Em 1900, quando os Estados Unidos tinham 75 milhões de habitantes, cinco mil pessoas visitaram o parque nacional de Yosemite. Em 1915, com a população do país batendo em 100 milhões, o número de ingressos mal passava dos 50 mil. Ou seja, passear em santuários naturais pagando entrada era mesmo programa para poucos. Mas só agora, quando há 300 milhões de americanos e os parques nacionais recebem por ano 260 milhões de visitantes, entrou na moda chamá-los de elitistas.
“E isso toca a todos nós”, disse outro dia o historiador Alfred Runte no Oregon. Foi um discurso comovido e indignado, diante de um auditório reunido pelos Parceiros das Terras Públicas na Universidade da Vida Silvestre. Mas o Oregon, nos confins do território americano, fica longe do Brasil. E os problemas ambientais ficam mais longe ainda da imprensa brasileira. A conferência de Runte demorou a chegar a aqui. E veio na forma de um texto de 24 páginas em inglês, que até agora circulou de mão em mão.
Tudo isso dá a impressão de que o debate sobre o destino dos parques nacionais em particular e das terras públicas em geral é frio e alheio. Mas ele está ficando cada vez mais quente e também não deixa de ser nosso. Só não parece ainda tão nosso porque, ao contrário do que acontece nos Estados Unidos, o Brasil praticamente acabou com as terras públicas durante a colonização portuguesa, pelo regime das sesmarias. Mas tem tudo a ver com os parques nacionais, que os americanos inventaram no século XIX e no século XXI estão tentando desinventar, enquanto nós, que levamos mais de meio século para aderir à sua criação, largamos na primeira leva da corrida internacional para desfigurá-los, criando na Reserva Raposa Serra do Sol um parque nacional sob “dupla afetação”, administrado pelo Ibama em parceria com a Funai e os Ingarikó.
Lá, bafejados de cima para baixo pelo presidente George Bush e aquecidos de baixo para cima por fundamentalistas da privatização como a Sagebrush Rebellion, os ventos vêm da direita. Aqui, o governo Lula pôs os parques nacionais na linha auxiliar das unidades de conservação, abaixo das reservas extrativistas, das terras indígenas e outros neologismos da política ambiental que servem para dizer que as emergências sociais vêm antes da natureza. E quando a esquerda e a direita convergem, Runte avisa que se forma sobre os parques nacionais a “Tempestade Perfeita”.
“Tudo o que é preciso para varrer do mapa as terras públicas é essa convergência da direita política, para quem o governo não tem nada que se meter a dono de terras, e da esquerda, para quem as terras públicas são supérfluas”, disse Runte. É o que acontece nos Estados Unidos quando movimentos pelos direitos ancestrais dos índios engrossam a campanha pela privatização dos parques nacionais. De um lado ou de outro, ele ensina, trata-se de dar a poucos o que é de todos. E isso é virar a idéia de parque nacional pelo avesso.
“Como a América recebe imigrantes aos milhões, ela é sempre um país de minorias. Alguém está sempre começando lá de baixo. Um século atrás, foi minha família – e certamente a da maioria das pessoas aqui neste auditório”, ele lembrou. Filha de imigrantes alemães, sua mãe nasceu em 1918 no interior do estado de Nova York, numa fazenda que não tinha luz elétrica nem água encanada. Chamava-se Erika Brinkmann. E em 1944 casou-se com Paul Runte, um retirante “sem tostão”, foragido da miséria que caíra sobre a Alemanha depois da Primeira Guerra Mundial.
Runte, em alemão arcaico, significa pasto. É um nome de raízes rurais. Mas há gerações, desalojadas por guerras medievais, napoleônicas, franco-prussianas e modernas, que os Runte perderam suas terras e a acepção original perdeu-se no tempo. Paul lutou na Frente Ocidental como soldado do kaiser. Com a rendição, deixou a Alemanha, viveu cinco anos no Brasil e foi morar nos Estados Unidos em plena Depressão de 1929. Morreu no 14º aniversário de casamento, deixando a viúva com dois filhos pequenos e uma pensão mensal de 200 dólares.
Mesmo para época, era dinheiro contado. Com ele, apertando bem, Erika poderia aprender a datilografar e arrumar um emprego de secretária. Dava para bancar um ano, da mão para a boca. E, para piorar as coisas, a casa da família estava caindo aos pedaços. E o carro era uma ruína. Ela tomou outro caminho. Botou os meninos a bordo e levou-os para conhecer os parques nacionais americanos. “Só uma nação que acredita no futuro poderia ter ensinado à minha mãe o que ela fez”, diz Runte.
Aquele foi “um ano de escolhas”. Sem televisão, sem roupa nova, sem gibis. Rodando o país com três sacos de dormir, três colchões infláveis, uma tenda usada e um fogão de campanha. “Olhem para fora do carro”, ela insistia, dirigindo de um parque a outro. E eles olharam. Os desertos do Utah, o monte Rushmore, a Devil’s Tower, Yellowstone, os Tetons, Yosemite, o Grand Canyon – “nós vimos todos eles”.
Agora, disse Runte, “imaginem o orgulho que ela sentiu quando em 1979 eu publiquei National Parks: The American Experience. Ou antes, quando meu irmão se formou em Engenharia Florestal. Ela sabia onde esses interesses tinham despertado, e que havia dado a seus filhos uma chance na vida. Sem dúvida, a Universidade de Washington tem sorte de minha mãe não estar mais viva quando ela afirma que as terras públicas estão fora de moda”.
Autor de meia dúzia de livros clássicos sobre a natureza americana e dezenas de artigos, Runte esteve no Brasil há pouco mais de seis meses. Foi uma das estrelas internacionais convidadas para o IV Congresso Brasileiro de Unidades de Conservação, organizado pela Fundação O Boticário em Curitiba. E o que ele disse sobre os brasileiros no Oregan é outro motivo para não se tratar aqui o seu discurso como coisa do outro mundo.
“Eu ainda luto para botar em palavras que experiência tocante foi aquela”, ele contou. “Naquela manhã, eu encarei para um mar de rostos – 1800 participantes, 600 deles abaixo dos 30 anos. Centenas de jovens mais tiveram que ser barrados por falta de vaga. Imaginem isso. Imaginem essa audiência num país estrangeiro para uma idéia que as nossas universidades consideram fora de moda”.
Os americanos, segundo Runte, não têm idéia do que fizeram no resto do mundo, exportando o conceito dos parques nacionais como um investimento no futuro, uma propriedade que é de todos, inclusive dos cidadãos que ainda nem nasceram, mas já têm o direito de saber que país o presente está reservando para eles. Ou seja, os pioneiros dos parques nacionais como o arquiteto Frederick Law Olmsted, que entre outras coisas desenhou em Nova York o Central Park, conseguiu ver em 1865 como seriam os Estados Unidos em 1965, quando milhões de americanos freqüentavam Yosemite. “Esses milhões que vão daqui para a frente se beneficiar do decreto de criação de Yosemite são a maioria desse parque e o interesse da maioria têm sempre que ser cuidado antes de mais nada e com mais empenho”.
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