se nada o perturbar. Nessas ocasiões, nós pudemos manter contato por até 72 horas. Com frequência, no entanto, as onças passam apenas uma noite com uma carcaça.
O ultraleve era uma ferramenta valiosa, mas algumas vezes nos trouxe momentos de ansiedade. Em uma manhã ventosa de outubro de 1982, o Howard levantou voo da pista do retiro Piúva para localizar as onças, enquanto eu preparava nossos cavalos e equipamentos para o dia. Após duas horas sem que ele retornasse, eu sabia que algo de errado havia acontecido, pois o aparelho tinha combustível suficiente para apenas uma hora e meia, no máximo. Através de uma complicada rede de mensagens passadas por veículo, telefone e cavalos, eu consegui chamar um piloto de táxi-aéreo do aeroporto mais próximo, em Aquidauana. No meio da tarde, o piloto chegou e nós imediatamente saímos à procura do Howard. Para isso, usamos o mesmo sistema que utilizávamos para localizar as onças, uma vez que eu havia instalado um radiotransmissor no próprio ultraleve, justamente para uma emergência como essa. Eu podia apenas esperar que o Howard tivesse ligado o transmissor do aparelho.
Nós voamos por uma hora antes que eu pudesse detectar um sinal muito fraco. Usando as antenas direcionais, em mais cinco minutos, nós pudemos ver o aparelho e o Howard: ele parecia estar bem. Usando galhos quebrados, no solo, ele havia escrito “H2O” e “FACÃO”, em letras grandes. O avião havia pousado em um trecho de vegetação arbustiva espinhenta, em uma parte da fazenda raramente visitada mesmo pelos peões.
“Enchi um galão plástico com água e nós voamos de volta ao local do acidente”
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O piloto e eu voamos de volta para o Corcunda e eu preparei uma mochila com vários itens, incluindo uma rede-selva, com mosquiteiro e sobre-teto para chuva, lençol, lanterna e pilhas, biscoitos, repelente, e até mesmo uma revista Time. Enchi um galão plástico com água e nós voamos de volta ao local do acidente. Lutando contra o vento, eu abri a porta do Cessna e consegui jogar a mochila, acertando uma moita densa que havia mirado. Descobrimos mais tarde, no entanto, que o galão havia se rompido quando bateu no solo, e a água havia vazado. Apenas na manhã seguinte – quando o piloto jogou para ele cinco cocos-verdes e um bilhete avisando que estávamos à caminho para o resgate – foi que o Howard conseguiu beber.
A cavalo, levamos quatro horas para chegar ao local. Depois de beber um litro e meio de tererê (chimarrão frio), o Howard nos contou o que acontecera. Ele estava voando baixo para aferir a localização da Eva, uma de nossas onças mais recentes, quando um cabo de vela se soltou por causa da vibração do motor, fazendo com que se apagasse. Sem tempo para escolher um local mais apropriado para o pouso de emergência, ele apontou o avião para um arbusto de bom tamanho, para amortizar a queda. Ele sofreu apenas uma contusão em um joelho com a batida e o avião teve o eixo da hélice levemente entortado.
Quando começamos a voltar, foi interessante encontrar os rastros da Eva por cima das pegadas do Howard, onde ele havia caminhado, no dia anterior. Provavelmente movida por curiosidade, ela deve ter vindo durante a noite inspecionar o estranho intruso no seu território.
Para buscar o ultraleve, quatro dias depois eu voltei ao local com um funcionário da fazenda e uma escavadeira. Pela metade da tarde, o tratorista havia limpado uma pequena pista e eu levantei voo – e não estava muito feliz com isso. O eixo torto fazia com que o avião chacoalhasse tão forte que eu temia que as peças dele começassem a se soltar e voar sozinhas. Subi em um espiral fechado, cada vez mais alto, por cima da pequena pista no meio daquela imensidão desolada, decidindo se eu deveria continuar. A visão das casas brancas do retiro Carrapatinho brilhando na distancia ajudou na minha decisão e, firmando o paraquedas no meu colo, eu apontei o avião naquela direção.
Depois de uma eternidade de 20 minutos – todo o tempo eu estava forçando a minha vista procurando por áreas abertas onde eu pudesse pousar o avião, em caso de emergência – consegui chegar ao retiro sem maiores problemas. Mas esse ainda não foi o final dessa história. Naquela noite, uma tempestade de vento arrebentou as cordas com que eu havia amarrado o ultraleve ao solo e jogou o aparelho de ponta-cabeça por cima de uma cerca. Os tubos de alumínio ficaram torcidos como macarrão. Para poder colocá-lo em condições de voo novamente, tivemos que encomendar peças do Rio de Janeiro e contratar um mecânico especialista, que veio de Brasília”.
Continua no próximo post…
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