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10 livros para mergulhar em conservação, parte 3: o canto do dodô

Dando sequência na série sobre grandes livros da conservação, apresento a obra-prima do jornalista David Quammen, um livro de um não-cientista que qualquer cientista teria orgulho de ter escrito

13 de outubro de 2021 · 2 anos atrás
  • Fernando Fernandez

    Biólogo, PhD em Ecologia pela Durham University (UK). Professor do Departamento de Ecologia da UFRJ, trabalha com Biologia da Conservação.

Depois de um intervalo curto no tempo geológico, chegamos ao terceiro da minha série de dez livros que toda pessoa interessada em conservação deveria ler. Oi? Sim, é o terceiro. O segundo, o saboroso “Last chance to see” (“Última Chance para Ver”), de Douglas Adams e Mark Cawardine, já apresentei numa coluna aqui mesmo em O Eco (“Última chance para ler”). Conta, conta sim. Então, depois dele e do clássico “A Sand County Almanac”, “O canto do dodô” é o terceiro da minha lista.

Ao contrário da maioria das listas dos “dez mais” que você vai ver por aí, esta não propõe nenhuma ordem – a sequência na qual os livros aparecerão não indica preferência por um ou por outro. Todos são maravilhosos, cada um do seu jeito. Mas em todas as vezes que pensei nessa minha seleção, “o canto do dodô” nunca deixou de ser titular absoluto.

“The Song of the Dodo – Island Biogeography in an Age of Extinction”, no título original, foi escrito pelo jornalista David Quammen e lançado em 1996. Tenho que confessar que minha primeira reação, ao conhecer o livro anos depois, foi subestimá-lo. Costumo pensar que os melhores livros de divulgação científica, pelo menos na maioria dos casos, são escritos por cientistas que gostam de escrever – como Stephen Jay Gould, Carl Sagan, Jared Diamond, Neil De Grasse Tyson e o brasileiro-britânico Peter Medawar – e não por jornalistas que se interessam por ciência. Reportagem é uma coisa, divulgação científica é outra bem diferente. Há muitas exceções, claro – tenho o prazer de conhecer várias – mas jornalistas de modo geral tendem a não ter conhecimento suficiente para perceber o que de fato há de especial em uma nova descoberta, nem solidez suficiente para explicá-la sem distorção. É preciso fazer muito bem o dever de casa, e isso nem todo mundo faz – ainda mais hoje quando tantas coisas são feitas de forma corrida e massificada. Biogeografia de ilhas, extinção, são temas científicos desafiadoramente complexos, e confesso que temi por como estariam representados ali.

Felizmente nunca gostei de julgar sem ler. Lembro claramente da minha primeira impressão, após poucas páginas: ei, esse cara escreve muito. E também da segunda:  esse cara sabe muito. A essa altura, meu queixo já tinha caído e eu não conseguia mais parar de ler.

Um livro que entrega mais do que promete

Não acredite no subtítulo, “biogeografia de ilhas numa era de extinção”. Esse livro te entrega muito mais do que promete. A maior parte da Biologia da Conservação está lá. A teoria de biogeografia de ilhas, de Robert MacArthur e Edward Wilson, claro. Relações espécies-área, fragmentação de habitats, princípios para design de reservas, a polêmica do “SLOSS” (uma única reserva grande ou várias pequenas), extinções, perda de variabilidade genética, populações mínimas viáveis, manejo de espécies ameaçadas, está tudo lá. O lobo marsupial (tilacino), a ave-elefante, o dragão de Komodo, as tartarugas gigantes, e, claro, o próprio dodô, também estão todos lá. Tudo magistralmente escrito, com fluência, com grandiosidade e com o ocasional senso de mistério.

Mas “O canto do dodô” não tem nada de livro didático, que explicasse os assuntos em tópicos arranjados numa sequência lógica. É um livro de histórias humanas encadeadas; um livro não só sobre descobertas, mas sobre a história das descobertas. Aí o talento de Quammen está em seu ambiente natural. A receita funciona bem: as muitas páginas de “O canto do dodô” fluem com surpreendente facilidade.

A sequência na qual as histórias aparecem está longe de ser óbvia, e pode parecer aleatória. Nada mais falso: se na primeira leitura a ordem das ideias tinha feito pouco sentido para mim, ao reler o livro consegui entender melhor a sutileza da sequência na qual Quammen vai desenvolvendo o que, no fundo, é uma única grande história contada pelo entrelaçamento de numerosas pequenas histórias.

Pequenas histórias entrelaçadas

Capa: o canto do dodô.

Está todo mundo lá: as pessoas por trás das ideias, as pessoas que mudaram nosso entendimento da biodiversidade, e nossa maneira de nos relacionar com ela, ao longo de dois séculos. Desde Johann Reinhold Forster no século 18, passando por Alfred Russell Wallace no 19, e por MacArthur, Wilson, Tom Lovejoy, Rob Bierregaard, Eleonore Setz, William Newmark, Karen Strier e muitos outros no século 20. As grandes polêmicas se revelam a partir de conversas informais de Quammen com seus principais personagens, como Jared Diamond defendendo as grandes reservas e Dan Simberloff argumentando que as pequenas também são importantes, numa rivalidade científica que ensinou muito para a conservação. Há a desconcertante história de um talentoso Michael Soulé em plena ascensão largando a academia para ir para um mosteiro budista, e depois voltando para criar a Biologia da Conservação. Já a história inspiradora de Carl Jones, lutando sozinho para salvar o falcão de Maurício à beira da extinção, por si só já valeria o livro. Como bom jornalista que é, David Quammen sabe contar histórias como poucos.

Lembro, no entanto, que enquanto viajava entretido nessas histórias, ficava cada vez mais impressionado com a absoluta solidez de “O canto do dodô”. Nas setecentas páginas (no original), você não vai encontrar um só erro conceitual de biologia ou ecologia (bom, pelo menos eu não encontrei). Qualquer grande cientista se orgulharia de ter escrito este verdadeiro tour de force das ideias de conservação. Mas vindo de um não-cientista, tal domínio de um campo de pesquisa tão vasto beirava o inacreditável. A explicação apareceu (e não poderia ter sido outra) quando consultei pela primeira vez a lista de referências no final. São quase mil artigos e livros consultados para escrever esse. A gente falava em fazer o dever de casa… esse cara tem meu respeito pelo resto da vida.

Infelizmente nunca conheci David Quammen, esse coloquinta, rapace, visigodo. Convidei-o três vezes para vir dar uma palestra aqui no Brasil, na Semana de Biologia da UFRJ, com patrocínio do Instituto Luísa Pinho Sartori (nos bons tempos que as pessoas vinham dar as palestras), e ele nunca aceitou. Ele sempre mandava um email mega-atencioso e cordial, mas dizendo que não podia vir. Será que teve alguma coisa a ver com aquela outra história que ele também conta no livro, sobre como foi assaltado logo em sua primeira vinda ao Rio de Janeiro?  Não sei. Mas se ele falar metade do que escreve, não tê-lo aqui já terá sido uma pena. Além disso, nunca pude perguntar a Quammen sobre minha hipótese de que ele queria ter sido biólogo, o que ajudaria a explicar sua desconcertante facilidade para discutir até os conceitos mais complexos dessa disciplina.

Cada vez mais atual e necessário

Biólogo frustrado ou não, o fato é que Quammen tem feito um imenso serviço à conservação pelo que é, não só com esse, mas também com vários outros livros. “O canto do dodô” é, na minha opinião, sua obra-prima, mas há outros que valem muito a pena ler, como “Monstro de Deus”, “The Flight of the Iguana”, “The Boilerplate Rhino” e “Spillover”. Em “Spillover” (“Contágio”, em português), por exemplo, Quammen discute que “a próxima grande e assassina pandemia humana, aquela que nos matará aos milhões, será causada por uma nova doença – nova para humanos, de qualquer forma. O organismo que será responsável será estranho, não-familiar, mas não virá do espaço exterior. O provável é que o patógeno assassino – mais provavelmente um vírus – irá passar para os humanos vindo de um animal não-humano”. Parece familiar e tragicamente atual? Pois “Spillover” foi publicado em 2012 (e esse comentário do próprio Quammen sobre ele saiu em 2016). Quiséramos nós que ele não estivesse tão certo.

Menos obviamente, o próprio “O canto do dodô” também continua mais atual do que nunca. No momento que escrevo, com o estímulo da política anti-ambiental irresponsável e criminosa do desgoverno brasileiro, a Amazônia vem sendo destruída num ritmo devastador, e o Pantanal e outras vastas regiões do Brasil sofrem com colossais secas e queimadas. Destruição e fragmentação de habitats, pequenas populações isoladas à mercê da extinção, esforços valorosos de pessoas admiráveis para salvá-las… infelizmente, os temas principais do livro permanecem, ou voltaram a estar, bem vivos em nossas mentes e em nossos corações.

Ah, sim… e por que o título, “O canto do dodô”? Fala sério. Você acha que eu vou dar um spoiler desses? Leia o livro! Se você gosta de conservação, não vai se arrepender.

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Comentários 1

  1. F. Raeder diz:

    De fato, Quammen “escreve muito”, sendo um excelente jornalista/ensaísta e “sabe muito”, por saber onde obter as informações essenciais, mesmo não sendo um cientista. Aliás, tem muito biólogo formado por aí, além de “gestores” ambientais, que sequer conhecem os clássicos modernos que você citou (o próprio Quammen, Gould, Diamond e cia)…o que explica muita coisa!

    Dos livros deles, meu preferido é “Wild Thoughts from Wild Places”, destacando diversas formas de interação humanos-natureza, infelizmente ainda não traduzido para o português.

    No aguardo do restante da lista!