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O que o Iguaçu tem a ver com isso?

Pressionados pela política da Funai, que encheu de índios paraguaios a reserva do Ocoí, os guaranis invadiram o Parque Nacional do Iguaçu. Querem floresta.

9 de setembro de 2005 · 19 anos atrás
  • Marcos Sá Corrêa

    Jornalista e fotógrafo. Formou-se em História e escreve na revista Piauí e no jornal O Estado de S. Paulo. Foi editor de Veja...

Se tudo acabar bem – ou seja, com sua pronta e pacífica retirada do Parque Nacional do Iguaçu, que invadiram no dia 3 – o país ficará devendo aos avá-guaranis um grande serviço à conservação da natureza no Brasil. Eles se plantaram lá dentro há uma semana. Chegaram dispostos a ficar, levando latas e sacos de mantimentos, telefone celular, muda de roupa, animais domésticos e outros acessórios indispensáveis à vida selvagem. Sob o comando do cacique Simão Tupã Retã Vilialva, abriram uma clareira no mato legalmente intocável, instalaram nove famílias em tendas cobertas por plástico preto, à moda do MST, e anunciaram que só arredarão o pé daquele pedaço do Patrimônio Natural da Humanidade quando o governo providenciar, no mar de soja que virou o oeste do Paraná, uma floresta onde possam exercer o direito à caça, à pesca e a outras prerrogativas constitucionais.

Sua presença ali é um problema. Mas não deixa de ser também uma oportunidade imperdível para que o Brasil discuta, desta vez a sério, a política indigenista vigente. Até hoje, os caras-pálidas do governo se limitaram a regá-la por mais de uma década com borrifos de complacência, ajudando a lançar a dívida do Descobrimento na conta dos parques nacionais, que nada têm a ver com isso. O caso do Iguaçu é didático. Sua história dispensa remissões à frota de Pedro Álvares Cabral em 1500. Remonta à construção da hidrelétrica de Itaipu, na década de 1970. Na ocasião, além de engolir de alto a baixo o Parque Nacional das Sete Quedas, a represa desalojou cerca de 50 famílias guaranis.

Quando as comportas fecharam e as águas começaram a subir, em meados dos anos 80, elas foram reassentadas na reserva do Ocoí, em São Miguel do Iguaçu. Ali a terra é pequena. São só 256 hectares, limitados pelas matas ciliares do lago artificial, de que os índios não podem dispor. Mas isso não impediu a população de crescer tão rápido que, em 1997, a Itaipu Binacional teve que comprar 1.780 hectares em Diamante do Oeste, para onde levou 35 famílias. Quarenta ficaram no Ocoí, entregues à Funai. “Apesar de tudo, os Avá-Guarani mais uma vez mostraram que são um povo. A força e a organização política do grupo possibilitaram que seu direito à compensação fosse assegurado”, escreveu a antropóloga Zeila Costa, quando estudou o caso.

O fato é que em Diamante do Oeste brotou a Tekohá Añetete, uma próspera reserva que na última safra colheu 120 toneladas de mandioca orgânica. Lá vivem atualmente 50 famílias. Elas criam 157 reses. Fazem queijos artesanais. Plantam milho, feijão e arroz “indígena” – ou seja, cultivados sem agrotóxicos ou fertilizantes químicos, mas com uso de máquinas agrícolas. Têm plantações individuais, familiares e coletivas, com usos diferentes. Produziram este ano uma tonelada e meia de mel. Para não perder o gosto pela carne de caça, passaram a criar em cativeiro cutias e capivaras. E, assistidas por técnicos da Itaipu, embarcaram este ano na criação de peixes nas águas da represa, usando tanques em forma de rede.

Sua aldeia tem escola em prédio de alvenaria, com eletricidade, água corrente e telefone. Nela os alunos são alfabetizados em português e guarani. Do currículo, desenhado por um conselho que incluiu as lideranças guaranis, consta a história e a cultura de seu povo. Formou-se na aldeia um grupo musical, que anima as festas do município e há poucos meses gravou o primeiro CD. Os índios aos poucos estão se mudando para casas de 70 metros quadrados, construídas pela empresa, que levou em conta no projeto as preferências e as tradições dos moradores. O piso na sala é de terra batida, para que eles possam acender o fogo de chão, o centro de sua vida social. A estrutura, de troncos, apoiada em pilares, pode ser desmontada e transferida com poucas perdas para outros terrenos, como manda o figurino da existência nômade. Cada casa custa em média R$ 22 mil, mas é doada pala Itaipu. Vinte já estão prontas e entregues. Há mais 20 em obras.

Enquanto isso, na Ocoí, o que prosperou mesmo foi o aperto. Num espaço quase sete vezes menor que o de Tekohá Añetete, vivem agora cerca de 520 índios – ou 115 famílias, 75 a mais que as remanescentes de sete anos atrás. A reserva cresce sem parar, empurrada pela migração de guaranis que vêm do Paraguai, atravessando a fronteira para o lado brasileiro, onde mal ou bem os esperam, sob o manto protetor da Funai, a carteira de identidade, o serviço médico gratuito e até a aposentadoria pelo INSS. Na Ocoí, Zeila Costa encontrou “um quadro totalmente diferente” do que vira em Diamante do Oeste. Segundo sua monografia, de 2002, “não há, atualmente, nenhum acompanhamento, nem apoio para aquela população, que vem crescendo nos últimos anos, criando uma realidade cada vez mais caótica, devido ao tamanho exíguo” da reserva. Na Ocoí, “a participação da FUNAI nos projetos que estão sendo desenvolvidos – econômicos, saúde, educação – é pouco significativa”.

A Itaipu, que gasta com a assistência aos guaranis mais de US$ 200 mil por ano, distribui na aldeia 137 cestas básicas por mês, fez ali 20 casas como as da Tekohá Añetete e atualmente ergue mais 20 unidades. Dois anos atrás, com a ajuda da Pastoral da Criança, livrou-a da tendência à subnutrição infantil. Com isso, “a situação na Ocoí vai de ruim a melhor”, disse na semana passada um dos responsáveis pelo programa. Mas conserto mesmo a reserva só terá quando revolver a pressão demográfica criada pelos imigrantes paraguaios. E isso depende da Funai, encarregada de adquirir ou arrendar terras para descarregar o excedente populacional que cevou na Ocoí. E, dependendo da Funai, o processo não anda.

É mais fácil e mais barato fornecer cestas básicas aos 53 índios que agora acampam no Parque Nacional do Iguaçu, dizendo que, se os tirarem de lá à força, voltarão com “700 guaranis”. Número para isso, por enquanto, eles não têm. Só contando com reforços paraguaios. Ou com a política de migração indígena da Funai. Mas por enquanto os guaranis ganharam o primeiro round. O governo marcou a primeira conversa sobre o assunto para terça-feira, dia 13, mostrando que a urgência de um parque nacional nunca é urgente em Brasília. E a experiência dos últimos anos ensina que, quando essas coisas começam, vão longe.

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