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Projeto de risco

O projeto que cria o Serviço Florestal Brasileiro é confuso e ameaça a preservação. Se é para regular a exploração florestal, melhor fazer outro do zero.

16 de março de 2005 · 19 anos atrás
  • Maria Tereza Jorge Pádua

    Engenheira agrônoma, membro do Conselho da Associação O Eco, membro do Conselho da Fundação Grupo Boticário de Proteção à Nat...

O Projeto de Lei nº 4.776 de 2005, que foi encaminhado pelo Executivo ao Congresso Nacional com solicitação de caráter de urgência, pretensamente visa pôr ordem na gestão das florestas públicas. Mas, na verdade, tudo indica que apenas vai aumentar a confusão já existente. É por isso que os servidores do Ibama e técnicos de outras instituições o rechaçam.

Uma crítica que pode ser feita é sobre a falta de uma ampla discussão com a sociedade de um projeto de lei que muda todas as regras de concessões florestais existentes e cria um serviço específico para fazer a gestão de florestas. O assunto diz respeito eminentemente à região amazônica, na tentativa de “definir um modelo de desenvolvimento econômico para a Amazônia, restrito à exploração florestal”, como afirmam os funcionários do Ibama, na sua carta enviada aos parlamentares. A proposta ignora as Florestas Nacionais já estabelecidas, que somam 19 milhões de hectares e que nunca puderam ser objeto de concessão por motivo de regularização fundiária e por falta de planos de manejo. Mas está claro que as Florestas Nacionais deverão ser passíveis de concessões florestais, pelo menos parte delas. O equívoco é tamanho que nem o Conselho Nacional de Meio Ambiente (Conama) pôde discutir como devia este Projeto de Lei. Embora muitas instituições (até a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, SBPC) e especialistas tenham protestado, a ampla discussão pública, que tanto prega o PT, restringiu-se aos interessados no assunto, em especial ao Ministério do Meio Ambiente.

Esse projeto parece estar inspirado na moda (por exemplo, do Peru e Bolívia e antes do Chile, entre outros) de criar uma entidade do governo para manejar de forma empresarial o processo de licitações, concessões e contratos com o setor privado que aproveita recursos florestais, que são do Estado. Nesses países, em especial no Peru e na Bolívia, praticamente não existem florestas naturais privadas. Processos de reforma agrária drástica, pela sua própria história, fazem com que quase 100% da Amazônia sejam terras públicas, excluindo as que foram concedidas como propriedades para se fazer agricultura ou pecuária. Por isso, nesses países, o problema do mecanismo de uso das florestas por particulares é complexo. Lá existem leis florestais recentes que estipulam as bases do manejo florestal. Assim, as normas das entidades que fazem a gestão, também muito recentes, limitam-se a questões de administração das relações com as empresas privadas.

O Projeto de Lei agora apresentado para o Brasil pretende suprir a falta de uma legislação moderna a respeito do assunto, pois a nossa Lei Florestal é praticamente a mesma de 1965, e criar ao mesmo tempo o Serviço Florestal Brasileiro (SFB) para gerir as concessões florestais. Esquece a existência do Ibama, embora deixe com ele todos os ônus da fiscalização, criação e manejo das Florestas Nacionais, Reservas Extrativistas e Reservas de Desenvolvimento Sustentável. Parece que o novo Serviço Florestal só terá o “filé mignon” da questão, que é a exploração florestal pelo setor privado. O texto ora apresentado é complexo, contraditório e confuso. Por exemplo, estabelece uma profusão de conselhos, diretorias, um Fundo Nacional de Desenvolvimento Florestal (FNDF), novos cadastros e registros. Além do mais, vai precisar de uma enorme regulamentação. O pior é que não é atraente para o setor privado, que requer regras claras, pois é uma legislação praticamente impossível de se cumprir e de alto risco para os investidores.

É interessante notar que, levando em conta o que se menciona abaixo, esta lei deverá administrar uma porcentagem mínima das florestas naturais. Do total de florestas naturais do país, podemos inferir as seguintes dificuldades:

• As florestas da Mata Atlântica não podem, por lei, ser exploradas ou, tecnicamente, não devem ser exploradas.
• As florestas do Cerrado e da Caatinga, assim como as do Sul, que são florestas residuais ou em extinção, não deveriam ser exploradas.
• As matas das Florestas Nacionais já estabelecidas na Amazônia, em geral, não podem ter concessão por causa da situação fundiária. Poder entregá-las em concessão implica, previamente, em um esforço de saneamento legal que não foi feito em décadas.
• O Projeto de Lei não trata das florestas naturais das reservas indígenas, que somam mais de 110 milhões de hectares.
• A Lei não precisa tratar de florestas naturais em Reservas Extrativistas, em Áreas de Proteção Ambiental ou em Reservas de Uso Sustentável, pois o essencial das regras para as mesmas já existe na Lei do Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC) e no seu decreto de regulamentação.

Em conseqüência, não fica claro por que fazer uma Lei tão complexa para uma fração relativamente pequena das florestas naturais passíveis de concessão.

O projeto não estabelece pautas claras ou identificáveis de sustentabilidade da exploração florestal, o que é gravíssimo conhecendo a realidade atual da exploração florestal, meramente extrativa (só menciona, profusamente, a palavra “sustentável”):

• Não estabelece rotação florestal mínima (por exemplo, 30-40 anos), nem normas de exploração anual. Isso não incentiva o manejo, que sempre é de longo prazo.
• Ao contrário, fixa prazos de 10 anos previstos para a gestão direta – quer dizer aqueles contratos feitos com não-governamentais, OSCIPs e empresas – e 20 anos máximos previstos para os contratos exclusivos para a exploração dos serviços florestais.
• Não explica quem vai financiar ou fazer os estudos dos impactos ambientais provenientes do manejo florestal nas Florestas Nacionais com matas naturais.
• Nem fala da certificação florestal, tão em moda e fundamental para fins de exportação e mesmo de usos internos corretos, sob o ponto de vista legal e técnico.
• Nem menciona a obrigatoriedade, ou pelo menos, os incentivos para associar a exploração florestal ao uso industrial in situ (levar a indústria para a mata), para impulsionar o desenvolvimento e o emprego na região onde o empreendimento se localiza.
• Não fala do percentual máximo de resíduos permitidos na mata e na indústria.
• Não menciona as formas admissíveis de extração da madeira, que deveriam evitar a abertura de estradas e clareiras, para a extração de poucas toras ou árvores, nem outras, para se prejudicar menos a cobertura florestal. A extração de árvores menos danosa e também a mais cara é por helicóptero. O transporte da madeira em toras, na Amazônia, deve ser por rios, para se evitar a necessidade de construção de estradas, entre outras medidas de menor impacto.
• Não fala do leque de espécies (comerciais e ainda não comerciais) a serem exploradas.
• Não faz restrições a espécies endêmicas e ameaçadas de extinção e nem apresenta formas de salvaguardá-las em suas áreas de ocorrência.

Na verdade parece deixar tudo para um “plano de manejo”, a ser feito pelos empresários e que não se sabe bem como vai ser feito, nem quem vai aprová-lo e controlá-lo, pois não estabelece os mecanismos que permitiriam aos empresários fazer um plano de manejo razoável:

• Não se dá a possibilidade de que os interessados do setor privado estudem previamente as áreas e que invistam nos inventários florestais, que possibilitem fazer a análise econômica para saber se vão se apresentar para alguma concessão. Fazer inventários florestais e fazer planos de manejo é lento, difícil e caro. Em outros países existem contratos prévios, só para estudos, que reservam as áreas para o interessado, com pagamento de certa quantia por hectare.
• O projeto não esclarece como vai ser correlacionado o plano de manejo das Florestas Nacionais estabelecidas ou criadas pelo Poder Público com o plano de manejo florestal do lote da empresa.
• O projeto obriga os empresários que ganharem a concessão a permitir simultaneamente usos tradicionais da floresta que manejam; e os obriga a dar serviços sociais aos vizinhos. Assim, se complica ainda mais o plano de manejo, já que as empresas vencedoras de licitações não poderão ter o domínio total das atividades, nas áreas concedidas à exploração florestal.
• Não fica claro quem (Ibama ou SFB) vai aprovar e controlar o cumprimento do plano de manejo florestal e das condições contratuais. Quem supervisiona? Ou vão os dois (Ibama e SFB) ter as mesmas funções?
• Tampouco se entende se o SFB vai ou não supervisionar a exploração florestal em Reservas Extrativistas e Reservas de Desenvolvimento Sustentável, já criadas pelo Poder Público.

Para que as empresas se interessem na possibilidade de explorar florestas naturais é preciso que concordem com os preços e direitos a pagar. Mas a lei proposta não define os critérios para que o SFB ou o Ibama estabeleçam o preço florestal (valor de mercado? Nacional ou internacional? Processado menos frete?). O preço será por metro cúbico de madeira (em pé ou em tora?), por hectare, por metro cúbico/hectare, ou o quê?

O texto legal diz que a “exploração” dos serviços ambientais (que erradamente parecem chamar também de “serviços florestais”) não formaria parte do contrato de exploração florestal. Isso levanta as perguntas:

• Por que não? Se uma empresa trabalha corretamente e aplica bem um bom plano de manejo, por que não poderia tirar proveito dos serviços ambientais, dentro das leis que sejam aplicáveis?
• De qualquer modo não fica claro como ou quem usará os serviços ambientais (fixação de CO2, água, turismo, etc.).
• O texto legal menciona o turismo. Será que o SFB vai outorgar concessões para turismo?

Mas talvez o pior deste projeto de lei sejam os novos riscos ambientais que acarretará:

• Como foi explicado antes, ele não garante o uso sustentável das florestas, nem estabelece critérios mínimos para o mesmo.
• Inclui para manejo sustentável as áreas naturais da Mata Atlântica, Cerrado e Caatinga, onde quase não se tem mais florestas naturais, atentando contra outras leis e normas já vigentes, que protegem as florestas desses biomas. De todas as formas é um absurdo se pensar em permitir manejo sustentável no pouco que resta de Mata Atlântica, ou seja, 7% da sua cobertura inicial, ou de outros ecossistemas igualmente ameaçados, como a Caatinga.
• Garante a legitimação de posse de área contínua de 300 hectares por família, sem evidentemente ser econômico, pois a exploração florestal é sabidamente difícil (e requer investimentos elevados) em floresta tão heterogênea como a amazônica. O que vai acontecer é a primeira retirada de madeira, sem plano de nenhuma espécie e o conseqüente desmatamento da área para estabelecer pecuária ou agricultura, pois em 300 hectares não tem como ter manejo sustentável, em florestas naturais na Amazônia.

Diante das observações acima enumeradas e do perigo potencial deste projeto de lei, principalmente para a conservação da natureza, da forma como está redigido, poder-se-ia considerar alternativas. Não se precisa de uma lei tão complexa para administrar o patrimônio florestal, que ainda não está em poder de privados ou de indígenas. O Ibama pode fazer isso sozinho. Criar-se um serviço florestal só para dar concessões de exploração de produtos florestais, parece desnecessário e de toda forma esvazia o Ibama e confunde funções. Uma alternativa melhor seria refazer todo o projeto, com soluções para as observações já levantadas e outras de somenos importância, mas desejáveis, com critérios claros de planos de manejo sustentáveis, bem como da exigência da certificação florestal. Para se ter a regularização fundiária das Florestas Nacionais, fazer os planos de manejo e se ter uma fiscalização adequada, fazem-se necessários muitos recursos financeiros e humanos, que certamente o PT, que não tem nenhuma simpatia pela natureza, não viabilizará.

O cenário menos desejável sem dúvida é aprovar este projeto de lei na forma como está, ou com os destaques draconianos já apresentados por muitos deputados.

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