Colunas

Os desastres “provocados” pelas chuvas

Em vez das chuvas, as interferências humanas em áreas de preservação permanente causam as tragédias de todo verão. E o poder público nada faz para evitar irregularidades.

7 de fevereiro de 2007 · 17 anos atrás
  • Maria Tereza Jorge Pádua

    Engenheira agrônoma, membro do Conselho da Associação O Eco, membro do Conselho da Fundação Grupo Boticário de Proteção à Nat...

Há exatamente um ano publiquei uma coluna aqui em O Eco com o título: Morte anunciada, onde eu já dizia que as mortes por inundação e desbarrancamentos aumentariam muito, principalmente graças à flexibilização das Áreas de Preservação Permanentes (APPs) autorizada pelo CONAMA em resolução do dia 22 de fevereiro de 2006. E, verdade também seja dita, que há décadas não existe proteção efetiva dessas APPs.

A história

O Código Florestal em vigor no Brasil data de 1965. É impressionante notar que já naquela data, com uma realidade bem menos angustiante, os ambientalistas que o prepararam se preocupavam seriamente com os serviços ambientais advindos da conservação da natureza. No caso das APPs e também das reservas legais (que variavam de 20% na região extra-amazônica a 50% na Amazônia) é particularmente surpreendente que o referido Código, mesmo em uma época que ainda havia muito de Mata Atlântica, de Cerrado e quase tudo da Amazônia, já se preocupava em garantir, pelo só efeito da Lei, áreas protegidas necessárias ao bem estar da população, em forma de APPs. Infelizmente, por décadas, as autoridades negligenciaram o cumprimento da lei e, assim, as reservas legais não foram respeitadas. Pouco das APPs, principalmente em regiões muito desenvolvidas, restaram. A legislação subseqüente sobre o assunto mudou drasticamente com a resolução do CONAMA de 2006.

Como seria se a lei tivesse sido respeitada?

Se todas as APPs previstas no Código Florestal de 1965 tivessem sido realmente protegidas, na prática, teríamos tido infinitamente menos erosão dos solos, em especial das do tipo violento que ocasionam a maior parte das perdas de vidas humanas e, em conseqüência, teríamos menos assoreamento de rios e lagos e, por isso, também, menos inundações e desbarrancamentos. Mas essa é apenas uma parte dos benefícios que os brasileiros de hoje perderam por falta de respeito às regras. Ainda se deve falar da redução do potencial pesqueiro de rios e mares em conseqüência das seqüelas da erosão, da perda da diversidade biológica das matas ciliares, que sempre foi particularmente rica, das custosas dificuldades de navegação provocadas pelos sedimentos nos rios, etc. O costume nacional de fazer legislação para “inglês ver”, ou seja, esquecê-la tão logo aprovada, ficou muito caro para a sociedade, em termos de tragédias humanas e de milhões de reais do erário público.

Parece muito difícil que a população e, pior ainda, as autoridades constituídas, percebam que, por maior que fossem as chuvas, se existisse cobertura vegetal as seqüelas seriam em muito minimizadas, pois a cobertura vegetal teria servido como um mata-borrão na absorção das águas. As reservas legais, onde o corte raso é proibido, também teriam ajudado enormemente.

Como é?

Tudo começa com a erosão, conseqüência do mau uso dos solos e/ou do desmatamento ou incêndios onde a lógica, a ciência e a lei o proíbe. Corta-se a floresta por vários motivos: para agricultura, pecuária, infra-estrutura, mineração ou assentamentos urbanos. Tudo bem, nós precisamos dessas atividades. Mas por que se desmatar até as APPs, ou seja, as vegetações de topos de morros, onde existe muita declividade, as matas ciliares, as nascentes, dunas, restingas e mangues? Da erosão ou perda de solos vem de uma parte o empobrecimento da fertilidade da terra e, de outra, a sedimentação, ou seja, quando os vales de rios e demais corpos de água ficam entupidos com milhares de toneladas de terra que, desprotegida, desce para as regiões mais baixas. Com a elevação dos leitos dos rios, provocada pela sedimentação, surgem mais violentas as inundações comendo plantações, casas, pontes, estradas, animais e gente. Os solos encharcados cedem e provocam os desbarrancamentos que engolem rodovias, pontes, carros, casas e, outra vez, gente.

Por que então, com tanta tragédia, com tanta evidência visível a olho nu, não se faz o óbvio, que é proteger as APPs? Bem, a resposta novamente é óbvia: no curtíssimo prazo é mais barato e, os políticos sempre preferem inaugurar um campo de futebol, inclusive em APP, em vez de serem sérios e promoverem o reassentamento das populações pobres (ou pelo contrário muito ricas) ilegalmente assentadas em zonas de APPs de alto risco.

Como deveria ser?

Embora as APPs tenham sido muito enfraquecidas pela resolução do CONAMA de fevereiro de 2006, especialmente no que concerne às áreas urbanas e minerações, muito ainda pode e deve ser feito dentro do marco legal atual. Permitirem-se desmatamentos e construções em áreas com muito declive é um crime contra a vida humana. Facilitar a erosão e a velocidade das águas ignorando as APPs é desastre certo. O problema é que os políticos não querem enfrentar as decisões de deixar a cobertura vegetal protegida. Gente vota, mas árvores e bichos não e, claro, os seres humanos que já morreram sob as avalanches de lama, tampouco votam mais.

Proteger as matas ciliares de rios, lagos e demais corpos d’água é um benefício até econômico para largo tempo. Garantir o fornecimento e a qualidade das águas é atender necessidades básicas do ser humano. Se uma empresa de mineração deixa lagos de decantação romper e poluir rios e fontes de água essenciais para o abastecimento urbano, como no recente caso de Minas Gerais é também, em grande medida, porque não há mais cobertura florestal na região. É só ver as fotos mostradas pelas televisões e jornais de todo país. Aí é fácil declarar: foram as chuvas!

As chuvas

As chuvas devem ser consideradas benditas e não, como agora, um anúncio certo de tragédias até no sertão nordestino. O ser humano não pode viver assustado, temendo temporais e precipitações vultosas. Não são realmente as chuvas as que matam, mas o tipo de destruição que os humanos causaram previamente e os riscos que estes provocam deixando-os pendurados acima das suas cabeças, qual espada de Dâmocles. É pela forma em que os problemas criados foram manejados, por um ou outro motivo, que a população sofre com as conseqüências de seus próprios atos. Falta ordem e obediência à legislação. Chega de “flexibilizar” a destruição das áreas naturais protegidas, que também protegem os seres humanos agora e no futuro. O resultado é sempre o mesmo, triste e deprimente, que é como nós ficamos ao ver os noticiários e as tragédias narradas.

Leia também

Reportagens
24 de junho de 2024

Marina Silva apoia pré-candidatura prioritária da Rede em São Paulo, com foco na pauta ambiental

Ministra participou de evento realizado no último sábado (22), em apoio à Marina Bragante, que concorrerá à câmara de vereadores; intenção é percorrer o país

Análises
24 de junho de 2024

Greve dos servidores ambientais: o dilema político do governo Lula

O governo sabe que a reestruturação da carreira de especialista em meio ambiente é uma questão de justiça e que não promovê-la tem um custo político enorme, pois revela uma incoerência

Salada Verde
24 de junho de 2024

Aos 94 anos, morre Dalgas Frisch, “senhor das aves” do Brasil

Pioneiro na gravação do canto das aves no país, ainda na década de 60, Dalgas dedicou sua vida à observação, promoção e conservação da avifauna brasileira

Mais de ((o))eco

Deixe uma resposta

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.