Colunas

Meus amigos e as APPs

A resolução do Conama que libera Áreas de Preservação Permanente (APPs) tornou legal o que era ilegal. Quem antes acreditou na lei, ficou no prejuízo.

9 de março de 2006 · 19 anos atrás
  • Maria Tereza Jorge Pádua

    Engenheira agrônoma, membro do Conselho da Associação O Eco, membro do Conselho da Fundação Grupo Boticário de Proteção à Nat...

A última resolução do Conama que determina a flexibilização de Áreas de Preservação Permanente (APPs), sob o pretexto de interesse social e utilidade pública, me coloca diante de um sério dilema.

Falo ou não para amigos meus que tiveram prejuízos econômicos significativos no passado sobre a mudança das regras pela nova resolução de 22 de fevereiro deste ano? Explico que pagaram caro por serem honestos? Ou não digo nada e deixo que descubram, sei lá quando, por iniciativa própria?

Viver numa cidade pequena bem perto de Brasília é fascinante. Lei, disciplina e ordem só existem para nós os “estrangeiros”, ou seja, os que vieram de fora. Para os nativos sua aplicabilidade depende do sobrenome. Quando passou a malfadada resolução do Conama sobre as APPs logo pensei: E agora José? Como explicar para leigos que tudo mudou e o que era ilegal virou, como num passe de mágica, legal e às vezes parece até que desejável? Que palavras vou usar para justificar que as minhas recomendações dadas a eles há um ano ou mais hoje não valem mais nada? Mas vamos aos casos realmente ocorridos com amigos pessoais, aqui em Pirenópolis.

O caso do Jorge

Jorge é um dos maiores geólogos do Brasil, foi professor da Universidade de Brasília (UnB) e como muitos de nós ele se encantou pela pretensa tranqüilidade de Pirenópolis, cidade histórica fundada em 1724, tombada pelo IPHAN, a apenas 140 km de Brasília e a 110 km de Goiânia. Comprou um sítio lindo, com pouco mais de 5 hectares, cortado pelo rio Barriguda com largura média de 3 a 6 metros e com uma bonita cachoeira. Construiu uma bela casa com churrasqueira, trilha e demais infra-estrutura a pouco menos de 30 metros do rio. Quando fomos visitá-lo, alertamos ao Jorge que ele tinha adentrado numa APP.

Alguns meses mais tarde, devido a uma briga de caráter político entre alguns dos vizinhos do rio Barriguda e as autoridades municipais, a prefeitura determinou uma inspeção na bacia e recomendou a destruição das inúmeras construções localizadas na APP. Embora a ordem de demolição nunca tenha sido emitida, por ser legalista e honesto, Jorge de moto próprio destruiu sua construção e se desencantou com Pirenópolis. Em vão, Jorge, em vão.

Hoje tudo estaria dentro da lei. Outros, na mesma bacia, que tinham invadido as então APPs com construções diversas ou reformas de casas para pousadas, nada fizeram e nada terão que fazer, pois hoje já estão legalizados se ficam a mais de 15 metros do rio e se as construções forem consideradas consolidadas. É um enorme paradoxo este, mas assim é graças ao Conama.

O caso do José

José Carlos e sua esposa moram em Goiânia, mas compraram um hotel em construção localizado na cidade de Pirenópolis e tocaram a obra com muito dinheiro para as posses deles e com grande esforço. Não perceberam que tinham invadido 2 metros de uma APP. A Prefeitura notificou-os de que a obra adentrara numa APP e que por não ter respeitado os 30 metros exigidos a obra deveria ser paralisada. Na verdade, isso dos 30 metros era discutível, pois o riozinho, na verdade um esgoto urbano a céu aberto, fora retificado artificialmente por outros. Assim o fato de ter usado os 2 metros era superlativamente relativo.

Nada comoveu aos funcionários do prefeito de então que, diga-se de passagem, nesses dias construiu, com apoio municipal, sua residência de campo exatamente sobre um riacho, em plena APP para facilitar a evacuação dos seus resíduos domésticos. A obra de José Carlos foi embargada durante doze meses. Bem, é fácil imaginar que para pessoas que não são muito ricas este acontecimento é fatal. Eles já haviam vendido apartamentos do hotel e tiveram que devolver o dinheiro. Estão agora à beira da falência.

Propuseram plantar espécies nativas na margem do riacho que era então APP, mas lhes foi negado o direito. Colocaram o hotel à venda, sem finalizá-lo. Preciso dizer ao Zé que agora não são mais os 30 metros, que seriam só 15 metros. Mas quem vai pagar o prejuízo? Por que a obra não foi embargada antes de seu início, quando o dono era um vizinho da localidade? Por que deixaram até acontecer cerimônia de inauguração para embargar depois? Isso é injusto. Estou me armando de coragem para dar a nova ao Zé. Dizer: foi tudo em vão. Você perdeu tudo à toa.

O caso do Fernando

Fernando é um bom engenheiro civil daqui. Tem bom gosto. Foi o construtor da casa de nossa chácara. Também foi secretário de Meio Ambiente do município. Ele é quem tem a pousada na chácara vizinha do Jorge, que estava então na APP. Mas, espertamente, não destruiu sua casa e nem precisará fazê-lo agora. Também foi ele quem embargou ou mandou embargar o hotel do Zé. Tendo em vista a relatividade e poder dado aos municípios de declarar de utilidade pública ou interesse social o que eram APPs, lucra quem burlou, quem não cumpriu a legislação ou quem fez corpo mole. Como pode ser? Onde está o direito de igualdade do cidadão?

Mineração

O meu vizinho da chácara, como nós localizado em uma Área de Proteção Ambiental (APA), que circunda um Parque Estadual, o da Serra dos Pireneus, explora a pedra de Pirenópolis em pleno leito do riozinho, da mesma bacia do que passa na chácara do Jorge, do Fernando e na minha. Já destruiu grande parte da nascente e até acumulou seus resíduos no leito do riacho fazendo uma “ponte”. Nada lhe aconteceu até agora e nem vai acontecer se declararem de interesse social ou utilidade pública sua exploração de pedras que são vendidas eminentemente para os pisos das piscinas de Brasília. Só ele ganha com sua exploração chinfrim, mas sabe-se lá o seu sobrenome. Aqui o que vale é o sobrenome. Mas, como é possível que a exploração de pedras para usos banais possa ser declarada de interesse nacional e utilidade pública? Só o Conama poderá responder a isso!

Enfim…

O que mais me revolta na resolução do Conama que libera para uso muito das APPs do Brasil é sua subjetividade e relatividade. O que é baixo impacto para você, pode ser um altíssimo impacto para mim, como é o caso de meu vizinho que explora as pedras de Pirenópolis dentro do riacho que abastece minha chácara. Tudo depende agora de interpretações.

Na cidade havia uma boa mata ciliar protegendo o rio das Almas. Parte da APP já foi destruída para dar lugar a uma rua, bancos, um local municipal para recepções e um parquezinho infantil. Já estão planejados campos de esporte e outras obras. Em breve não ficará nenhuma árvore na mata ciliar. Que fazer? Qualquer atividade destruidora numa APP agora está ou pode ser legal, dependendo apenas da competência dos advogados e juristas para interpretar a resolução e da ignorância ou desonestidade das autoridades locais.

Leia também

Análises
16 de dezembro de 2024

Reconectar com a natureza para evitar o fim do mundo

Muito além de uma solução técnica, a Restauração Ecológica Integral é um chamado para agir contra a maior crise socioambiental de nosso tempo

Colunas
13 de dezembro de 2024

A divulgação é o remédio

Na década de 1940, a farmacêutica Roche editou as Coleções Artísticas Roche, 210 prospectos com gravuras e textos de divulgação científica que acompanhavam os informes publicitários da marca

Reportagens
13 de dezembro de 2024

Entrevista: ‘É do interesse da China apoiar os planos ambientais do Brasil’

Brasil pode ampliar a cooperação com a China para impulsionar sustentabilidade na diplomacia global, afirma Maiara Folly, da Plataforma CIPÓ

Mais de ((o))eco

Deixe uma resposta

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.