Sem uma gota de sangue à vista, ali está uma fotografia que tem a vantagem – e o defeito – de deixar para sempre impresso na memória o drama de uma caçada.
Predador e presa se encaram, olhos nos olhos, a meio metro de distância. Eles dividem a cena em metades perfeitamente simétricas e dramaticamente desiguais. O leopardo parece retesado como um arco, pronto para disparar a carga mortal dos músculos que ondulam o flanco dourado. O babuíno está no ar, e sem chão, enroscado em si mesmo pela implosão de uma energia vital que já não pode levá-lo a lugar nenhum. No dorso eriçado pelo pavor, seus pêlos se espicham como pontos de exclamação. Mais vivo do que nunca, naquela fração de segundo antes da morte, ele começa a ser engolido pela poeira que sua fuga levantou na savana ressecada.
Tempo é tudo
É uma cena inesquecível. E por isso suscitou lembranças desagradáveis no lançamento da Alpha-700, nova câmera digital da Sony. A máquina vem com lentes Carl Zeiss e sensor de 12,2 megapixels. Mas os detalhes técnicos fizeram menos barulho na internet do que a fotografia usada no anúncio. Ilustrado pelo leopardo e o babuíno, sem legenda nem crédito de autoria, o texto dizia que, “em fotografia, o tempo é tudo”. E o tempo, no caso, saiu pela culatra.
Tratava-se de um flagrante feito na África, em 1965, pelo americano John Dominis, quando ainda corria o mundo pela falecida revista Life. Ele estudou cinema em Los Angeles, voou pela Ásia na Segunda Guerra Mundial e, quando ambos estavam no auge de suas carreiras, passou três meses colado aos calcanhares de Frank Sinatra, para fotografá-lo, aos 50 anos, na luz ambiente de palcos esfumaçados, com uma initimidade que o público desconhecia. Em resumo, a fotografia que apareceu no anúncio da Sony tem cerca de 43 anos.
Dominis, o leopardo e o babuíno se encontraram quando a Sony ainda debutava nas rodas alternativas de captura da imagem. As câmeras digitais não existiam nem em histórias de ficção científica. O embate foi registrado com uma Nikon F. Pelo menos, é com uma Nikon F a tiracolo que ele posou para a posteridade, no livro “The Great Life Photographers”. Esse modelo clássico da indústria japonesa era então a última palavra em equipamento para o fotojornalismo. Mas usava filme de 35 milímetros, e suas lentes funcionavam com foco manual. O máximo de artifício tecnológico que oferecia à presteza do dedo no botão do obturador era o motor elétrico, para avanço rápido do filme.
Graças ao trunfo do motor elétrico, Dominis pegou a seqüência completa da briga da vida com a morte na Namíbia. O melhor fotograma da série pertence atualmente ao acervo da Getty Image. E a agência só admite licenciá-la “para fins editoriais”. Publicidade, portanto, neca. À Sony coube, como prêmio de consolação, uma fotografia quase idêntica, feita exceto por uma notável diferença: falta-lhe a boca escancarada do babuíno, no berro decisivo.
Tantas coisas, além da tecnologia digital, melhoraram de 1965 para cá, que – ao contrário do que o anúncio, sem dizer, insinua – Dominis dificilmente faria hoje o mesmo flagrante, por mais moderna que fosse a parafernália digital em suas mãos. Se o fizesse, provocaria um escândalo maior do que o provocado pela mera gafe publicitária. Na década de 1960, a fotografia já tinha pelo menos um século de serviços prestados a causas ambientais, como fornecer argumentos visíveis à criação de parques nacionais nos Estados Unidos. Mas não tinha firmado o pacto de não-agressão com bichos, plantas e paisagens que se tornou inseparável de trabalhos do gênero.
Hoje, o instantâneo do leopardo e do babuíno é um exemplo do tipo de coisa que os fotógrafos de vida selvagem não fazem mais. Dominis mandou vir o leopardo para soltá-lo entre os babuínos. E acertou na mosca. A foto, parte de uma reportagem intitulada “The Great Cats of Africa”, foi premiada antes mesmo que ele chegasse de volta aos Estados Unidos. Dominis nunca escondeu os bastidores da cena. Descreveu-o, com todas as letras, num depoimento para o livro sobre as imagens damosas da Life. “Francamente, foi encenado”, ele disse.
Ele não era um especialista em fotografia de natureza. Cobrira a guerra do Vietnã e várias Olimpíadas. Criara fama com instantâneos de celebridades, como a do ator Steve McQueen, de calção e peito nu, abraçado à mulher como se os dois estivessem sozinhos em casa. Com gente, sua técnica consistia em se comportar como “uma mosca na parede”. Metia-se o mínimo possível na vida dos retratados, para que se esquecessem de sua presença.
Com o leopardo, a psicologia pura não bastava e ele não podia esperar indefinidamente pela iniciativa da fera. “Naquela época, essas coisas aconteciam”, explicou. Dominis, ao contrário do que sugere a publicidade da Alpha-700, no fundo é a melhor prova de que a fotografia não evolui só com câmeras.
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