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As indulgências do paraíso terrestre

Como no mercado medieval de indulgências para usar no além-túmulo, o que não falta na internet é oferta de programas para abater ou zerar nossos pecados ambientais

23 de abril de 2008 · 18 anos atrás
  • Marcos Sá Corrêa

    Jornalista e fotógrafo. Formou-se em História e escreve na revista Piauí e no jornal O Estado de S. Paulo. Foi editor de Veja...

Foto: Pixabay.

As coisas mudam depressa, seja no meio ambiente como na internet. Mas, até segunda ordem, o Ecoogler fica sendo a última palavra em salvação da Amazônia a cliques de mouse, se quer dizer alguma coisa o número de mensagens que o recomendam via correio eletrônico. Trata-se, na prática, do Google atrelado a um programa de reflorestamento à distância. A idéia, em si, não tem nada de nova. Mas esta vem com o trunfo de se basear na tecnologia de busca por trás da empresa que mais cresce no mundo real dos negócios. E oferece à freguesia, além dos serviços normais do Google, a chance de adquirir uma vaga no paraíso ecológico, botando árvores onde até agora a economia só sabia tirar florestas.

Cada consulta no Ecoogler vale uma folha. Folha mesmo, verde-clorofila, na ponta de um galho. E é assim, de folha em folha, que uma fundação suíça chamada Aquaverde investe esses créditos na restauração da cobertura vegetal de Rondônia, numa parceria com índios Suruí, aparentemente rebelados contra o desatamento risonho e franco do estado. Em seu site, a Aquaverde, fundada em Genebra seis anos atrás, oferece a opção de dar de presente, por e-mail, a qualquer destinatário, uma árvore fincada em sua intenção nos confins da Amazônia.

É preciso uma certa fé para vislumbrar a redenção da Amazônia em caminhos como o do Ecoogler. Terça-feira, na hora do almoço, o site, que tem páginas de acesso em inglês, espanhol e italiano, registrava ao todo 7.899.914 acessos. Trocada em miúdos, essa audiência representava 789 árvores plantadas. E faltavam 86 folhas para a próxima árvore. Ufa!

Não deu, na primeira visita, para acelerar o fechamento da conta. Afinal, não é todo recém-chegado que tem 86 perguntas prontas para fazer ao Ecoogler. Mas, 24 horas depois, o número de acessos batia em 8.195.657. Num dia, 295.743 pessoas haviam passado por ali. Em seu rastro, o número de árvores saltara a 819. Trinta a mais do que na véspera. Faltavam 4.343 acessos – ou folhas – para completar mais uma muda plantada. Dez minutos depois – ou seja, o tempo de fazer esta subtração – o placar do Ecoogler acusava mais 1.418 consultas. A árvore seguinte estava a pouco mais de duas mil folhas. Raramente pareceu tão concreta a promessa de que devagar se vai longe.

No Ecoogler, a experiência tem a vantagem de sair de graça. Não se perde nada com ele, além do tempo para encontrá-lo pela primeira vez. Daí para a frente, ele pode ser um Google como o outro, sempre de prontidão, no alto da página. A gratuidade ajuda a livrá-lo do da maledicência que paira sobre o mercado de seqüestro mundial do carbono, acusado de vender indulgências ambientais mais ou menos como a Europa medieval traficava descontos na taxa de pecados que cada um levaria para a outra vida. Na época, além de orações, jejuns ou esmolas, valiam pontos na eternidade bancar a construção de templos ou promoção de cruzadas. E os créditos eram negociados por corretores oficiais da misericórdia divina, às vezes de aldeia em aldeia, onde houvesse almas dispostas a acertar as contas com o Purgatório.

Hoje, com cada ser humano carregando uma cota de pecado original calculada em sete toneladas anuais de CO2 per capita, o investimento é mais concreto. Mas nem tanto que cada um possa zerar no fundo do próprio quintal a parte que lhe cabe no efeito estufa. Ainda é preciso acreditar que algum intermediário fará isso em seu nome, lá em cima, ou pelo menos, lá longe. As apostas no varejo do carbono movimentam anualmente mais de 150 milhões de dólares. E crescem sem parar. Não é de hoje que se compram por aí passagens de avião ou carros novos com programas de reflorestamento embutidos no preço. No Brasil, como parte de uma campanha pelo “desmatamento evitado”, o banco HSBC inclui desde o ano passado em suas apólices para seguros de automóveis uma doação automática para duas reservas de araucárias, mantidas pela SPVS no Paraná. Com isso, neutralizam as emissões de seu cano de descarga.

dezenas de tabelas na internet – que costumam ser pelo menos divertidas, e às vezes conseguem ser educativas – para orçar o custo ambiental de nossos hábitos cotidianos e monetizar a compensação on-line, em favor de ativistas que promovam o uso de energia eólica na Índia ou o uso de biocombustores na África. Toda economia em emissões vale créditos. Mas o reflorestamento oferece, como brinde, uma conta que todo mundo é capaz de entender. Uma árvore de bom porte e vida longa tira do ar uns 730 quilos de CO2 por ano, durante mais ou menos um século. Com dez árvores, portanto, limpa-se uma ficha ambiental de uma biografia inteira.

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