Se o veterinário Adalberto Eberhard for capaz de prever o destino do Pantanal matogrossense como antecipa os movimentos de uma onça, está na hora de todo brasileiro aprender a escutá-lo. Enquanto é tempo. Se é que ainda é tempo.
Com o bicho, não teve erro. Mal viu a grande cabeça pintada aflorar num fim de tarde no meio do rio Paraguai, disse tudo o que naquele instante se passava dentro dela. “Vai subir bem ali, naquele barranco”, Adalberto avisou, apontando o ponto da margem onde o bicho chegaria. O barqueiro tentou cortar o caminho do animal com uma virada do bote. Ele impediu. Mais tarde, a sós, daria um reaperto em regra no aprendiz de ecoturismo. “É que os turistas sempre me pedem para fazer isso”, o homem explicou.
Com o motor de popa em ponto morto, a onça passou por nós numa linha reta. A bordo, além de Adalberto e o piloto, éramos três passageiros. Todos se remexendo nos bancos em presença da fera impassível, concentrada no que vinha fazendo como um atleta olímpico em plena competição. Passou rente ao barco sem desviar os olhos de seu rumo. E saiu da água precisamente no lugar marcado.
“Deixem para fotografar quando a onça pisar em terra firme”, avisou Adalberto. “Antes de ir embora, ela vai parar, virar a cabeça para cá e encarar a gente. Aí sim, é hora de apertar o botão”. Dito e feito. Como uma fera de circo, ela cumpriu o roteiro escrupulosamente, fazendo o encontro acidental e imprevisível parecer ensaiado. Parou. Fez pose, de corpo inteiro, para máquinas fotográficas e flashes. Deixou bem claro que não estava fugindo. E só depois, com meia dúzia de passos, sumiu tranqüilamente no labirinto de água e mato. Como se aquilo fosse a sua casa.
E é mesmo sua casa. Numa região cada vez mais entregue à soja e aos programas selvagens de desenvolvimento, ali ficam os 54 mil hectares que Adalberto comprou, com dinheiro da ONG The Nature Conservancy, para impedir que aquele cenário, o mais jovem e mais frágil de todo o território brasileiro, desapareça antes de dar às futuras gerações de brasileiros a chance de ver o que o Pantanal queria ser quando crescesse.
Vinda provavelmente do Parque Nacional do Pantanal, no lado de lá do rio Paraguai, a onça acabara de entrar no Acurizal, uma das antigas fazendas de gado – e, nas horas vagas, entrepostos do tráfico de drogas entre a Bolívia e o Brasil, para aproveitar a vizinhança da fronteira – que viraram Reservas Particulares do Patrimônio Natural. Formalmente, trata-se de três RPPNs: o Acurizal, o Dorochê e a Penha. Na prática, elas formam um território contínuo de áreas protegidas, a sudoeste do Parque Nacional do Pantanal. Estão lá para escorá-lo, porque o parque nasceu capenga.
Por erro essencial de execução, que contrariou o traçado original, como acontece no Brasil com os projetos de conservação, ele só tem terras numa das margens rio. Aliás, quase não tem terras. É tão inundado que, em seus 135 mil hectares, até a sede repousa sobre um aterro especialmente construído com areia do rio. Os animais evidentemente não sabem onde ele acaba. E por isso, como se viu no caso da onça, atravessam os largos braços do rio Paraguai como se aquilo tudo, parque ou não, fosse uma coisa só. Adalberto tratou de remendar-lhe o traçado, atendendo ao que os bichos sugeriam.
Ele é gaúcho, filho de um alemão que migrou para o Rio Grande do Sul, porque estava decidido a viver num país cheio de florestas. Adalberto teve a quem puxar. Está no Pantanal há mais de 30 anos. Chegou no começo da década de 70, como um veterinário recém saído da universidade que, coisa rara em seu ofício, optara pela especialização em animais selvagens, o que não é propiamente um meio de vida. Foi ao Pantanal para estudar a onça pintada, como assistente do zoólogo George Shaller. E acabou ficando. Morou anos a fio em barraca de lona. Sabe o nome de tudo o que o dedo do visitante consegue apontar naquela barafunda verde. E conhecer assim a fauna e a flora do Pantanal não é para qualquer um.
Criou uma filha no mato. Nadou em rios que hoje o assoreamento permite cruzar a pé. Com o tempo, aprendeu que, ao contrário dele, o próprio Pantanal dificilmente ficaria ali para sempre, se o país não tomasse depressa uma providência para conservá-lo. Em 1989, com um premio de 50 mil dólares que ganhou na Alemanha, fundou a Ecotrópica, a ONG que agora administra um investimento a fundo perdido de quase três milhões de dólares. São as reservas, que ele cansou de sugerir ao governo e às grandes empresas fazerem por conta deles.
A soma de aventura com ciência formou, em seu caso, um expositor capaz de manter pregadas por horas a fio em suas palavras, no calor do meio-dia, trinta e tantas pessoas. E olha que elas estavam sentadas à sombra de uma aroeira, com pétalas de flores caindo da copa em seus copos, os carcarás pescando no rio com vôos acrobáticos bem ali ao lado, ilhas de aguapés descendo mansamente na correnteza, às vezes levando a bordo garças ou bem-te-vis, e o churrasco assando a poucos metros de distância. Não é pouca coisa prender uma platéia dessas em circunstâncias semelhantes, sobretudo quando se sabe que a conversa desaguará fatalmente na série de erros que está fazendo, “em duas ou três décadas”, o que a natureza talvez fizesse sozinha em “milhões de anos”.
Ou seja: secar o Pantanal. Ele pode ser, à primeira vista, esse mundo meio submerso no entroncamento hidrogáfico dos grandes rios que tanto correm para a Amazônia como para o sul do continente. Mas, no fundo, não passa de uma “planície deprimida”, que depende da água vinda de fora para se manter em equilíbrio. Lá, no fim das contas, a evaporação supera com folga o volume anual das chuvas. Mas as águas que o alimentam andam cada vez mais poluídas e menos confiáveis. Visto assim, por olhos leigos, parece extraordinariamente rico, pela exuberância de sua paisagem. No entanto, continua pobre e pequeno, quando é medido pela percentagem de seu território que se aninham em unidades de conservação. Quem vê seus bichos pode acreditar que seja superpovoado. Mas bicho não vota. E, quando os governos se lembram do Pantanal e põem os olhos em seus recursos naturais, o que vêem é um grande vazio à espera de projetos calamitosos, como o avanço incansável dos campos de soja sobre suas fronteiras e o lobi de empreiteiras que ainda não desistiu de retificar o rio Paraguai, parar transformá-lo em hidrovia.
Horas depois da palestra, a onça passou por nosso bote. Ela certamente não estava no programa. Mas deu a Adalberto a chance de fechar o dia com uma frase que todo mundo levaria para sempre na cabeça. “Por quanto tempo ainda poderemos ver uma cena como essa?” – ele perguntou. E ninguém arriscou uma resposta. Se ele, que é ele, não sabe…
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