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Juréia-Itatins: no fio da navalha

Estação Ecológica preserva o verde entre o litoral e a Serra do Mar no Estado de São Paulo, mas sofre com excesso de visitantes e pressões políticas. A solução é transformá-la em parque estadual.

27 de agosto de 2004 · 20 anos atrás
  • Marc Dourojeanni

    Consultor e professor emérito da Universidade Nacional Agrária de Lima, Peru. Foi chefe da Divisão Ambiental do Banco Interam...

O Brasil é cheio de surpresas. Muitas delas boas. Descobrir que a exatos 137 quilômetros da maior cidade da América do Sul, e uma das mais contaminadas do planeta, encontra-se um paraíso natural de 79.270 hectares, pletórico na exuberância e raridade de sua flora e fauna, é uma surpresa mais do que boa… é excelente!

A Estação Ecológica Juréia-Itatins foi formalmente criada por decreto estadual de 1986, embora exista desde 1980. Seu inspirador foi, como era de se esperar, Paulo Nogueira Neto. Primeiro titular da Secretaria Especial do Meio Ambiente do país, na época vinculada à Presidência da República, o professor emérito da USP ficou 12 anos no cargo (1973-1985), implantando todo o setor ambiental brasileiro e criando o Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama). Mas mesmo que o professor Nogueira Neto não tivesse feito mais nada na vida, só pela EE de Juréia-Itatins já mereceria ter seu nome registrado na história do Brasil.

A Juréia-Itatins preserva, como fazem outras poucas reservas na costa de São Paulo e Paraná, os ecossistemas naturais desde a praia até os picos elevados da Serra do Mar, com afloramentos rochosos de mais de mil metros de altitude. Essa circunstância rara na costa brasileira, tão agredida pelo desenvolvimento urbano sem lei, permite observar uma extraordinária concentração da vida original do bioma Floresta Atlântica. Em uma inacreditável coleção de paisagens maravilhosas, sobrevive uma parte paraíso terrestre que os europeus descobriram, onde os índios moravam.

Estação tem um orçamento modesto, que lhe permite dispor de alguma infra-estrutura, equipamentos e 45 funcionários. Em comparação com outras áreas protegidas que sequer têm orçamento consignado, parece muito. Mas é muito pouco frente aos imensos problemas que são gerados pelo entorno da área, em especial pela proximidade das cidades de São Paulo, Santos, Curitiba e outras do interior dos estados de São Paulo e Paraná. Centenas de milhares de pessoas saem destas cidades procurando praias e lugares para praticar atividades esportivas ou simplesmente desfrutar da natureza. Eles se concentram ao redor das áreas protegidas, como na pequena localidade de Peruíbe, ao norte da Estação Ecológica, e em Iguape, ao Sul. Como conseqüência, claro, vem a pressão para visitar e usufruir da área preservada. Só que a legislação vigente proíbe a visitação com fins turísticos ou recreacionais das estações ecológicas. São permitidas apenas atividades de educação ambiental, e sob determinadas condições.

O problema é que, ante à irresistível pressão da sociedade e das autoridades municipais, entram em Juréia-Itatins mais de 100 mil visitantes por ano. Destes, apenas 7.393 foram monitorados em 2001; estima-se que 94.500 entrem informalmente. Os números crescem ano a ano. As autoridades do Instituto Estadual de Florestas (IEF) vivem uma situação no mínimo incômoda. Se tentam cumprir a lei de forma estrita e impedem a entrada dos que não querem enquadrar-se no conceito de educação ambiental, são derrubados pela pressão política. Se fazem o que fazem, quer dizer, cumprir a lei de forma parcial, estão sujeitos a graves riscos pessoais, pois a qualquer momento podem ser processados pelo Ministério Público. Por outro lado, nenhum visitante, exceto os que se dedicam a atividades científicas, pode pagar pelo ingresso à unidade, pois isso consistiria em uso ilegal da Estação Ecológica. Se cada visitante pagasse apenas dois reais, a unidade quase duplicaria seu orçamento, que é da ordem de 100 mil por ano, fora o custo de pessoal. Mas o preço da entrada poderia ser maior, dependendo da atividade a ser desenvolvida. A auto-sustentabilidade de Juréia-Itatins, considerando a visitação atual e o potencial para o futuro, sem prejuízo para os ecossistemas, é coisa certa. Alcançá-la representaria mais segurança para os visitantes, contribuiria para o desenvolvimento econômico regional e preservaria melhor o meio ambiente.

A solução parece ser evidente. É preciso mudar a categoria da unidade, de estação ecológica a outra que permita aproveitar a área para fins turísticos. Para isso, a Secretaria de Meio Ambiente de São Paulo deve apresentar um projeto de lei bem justificado à Assembléia Legislativa. Essa ação, no entanto, envolve um risco que a Secretaria e o IEF hesitam em assumir. A Estação Ecológica Juréia-Itatins tem muitos inimigos, entre eles poderosos plantadores de banana e outros ocupantes ilegais. A área também é cobiçada por empresas de desenvolvimento urbano e prefeitos gananciosos, que não se importam em sacrificar essa fantástica reserva, que pode ser motor permanente de desenvolvimento, por lucros pessoais imediatos. A elaboração de um projeto de lei envolve, portanto, o risco de que a área seja mutilada ou, pior ainda, transformada numa dessas unidades de conservação que quase não preservam nada, como as Áreas de Proteção Ambiental (APAs). Esta categoria de área protegida, como se sabe, é muito apreciada por alguns políticos, pois permite que estes vistam a camisa ambiental precisamente para fazer o contrário, como um lobo mau disfarçado de vovozinha.

Juréia-Itatins deveria ser um parque estadual. Esta é a única categoria que garante que a área seja preservada e, ao mesmo tempo, contribua efetivamente ao desenvolvimento regional. Resta torcer para que o Estado de São Paulo e suas autoridades demonstrem uma vez mais sua capacidade e inteligência, tirando o processo de transição do fio da navalha, sem perder o prezado tesouro.

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