De há muito venho dizendo que a categoria de manejo Área de Proteção Ambiental (APA), prevista na Lei do Sistema Nacional de Unidades de Conservação ou SNUC, como ficou conhecido, é a mais frágil de todas. Talvez não exageraríamos se disséssemos que é inútil em nosso país. Isto porque é a declaração de proteção de uma área que fica, em quase sua totalidade ou em sua totalidade, nas mãos de particulares, onde as restrições de uso, portanto, são aquelas da legislação orgânica válida para qualquer propriedade no país. Em outras palavras, só se pode restringir em uma APA o mesmo que se pode restringir em qualquer outro lugar, APA ou não.
Por isso mesmo é a categoria de manejo que mais proliferou, tanto no nível federal, como nos estaduais. Em vários artigos já mencionamos o quanto o governo brasileiro já gastou para implementar APAs que jamais funcionaram, como as do Descoberto e a de São Bartolomeu no DF, entre muitas outras. Chegou-se a gastar, no passado, a bagatela de 15 milhões de dólares em nove APAs, o que significou, no mesmo período, menos do que se aplicou em todas as demais unidades de conservação. Mas, como é a categoria mais fácil de ser decretada e mais útil para fins demagógicos, foi usada a torto e direito chegando-se ao absurdo de se estabelecer APA até no Jockey Club de uma capital, ou no bairro de Laranjeiras no Rio. É isso mesmo, APA serve para tudo.
Mas, algumas chegaram a ser importantes como um instrumento de certa proteção, ou chamada de atenção para o entorno de unidades de conservação de verdade, como Parques Nacionais ou Estaduais, Estações Ecológicas ou Reservas Biológicas. Até mesmo para unidades de conservação de uso direto dos recursos naturais, algumas APAs foram importantes. Sempre temporariamente. Havia, entretanto, uma ou duas que teimavam em desmentir nossos argumentos contra se aplicar recursos em APAs e uma delas, talvez a mais bem manejada no Brasil, era a de Guaraqueçaba, no estado do Paraná. Esta APA abriga 312 espécies florestais, 254 espécies de aves, 118 de mamíferos, 50 espécies de répteis e 18 famílias da fauna aquática. Ali vivem oito espécies de aves e sete de mamíferos ameaçadas de extinção. Favorecida pelo isolamento geográfico, a APA de Guaraqueçaba é considerada uma das regiões de maior importância para a conservação da biodiversidade no mundo.
A APA de Guaraqueçaba, criada em 1985, com 314 mil hectares, está em uma região privilegiada de Mata Atlântica, quer seja pela exuberância de sua natureza, mas, também, pelo número de unidades de conservação, que no seu conjunto formam um importante corredor biológico. Lá estão o Parque Nacional do Superagüi, a RPPN de Salto Morato, da Fundação O Boticário de Proteção à Natureza, e muito perto estão unidades de conservação do Estado de São Paulo e Paraná como os parques estaduais da Ilha do Cardoso, Intervales, Petar, Marumbi, Ilha do Mel, etc.
Agora, como já ocorreu com a grande maioria das APAs, essa se encontra sob uma ameaça gravíssima. Desde 2003, famílias ligadas ao Movimento dos Sem-Terra vêm se instalando naquela que é a parte menos degradada da Mata Atlântica no país, portanto no mundo, pois só nós temos esse bioma, com o beneplácito e o apoio de todas as autoridades envolvidas. Claro está que são baseadas no argumento que se pode fazer “desenvolvimento sustentável” na região e, ainda, que seriam poucas famílias a serem assentadas. Parece brincadeira! Como se o governo pudesse limitar a seu bel prazer o número de famílias! A realidade é bem outra.
Um relatório da Sociedade de Proteção da Vida Silvestre (SPVS), uma séria e antiga ONG do Paraná que está há mais de duas décadas trabalhando na área, diz: “Inúmeros dados, de ordem técnica, econômica e histórica, mostram que isso (novos assentamentos rurais) é inviável. Admitir mais assentamentos na APA de Guaraqueçaba representaria a abertura de um perigoso precedente, com sérias conseqüências ambientais e socioeconômicas. Além disso, as famílias eventualmente assentadas estariam condenadas a uma experiência com chances de sucesso muito reduzidas, uma vez que a região tem baixa aptidão para a atividade agrícola”.
O relatório continua dizendo: “A total incompatibilidade de qualquer processo de assentamento na extensão da APA de Guaraqueçaba é destacada em relatório técnico elaborado pelo Instituto Ambiental do Paraná (IAP) e pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), em 2004. A preocupação expressa nesse documento são as mesmas das entidades ambientalistas comprometidas com a conservação da região. Na área da APA já vivem cerca de 10 mil habitantes, distribuídos entre Guaraqueçaba e parte dos municípios de Antonina, Paranaguá e Campina Grande do Sul. Cerca de 60% das famílias são formadas por asssalariados e pequenos produtores, pouco tecnificados, vivendo em condições de subdesenvolvimento. Guaraqueçaba – município que abriga a maior parte da APA – tem um dos piores índices de Desenvolvimento Humano (IDH) do Paraná, superior apenas ao de dois dos 399 municípios do Estado.”
Segundo as informações disponíveis, a presença do MST na APA de Guaraqueçaba data de janeiro de 2003, quando, “….a convite de um posseiro local, o movimento implantou um acampamento numa pequena propriedade localizada na comunidade do rio Pequeno, na bacia do rio Cachoeira, município de Antonina. Em abril de 2004 – definido pelo MST como o Abril Vermelho, em alusão ao plano de invadir grande número de propriedades em todo o país -, os acampados ocuparam três propriedades rurais particulares localizadas na APA de Guaraqueçaba. A instalação dos primeiros acampamentos do MST na APA de Guaraqueçaba motivou discursos segundo os quais a região comportaria novos assentamentos rurais, desde que implantados conforme um modelo de desenvolvimento sustentável. Tal possibilidade embute riscos muito sérios, não apenas para o meio ambiente, mas também para a sustentabilidade das comunidades locais e das famílias que eventualmente vierem a ser assentadas na região.”
Obviamente as autoridades que favorecem esta ocupação das propriedades da região da APA de Guaraqueçaba esquecem o que os relatórios indicam: “….. os solos são rasos e de baixa fertilidade e, portanto, não se prestam à atividade agrícola convencional. Condições precárias de acesso e restrições ambientais estabelecidas em lei completam o quadro desfavorável a esse tipo de atividade. Também, apesar de todos os avanços obtidos nos últimos anos, os projetos em curso no Litoral Norte para adequar o uso dos recursos naturais ainda não conseguiram oferecer alternativas para a maior parte das comunidades locais. A conversão à agricultura orgânica, por exemplo, atinge por enquanto pouco mais de 100 pequenos produtores. A chegada de novas famílias agravaria o quadro de pobreza”. Os relatórios continuam indicando que “atividades capazes de aliar interesses econômicos e ecológicos – como o cultivo do palmito Jussara – precisam de no mínimo uma década para se estabelecerem. São, portanto, incompatíveis com a necessidade de curto prazo dos sem-terra e que sem alternativa de subsistência, muitas famílias da APA de Guaraqueçaba já vivem da exploração descontrolada dos recursos naturais, por meio de caça, pesca e extração ilegal de palmito, pressionando seriamente a biodiversidade. Assentamentos na região certamente agravariam o quadro, com graves conseqüências para essa unidade de conservação”.
De outra parte, como aponta a SPVS, o “histórico da ação do MST e do Incra em outras áreas de proteção ambiental do Estado não permite acreditar na possibilidade de implantação de assentamentos sem degradação ambiental. O exemplo mais clássico é a derrubada de 25 mil hectares de floresta com Araucária em estágio avançado de conservação, numa área da Araupel em Quedas do Iguaçu, desapropriada pelo Incra em 1997 e 1999”.
A pretensão de se agravar as problemáticas sociais, econômicas e ambientais de uma área que evidentemente não pode suportar maior pressão humana do que a que já tem é absurda e responde seguramente a diretivas políticas que não se importam com o futuro das populações atuais e menos, ainda, com o dos sem terra que serão assentados e logo, como sempre, abandonados a sua própria sorte. Porém, ao mesmo tempo, essa ação demonstra que as APAs não garantem a preservação dos recursos naturais nem da biodiversidade.
Guaraqueçaba, como antes mencionado, era uma das únicas APAs do país que parecia encaminhada para ser, na realidade, o que a lei diz que deve ser. Era a exceção que confirmava a regra, de que elas nada ou quase nada protegem. Como é possível, então, que órgãos do governo federal e estadual, inclusive os responsáveis pela área ambiental, possam ficar impassíveis com o início do fim da APA de Guaraqueçaba?
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