Como é público e notório, André Rebouças, engenheiro civil e ferrenho abolicionista que participou da criação da Sociedade Brasileira Contra a Escravidão, era também, segundo Joaquim Nabuco, “geólogo e botânico”. Foi ele quem primeiro propôs o estabelecimento de parques nacionais no Brasil, nos idos de 1876. Rebouças indicou duas áreas: a ilha do Bananal e Sete Quedas. Demorou, mas finalmente – a primeira em 1959 e a segunda em 1961 – as duas áreas foram elevadas à condição de Parques Nacionais pelo poder público. Bem, Sete Quedas foi afundado em 1981, para dar lugar à hidroelétrica de Itaipu. Já a Ilha do Bananal é outra história…
O Parque Nacional do Araguaia foi criado abrangendo toda a ilha do Bananal, a maior ilha quaternária fluvial do mundo, com seus 2 milhões de hectares. Nela, mas principalmente fora dela segundo o Instituto Sócio Ambiental (ISA), habitavam e habitam os grupos indígenas Karajás, Javaés e Ava-Canoeiro, com aproximadamente 3.500 indivíduos. Por este motivo, em 1971, o Parque foi redelimitado, com a anuência de todas partes envolvidas, ficando os indígenas com mais de 1,4 milhões de hectares e restando aproximadamente 550.000 hectares como Parque Nacional, ou seja pouco mais de um terço de sua extensão original.
O Parque Nacional do Araguaia é muito importante porque está situado em zona ecotonal, entre os dois maiores biomas brasileiros, Amazônia e Cerrado, com áreas periodicamente inundáveis, abrigando assim esplêndida biodiversidade, com muitas espécies endêmicas e ameaçadas de extinção. A primeira e drástica redução da área do Parque Nacional em 1971 já foi muito grave sob o ponto de vista de conservação da biodiversidade, pois nos 1,4 milhões de hectares onde vivem ou perambulam os índios, se pesca e se caça sem limites e sem controle.
O impacto destas atividades dos índios, essencialmente para comercialização, é severo nas populações do pirarucu e do tucunaré e de várias espécies protegidas por estarem em processo de extinção na região, como a tartaruga de rio. Os índios também alugam os pastos da ilha para o gado dos fazendeiros vizinhos, a R$2,00 reais por cabeça ao mês, ou seja, menos de um terço do custo que se cobra em propriedades vizinhas. Para expandir os pastos, os índios fazem queimadas em grandes extensões da ilha todos os anos, com gravíssimo dano para a vegetação e para a fauna.
Pior ainda é que os índios, julgando insuficientes os 400 hectares por indivíduo de qualquer idade ou sexo a que já têm direito, decidiram reclamar o restante da terra, quebrando o acordo prévio com respeito ao Parque Nacional. E, para cúmulo do absurdo, o Ministério da Justiça, através de portaria emitida no governo anterior, declarou de posse permanente dos grupos indígenas 400.000 hectares a mais, reduzindo o Parque a apenas 100.000 hectares. Esta portaria facultou aos índios a ocupação do Parque Nacional, expulsando os funcionários do IBAMA e destruindo as construções, lanchas e demais equipamentos que ram empregados na sua fiscalização. O Parque Nacional do Araguaia ficou portanto com uma extensão tecnicamente insuficiente para garantir a preservação de uma amostra dos ecossistemas da ilha do Bananal. O IBAMA, evidentemente, discorda dessa decisão, mas pouco pode fazer, aguardando decisões judiciais. Nem a diretora do Parque pode entrar para fiscalizar a área que teoricamente deveria gerir. A última vez que tentou chegar ao Parque foi detida durante oito horas pelos “guerreiros” da tribo.
Assim, a devastação da ilha do Bananal continua sem freio. O patrimônio natural que Rebouças pretendeu proteger para todos os brasileiros está sendo dilapidado por uns poucos índios, auxiliados por fazendeiros e comerciantes sem escrúpulos, graças à ausência do governo federal, paralisado pelas suas confusões legais e institucionais, protagonizadas neste caso pelo Ministério da Justiça e sua FUNAI e o Ministério do Meio Ambiente e seu IBAMA. Cada dia que transcorre sem uma solução para este conflito implica na perda de recursos valiosos para o futuro do Brasil e, em especial, para o futuro dos próprios índios.
Estes, ao invés de serem orientados a cuidar de seu patrimônio natural, estão sendo empurrados a destruí-lo em troca de benefícios efêmeros. É evidente que se a oportunidade fosse dada aos índios para que manejassem adequadamente os recursos das suas reservas, nunca precisariam invadir as terras das unidades de conservação. Estas áreas estabelecidas como unidades de conservação, garantem, na verdade, o patrimônio dos indígenas brasileiros e de todos os outros brasileiros. Em países como Nova Zelândia e Austrália, entre outros, os indígenas ou aborígines são os primeiros defensores das unidades de conservação.
Será que agora com 1,8 milhões de hectares (514 hectares per capita) os índios da ilha do Bananal vão viver melhor? Será que, com esse território adicional vão alcançar o ideal do desenvolvimento sustentável? Lamentavelmente, a resposta a estas perguntas é evidente: Nada vai mudar para os índios porque seu bem-estar não depende de possuir as terras do agora pequeno Parque Nacional. Destruirão os outros 400.000 hectares para beneficiar pecuaristas, do mesmo modo como fizeram com o resto. Nada vão ganhar. Apenas mais destruição. Então a pergunta é: onde vão parar? Até onde pretendem ir? Que pode ser feito?
A verdade é que muito pode ser feito para resolver casos, e não são poucos no Brasil, como o do Parque Nacional do Araguaia e dos índios da ilha do Bananal. O primeiro e mais importante passo é impor a disciplina da lei e, quando esta não é clara ou determinante, impor o senso comum. Neste caso é óbvio que destruir o Parque não vai beneficiar aos índios que já têm mais terra que a que podem manejar. O Parque, se tivesse a chance de ser bem manejado, poderia ser uma extraordinária fonte de emprego e de oportunidades de negócios legais para os índios, especialmente, mas não exclusivamente, através do ecoturismo e da pesca esportiva.
Não obstante, a solução ao problema deve se dar no próprio território indígena, onde podem se desenvolver atividades econômicas rentáveis e ambientalmente sustentáveis, sem distorcer suas culturas e seus princípios. Ao invés de pesca predatória, podem desenvolver a aquicultura com espécies nativas ou apoiar a pesca esportiva bem controlada; para não exterminar os animais em processo de extinção, podem criá-los e, por exemplo, no lugar do gado podem criar emas e outras espécies nativas; como alternativa a queimar o mato, podem explorá-lo com planos de manejo simples mas efetivos, como a mera rotação da exploração. A lista de opções é enorme e está sendo utilizada por fazendeiros no próprio Estado do Tocantins, ou no vizinho Mato Grosso.
Os exemplos não faltam. O que falta é que a FUNAI faça seu trabalho de dar apoio genuíno e efetivo às comunidades indígenas, ao contrário de apenas pensar em expandir território deixando para trás terra arrasada, como um Átila moderno. A FUNAI deve abandonar seu antiquado discurso paternalista e passar a apoiar o desenvolvimento dos povos indígenas contatados e já imbuídos na cultura e na economia do Brasil. O IBAMA deve ajudá-lo nesta tarefa. O governo brasileiro deve aportar recursos significativos para essa finalidade e não continuar acreditando que dar terra aos índios é suficiente, pois isso é apenas o primeiro passo do desenvolvimento. De outra parte, ambas instituições devem lembrar, a cada momento, que a lei é para todos. Não existe razão alguma para que índios, que vivem em estreito contato com a sociedade brasileira há décadas, como neste caso, possam violar as leis que conhecem perfeitamente. Eles merecem respeito e devem ser tratados como cidadãos.
Pobre Rebouças! Um brasileiro intelectualizado e de grande visão, que soube construir um vínculo claro entre sociedade e natureza, em um país que de muitas formas foi pioneiro na América Latina no estabelecimento de áreas protegidas, ficaria muito triste, creio, ao ver que suas duas maiores propostas, aceitas após quase um século de formuladas, foram destruídas pouco depois, em beneficio do crescimento econômico, no caso de Sete Quedas e da inércia burocrática e dos ciúmes institucionais, no caso do Araguaia.
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