Só premonição pode explicar a coincidência de uma ave com um nome tão sugestivo. A saíra apunhalada permaneceu longe da vista dos especialistas por meio século e era, assim, considerada extinta. Foi descrita, segundo Helmut Sick – o mais famoso ornitólogo brasileiro, – em 1870, através de um único exemplar procedente da margem esquerda do rio Paraíba do Sul em Muriaé (MG), conservado no Museu de Berlim. O próprio Sick viu um bando de oito em 1941, a mil metros de altitude, na região serrana do Espírito Santo, uma única vez. Foi redescoberta em 1998 em um resquício de mata atlântica de altitude, outra vez no mesmo estado. Mais precisamente, em duas propriedades particulares na região serrana do Espírito Santo.
É difícil saber se este reencontro terminará em clima de felicidade. Depende do tamanho da população residual da espécie. Depende se os proprietários vão manter ou não os fragmentos florestais de suas propriedades. Depende do valor econômico que uma espécie tão rara como essa possa alcançar entre os traficantes de animais. Salvar uma espécie com uma população em estado tão extraordinariamente precário significa, primeiramente, salvar seu habitat, ou seja, sua casa, incluindo suas possibilidades de que encontre o que comer, assim como grupos novos que mantenham o vigor genético da espécie. Isso, outra vez, depende muito da sofisticação de seus hábitos, que hoje ninguém conhece bem.
Por que apunhalada? Sem dúvida, apunhalada pelo bicho homem que tudo fez para extingui-la. Pelos madeireiros, agricultores, incendiários, caçadores e, igualmente, pelas autoridades que não agiram para protegê-la. O Espírito Santo é um dos mais desmatados de toda a Mata Atlântica e a saíra apunhalada não deve ser a única espécie que sofreu com toda a devastação da região. Extinção é para sempre e essa saíra esteve muito perto de desaparecer da face da Terra. Mas felizmente já existem instituições tentando salvar a apunhalada.
Redescoberta por ornitólogos e adotada pela Associação para a Conservação das Aves do Brasil (Save), a saíra ficou sujeita a observações que revelaram que a espécie é restrita às matas de altitude bem preservadas e, até onde foi possível constatar, que sua população se limitaria a duas únicas áreas. Esses locais, como outros na região, estão ameaçados pelo desmatamento que ainda avança. A ong Birdlife International, juntamente com a Save, começaram a estudá-la em 2004, principalmente com relação aos aspectos quase desconhecidos da biologia da espécie. Conhecer os detalhes da sua distribuição atual e da sua biologia pode ser crucial para definir a estratégia necessária para salvar a espécie, se houver tempo. Por isso, um terceiro ator entrou em cena: A Fundação O Boticário de Proteção à Natureza (FBPN), que aprovou em julho deste ano um financiamento adicional para detectá-la em outros fragmentos florestais do Espírito Santo e, precisamente, para se estabelecer medidas que possam garantir sua sobrevivência, incluindo o eventual estabelecimento de novas áreas protegidas, públicas ou privadas.
O Espírito Santo é um estado que, infelizmente, tem pouquíssimas áreas protegidas não obstante toda sua pujante, mas maltratada riqueza biótica. A saíra apunhalada, cujo nome científico é Nemosia rourei, é uma ave particularmente bela. Seu nome vulgar é conseqüência precisamente da cor vermelho-sangue que caracteriza sua garganta e papo, formando uma placa pontuda. Os que já viram a ave viva dizem que a sua beleza é tão especial que merece se converter na ave símbolo da região serrana do estado. Estimam que a sua observação por bird watchers do mundo todo pode trazer muitos benefícios econômicos, além de orgulho, para os felizes proprietários dos fragmentos florestais onde ainda existe. Assim teriam algum tipo de recompensa por preservar a mata. Salvá-la, também, dignificará ainda mais o importante trabalho das ongs envolvidas neste esforço.
Não é tão raro assim “redescobrir” espécies da fauna superior que parecem extintas por décadas nem tampouco descobrir espécies novas inclusive de animais de grande porte. Isso não é o fruto de erros dos especialistas. O fato é que, realmente, esses animais estão sendo submetidos a processos de extinção que evidentemente são mais acentuados em espécies com distribuição natural restrita, como parece ser o caso da nossa saíra. De uma parte, a redução do tamanho dos habitats concentra neles os animais e o trabalho de pesquisadores. De outra, existe agora um número muito maior de profissionais capacitados para reconhecer as espécies da fauna silvestre. Esses são os motivos pelo quais na última década se reencontrassem várias espécies “extintas” e até umas poucas consideradas novas no Brasil. O estranho, no entanto, é que nunca aconteceu de se “redescobrir” ou menos ainda “descobrir” um animal superior com população abundante. Lamentavelmente, à margem da felicidade implícita nesses fatos, todavia eles demonstram indiretamente que a situação da fauna natural brasileira é, cada dia, mais crítica.
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