O Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama) analisou e aprovou, no dia 18 de maio, uma proposta de resolução que diz das excepcionalidades que possibilitem a supressão de vegetação e intervenção em Áreas de Preservação Permanente, ou APPs, como todos as conhecem (leia a íntegra da resolução, em arquivo .pdf).
Se existe um dispositivo legal que “pegou” no Brasil foi este das APPs. A população em geral, os técnicos e fiscais, os prefeitos, todos sabem do que se trata e têm certo receio de não obedecer a legislação a respeito. O Ministério Público está atento ao seu cumprimento e cobra do executivo a fiscalização, as vistorias, os licenciamentos, as autorizações, muitas vezes em tal quantidade que os órgãos executivos ficam atolados de trabalho sem condições de fiscalizar ou vistoriar tudo o que se demanda. Aí entra o Judiciário e os órgãos ficam ainda mais amedontrados, se não possuem técnicos suficientes ou bens de consumo para cumprir as ordens dadas, pois o próximo passo é a detenção.
Que triste se ler agora esta minuta de Resolução que dá uma extrema lassitude às Áreas de Preservação Permanente, pelo só efeito da Lei. É verdade que o Código Florestal de 1965 (Lei 4771) precisava e precisa de modificações e atualizações, mas não de violações. Para início de conversa, as APPs foram concebidas desde há muito e existem porque prestam serviços ambientais fundamentais para o homem e sua qualidade de vida, como produção e qualidade da água, controle de erosão e deslizamentos, proteção de vales, da diversidade biológica, dos micro-climas, das paisagens e assim por diante.
Acontece que o homem moderno teve a chance de mudar, com a desculpa do radicalismo da Lei de 65, as Áreas de Preservação Permanente. Justo no momento em que impera no Brasil um sistemático e avassalador combate contra a natureza. Tudo pode ser feito em nome do agrobusiness, da geração de energia, da mineração. O que interessa é o lucro fácil aqui e agora, e o resto que se dane. O retrocesso é enorme. No mesmo dia em que se divulgam os índices do desmatamento na Amazônia, aprova-se no Conama esta resolução, que obviamente também tem coisas boas, mas que descaracteriza e fragiliza as APPs, que todos deveriam defender até a morte, pois são necessárias à vida.
A resolução dispõe sobre as obras ou atividades de utilidade pública ou interesse social necessárias para transporte, saneamento e energia e adiciona, o que não existia na legislação pregressa, “a realização de ações consideradas de baixo impacto ambiental”, cujas intervenções e supressões de vegetação nas APPs podem ser autorizadas pelo órgão ambiental competente. Para início de conversa é muito difícil se ter órgãos ambientais competentes para licenciarem nas APPs obras consideradas de baixo impacto ambiental, quanto mais não seja porque faltam técnicos em quantidade e em qualidade para avaliarem os baixos impactos. Mas o que são os baixos impactos? Evidentemente depende do meu ou do seu ponto de vista ou preparo técnico. É extremamente subjetivo.
Mas vamos por partes, embora seja muito difícil analisar-se toda a resolução em detalhes, sem ser profundamente chata ou pedante. Vou me restringir aos aspectos mais relevantes sob o meu ponto de vista, que porém não se esgotam com esta breve crítica.
Utilidade pública? São consideradas como tais as obras essenciais de infra-estrutura destinadas aos serviços públicos de transporte, saneamento e energia, as atividades de segurança nacional e proteção sanitária, as de pesquisas e extração de substâncias minerais, a implantação de área verde urbana e pesquisa arqueológica.
Interesse social? São consideradas como tais as atividades que protegem a vegetação nativa, como prevenção, combate e controle do fogo, controle de erosão, erradicação de espécies invasoras, proteção de plantio de nativas, manejo agroflorestal sustentável em pequenas propriedades ou posses rurais e ordenamento territorial de ocupações habitacionais consolidadas.
Tudo bem até ai, embora de cara se pergunte: o que é manejo agroflorestal sustentável? Voltaremos ao assunto mais tarde e, também, o que são ocupações habitacionais consolidadas? Não se menciona, ainda, nas APPs, a regeneração natural da vegetação nativa.
Já no miolo da questão, ou seja, no que a resolução considera passível de supressão da vegetação, dispõe-se que se pode autorizar a intervenção na APP quando o requerente demonstrar a viabilidade econômico-financeira total do empreendimento. Este aspecto é muito grave, pois os benefícios dos serviços ambientais das APPs teriam de ser mensurados, pois seguramente serão, ao longo do tempo, mais rentáveis para a sociedade como um todo, que para a empresa que vai utilizar a APP.
Depois se diz que as atividades de mineração nas APPs necessitam de Estudos de Impactos Ambientais e do Relatório de Impacto Ambiental, os famosos Eia/Rima. Menos mal. Doce ilusão. À frente se dispensa o Eia/Rima quando o empreendimento for de “baixo impacto ambiental”. Desconfio que os políticos sejam os que vão dizer em cada caso quais são, porque os técnicos seriam trucidados. Pior de tudo, permite-se nas APPs os depósitos de estéril e rejeitos, em determinados casos. Não há caso, viramos depósitos de lixos.
Depois de tudo reza a resolução que os empreendedores serão obrigados a recuperar o meio ambiente!!! Como, cara pálida, isso será possível, após toda a mineração e destruição? Pode-se, é evidente, dar certa maquiada, não mais que isso.
O negócio de implantação de Área Verde nos municípios é realmente, me perdoem, risível. Parece que esqueceram a Lei do Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC) com os Parques Naturais Municipais nela previstos, os Planos de Manejo e até mesmo que o pessoal urina e defeca, pois sanitários não estão permitidos nas mesmas. Além do mais, as áreas verdes municipais, com parque infantil, ciclovias e tudo o mais, podem ser declaradas de utilidade pública, no que concerne a APPs.
Bem, das ocupações consolidadas em áreas urbanas, o órgão ambiental pode declará-las de interesse social, ou seja, serão de interesse social as ocupações, mesmo que nas margens de cursos de água, lagos e lagoas, em topo de morro, montanhas e restingas. O setor imobiliário deve estar rindo à toa. Claro que existem algumas exigências, mas no frigir dos ovos lá se foram as APPs urbanas, como já se tentou no passado e não se conseguiu. Agora o Conama e o governo conseguiram. Viva!
Nas possibilidades de se considerar o uso das APPs como de baixo impacto ambiental estão, ainda, “construção de moradia de agricultores familiares, remanescentes de comunidades quilombolas e outras populações extrativistas e tradicionais em áreas rurais da região amazônica ou do Pantanal, onde o abastecimento de água se dê pelo esforço próprio dos moradores…”. Mas a nossa Constituição não reza que todos são iguais perante a Lei? Como fica quem for de classe média ou alta? É pecado ser um pouco mais abastado?
Mas o mais gozado é que se afirma que “em todos os casos, incluídos os reconhecidos pelo Conselho Estadual de Meio Ambiente, a supressão eventual e de baixo impacto ambiental não poderá comprometer as funções ambientais destes espaços…”. O grifo é meu. Digam-me, por favor, como isso é possível? Alguma intervenção divina? E assim seguem as flagrantes contradições.
A Lei 4771, que instituiu o Código Florestal de 1965, realmente exagerou em certos aspectos de declaração de locais como Áreas de Preservação Permanente. Se fosse cumprida à risca, quase todo o Pantanal seria APP, bem como a grande maioria das várzeas da Amazônia, todos os topos de morros, dentre outros exageros menores. Em contrapartida, esta resolução do Conama exacerba na contradição e abertura de áreas de APPs para uso por poucos, que deveriam ser protegidas para o bem da coletividade e do país, inclusive para a sua saúde financeira, pois os desbarrancamentos, as mortes, as erosões, o entupimento de vales, a contaminação de mananciais, a flora e a fauna, a paisagem, custam caro para o povo brasileiro e dependem, em grande medida, exatamente das APPs.
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