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Espetacularmente fotografado pelo alemão Theo Allofs para a Conservation International, o Pantanal matogrossense mostra a cara a quem arrisca seu futuro.

21 de outubro de 2005 · 19 anos atrás
  • Marcos Sá Corrêa

    Jornalista e fotógrafo. Formou-se em História e escreve na revista Piauí e no jornal O Estado de S. Paulo. Foi editor de Veja...

Prepare-se para perder muito tempo na internet. Nas próximas linhas, entrará em contato com o fotógrafo alemão Theo Allofs. E largá-lo é difícil. Ele acaba de lançar um livro sobre o Pantanal matogrossense. Em quatro anos e seis viagens, viu um Brasil que poucos brasileiros tiveram a chance – ou a técnica, a sorte e a persistência – de ver a olho nu. Fotografou-o em formas espetaculares e cores quase irreais. O resultado é de uma beleza tão inverossímil que ele se deu ao trabalho de garantir, por escrito, a autenticidade de suas imagens.

“Meu propósito na fotografia é a documentação verídica e honesta da natureza”, avisa Allofs de cara, na página 6, providencialmente encaixado sob a foto de uma ema, contra um céu dividido ao meio pelas cores do amanhecer. Allofs informa que, apesar das aparências, nenhuma de suas “imagens foi alterada digitalmente ou manipulada de qualquer outro modo”. E que, “com raríssimas exceções”- ou sejam duas: a de um tucano e de uma ararauna, salvos do tráfico de animais silvestres e soltos em fazendas da região – todos os bichos que figuram nas páginas seguintes “foram fotografados em seu habitat natural”.

E é bom mesmo saber disso antes de encontrá-los inadvertidamente, olho no olho. Vistos pelas lentes de Allof, eles parecem bons demais para serem de verdade. Como é o caso da onça-pintada da página 12. Banhada em plena caça às capivaras pela mesma luz difusa que nos estúdios embelezam artificialmente modelos e tecidos, ela encara o fotógrafo com o fundo das pupilas amareladas, dando a impressão de não ser só uma onça, mas um modelo idealizado de onça, na mesma medida que Gisele Bündchen é modelo de mulher.

Muito mais

E tem mais, muito mais. Aliás, quase só tem isso. Jacarés banhados pelos respingos de ouro de uma corredeira ao pôr-do-sol. Garça empoleirada no centro de um grande sol vermelho. Socó-boi, de corpo desenhado como vaso marajoara, posando contra o fundo neutro de um céu impecavelmente azul. Jaburu em contra-luz, abocanhando a silhueta da piranha que está prestes a engolir (foto). Solto no ar, o peixe se enquadra entre a sombra negra de seu bico com uma exatidão que, na prática, só as montagens fotográficas costumam permitir.

Em outras palavras – ou seja, sem palavras – as fotografias de Allofs em “Pantanal, South America’s Wetland Jewel” falam muito alto pela conservação da natureza. Elas não têm a menor inibição de serem enfáticas. São tiradas de manhã muito cedo ou no cair da noite, quando o vermelho do sol doura animais e pessoas. Nelas, todos os olhos brilham, nos flagrantes da fauna selvagem e nos retratos do homem pantaneiro.

Até o quati, animal acostumado a fuçar lixeira em quintal, escapa da banalidade, ao emergir da relva molhada com a imponência de um urso na tundra. Da ariranha ao vaqueiro, tudo ali poderia ter a mesma legenda: “Não acabe comigo”.

Allofs não brinca em serviço, como se vê no retrato onde aparece, na orelha do livro, de máquina na mão, sem camisa, afundado até o peito nas gigogas, com peito de remador que já atravessou as corredeiras do Yukon em canoa e braços de quem levanta halteres nas horas vagas.

Criou-se na beira do Reno, na Alemanha. Mas ainda era adolescente quando tirou férias na África com colegas de turma.

Leões e tigres

Foi marinheiro, “para correr mundo”, antes de fazer a faculdade de Geologia. No fim do curso, pesquisando minerais nas montanhas da Espanha para a tese de pós-graduação, descobriu que gostava mesmo é de fotografia. Passou 10 anos fotografando lugares remotos para cadernos e revistas de turismo, até se especializar de uma vez por todas em “espécies, lugares e modos de vida ameaçados”. Quer dizer, em fotos de natureza.

Desde então, se não está viajando, mora com a mulher numa cabana no Norte do Canadá. Fabrica seus próprios móveis. Explora, no fundo de casa, um dos lugares mais intactos do planeta. E mantém na internet um site lastreado num arquivo pessoal de 300 mil fotos. A quem se dispuser a abri-lo daqui para a frente, recomenda-se cuidado. Há o risco de não sair tão cedo, perdido num labirinto de leões e tigres espetaculares, desertos da Namíbia transformados em paisagens meio abstratas e lânguidos cangurus.

O livro do Pantanal e as viagens de Allofs ao Brasil foram patrocinados pela Conservation International, cujo presidente, Russell Mittermeier, assina o texto, em parceria com outros pesquisadores da ONG. Em letra de forma, a realidade tem cores mais escuras que os das fotos.

A região está cada vez mais sitiada por hidrelétricas, projetos de hidrovias, indústrias, mineradoras, gasodutos, plantações de soja, capins africanos, desmatamento e pesca predatória – em resumo, por equívocos desenvolvimentistas, cada um com trazendo para seu regime de águas um novo pote de venenos. Por isso mesmo, todo mundo que assina papéis capazes de decidir o futuro do Pantanal deveria ser obrigado a pôr o álbum de Allofs sobre a mesa de despacho.

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