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A reciclagem para consumistas

Agora que pegou no Japão, a reciclagem está pronta para dar ao mercado o que ele nunca imaginou pedir, como pauzinhos feitos com tacos de beisebol.

16 de dezembro de 2005 · 20 anos atrás
  • Marcos Sá Corrêa

    Jornalista e fotógrafo. Formou-se em História e escreve na revista Piauí e no jornal O Estado de S. Paulo. Foi editor de Veja...

O Japão anda mudado. Não só acumulou tanta árvore nos últimos 100 anos que hoje a percentagem de seu território coberta por bosques e florestas é bem maior que a do Brasil, como deu para usar na mesa pauzinhos feitos com velhos tacos de beisebol. O esporte é popular no país. Consome em média 100 mil tacos por ano. Diga-se de passagem que eles são feitos de madeira boa, a de um freixo nativo chamado aodamo. Milhares de tacos quebram nas mãos de atletas profissionais a cada a temporada. E virou moda reciclá-los.

Não adianta perguntar, de cara, o que a natureza tem a ver com isso. Os pauzinhos, em princípio, são só um sinal de que, aderindo à reciclagem, o Japão está inventando novos modos de manter os velhos hábitos. E prometem pouco. No máximo a esperança de que, comendo com eles, o freguês acabe levando o sushi à boca com a lasca de uma relíquia, talvez o fragmento do santo lenho que decidiu o campeonato do verão passado. E assim eles foram parar na lista que saiu outro dia na Asia Pacific: Perspectives. A revista é oficiosa, mas consegue bater o bumbo do progresso japonês com um rigor que beira a isenção. E, no caso, só queria mostrar que os japoneses estão aprendendo a reciclar com a mesma gana que os levou a bater recordes de produção industrial em outras décadas.

O país transformou províncias inteiras em pólos de reencarnação da sucata, como na pioneira Kitakyushu. Plantadas em aterros à beira-mar com o incentivo do Ministério da Economia, do Comércio e da Indústria, as recicladoras de Kitakyoushu já formam, segundo a revista, um complexo “a perder de vista”, ruminando as sobras de eletrodomésticos, copiadoras, lâmpadas, carros, seringas, televisores, garrafas plásticas, jogos eletrônicos ou papel velho, para fabricar novos produtos. A cidade chegou lá antes das outras porque, 40 anos atrás, estava sufocando na fumaça das chaminés e em suas praias as águas tinham adquirido a tonalidade soturna da vida marinha agonizante. Hoje, seus índices de poluição do ar beiram o zero e seu mar de Kitakyushu foi repovoado por 100 espécies de peixes e crustáceos.

Antes que o resto do mundo aprendesse a dizer “Kitakyushu”, pelo Japão afora pelo menos 23 prefeituras entraram na onda da “industrialização ambientalmente correta”– ou coisa que o valha, porque o nome do programa parece mais exótico que seus resultados concretos. Mas, por enquanto, o que está mesmo provado é que os japoneses já sabem reciclar o bom e velho consumismo. Além dos pauzinhos, brilham como mil sóis nascentes na revista as meias Muji, feitas com fiapos de tecelagem. Combinando linhas de todas as procedências, diferentes, são coloridas e altamente personalizadas, por ser praticamente impossível produzir dois pares iguais.

Há também camisetas estampadas pelo avesso, depois que o outro lado desbotou ou ficou monótono. Vendidas exclusivamente em feiras ecológicas, elas se tornaram tão populares que, quando aparecem num balcão, somem do dia para a noite. Está de volta o furoshiki, embrulho de pano que os japoneses usavam no tempo em que o papel de presente era artesanal e caro. Difere das outras embalagens, diz o texto, pelo fato de que, ao recebê-la, manda a etiqueta que se guarde o conteúdo e devolva o invólucro. O furoshiki tradicional sempre resistia a icontáveis idas e vindas. Mas o modelo 2005 vai mais longe. Tecido pela Yamada Sen-i em fibra biodegradável à base de milho, ao acabar, não deixa rastro. A lista tem extravagâncias para todos os gostos. Nenhum deles é o seu gosto? Tudo bem, mas convém não esquecer como o mundo está cheio de gente que, 40 anos atrás, vendo o primeiro carro japonês, jurou que nunca teria na garagem uma geringonça daquelas.

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