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Pobres jardins dos ricos

Jardim, nos Estados Unidos, é sinônimo de grama. O show de desperdício inclui podas motorizadas, muito pesticida e restos ensacados. Em Brasília é parecido.

3 de dezembro de 2004 · 20 anos atrás
  • Marc Dourojeanni

    Consultor e professor emérito da Universidade Nacional Agrária de Lima, Peru. Foi chefe da Divisão Ambiental do Banco Interam...

Os jardins dos ricos e dos governos ricos dão pena. São, em geral, grandes extensões de plantas baixinhas, idênticas umas às outras, conhecidas como grama. Se existem nesses jardins árvores, arbustos ou palmeiras, são quase sempre plantas exóticas, ou seja, que nada ou pouco têm a ver com o lugar onde são plantadas.

O caso extremo se dá em Brasília, onde as esplêndidas plantas típicas do cerrado foram cuidadosamente eliminadas e substituídas por outras, cuja única virtude principal é serem “importadas”. Sem nem falar das enormes extensões de grama que o governo do Distrito Federal tem distribuído por todas as partes, fazendo a cidade ter certa semelhança com os pampas da Patagônia ou as punas dos Andes, em especial durante a seca. Nesses pampas e punas artificiais, a pobreza biológica é extrema.

Deixando de fora as brincadeiras, o fato é que nenhum país, rico ou pobre, deveria se dar ao luxo de tanto desperdício como o que está envolvido no conceito atual de jardim.

O problema não é exclusivo do Brasil. Os EUA e o Canadá são os campeões mundiais dos jardins pobres em diversidade. Existem milhões de hectares cobertos por grama que não serve para mais nada a não ser consumir ingentes quantias de água preciosa e de fertilizantes e pesticidas caros, que contaminam os solos e as águas. Além disso, gastam-se milhões de litros de combustíveis ou de kilowatts de eletricidade apenas para podá-los e, para cúmulo, a colheita é ensacada em bolsas de plástico, para evitar que se decomponham e que sequer sirvam como adubo verde.

Os longos anoiteceres, próprios dos verões dos países do Norte, são considerados o momento mais propício para fazer um churrasco no jardim e desfrutar do pôr-do-sol. Mas isso é mentira. Apenas iniciado o processo de preparar a comida, surge, pela direita, um barulho ensurdecedor. O vizinho está, pela segunda vez na mesma semana, cortando a grama. Mas tem uma espécie de eco. Não é eco, é outro vizinho, um pouco mais longe, fazendo o mesmo. Uma hora depois, o vizinho da direita terminou seu trabalho e o trinar dos passarinhos recupera seu lugar na escala dos decibéis. Por pouco tempo, pois o vizinho da esquerda decidiu-se, possivelmente estimulado pelo silêncio, ou para não continuar brigando com a esposa, a montar no seu poderoso trator para dispersar fertilizantes sobre seu jardim de grama pura. Nos bairros dos EUA, durante qualquer dia da semana, ao terminar o horário de trabalho nos escritórios e indústrias, todos os cidadãos ascendem às máquinas para o maior esporte gringo dos tempos modernos: podar a grama.

As gramas de Brasília, as pobres, crescem em solos miseráveis e em geral são menos fertilizadas que as norte-americanas, e por isso não precisam ser podadas duas vezes por semana na primavera e no verão. Ainda assim, elas, como as dos EUA, poderiam alimentar milhares de ovelhas ou gansos. A indústria dos jardins nos EUA deve movimentar, na atualidade, ao redor de 35 bilhões de dólares por ano, para cuidar de 13 milhões de hectares de jardins, dos quais 81% são de pura grama. A isso devem se somar os gastos da saúde deteriorada dos donos de casa, vitimados pelas máquinas, derrotados pelos seus músculos e ossos ou pelas alergias e também, dentre outros, os custos de levar até os lixões as bolsas cheias de grama. O primeiro problema, felizmente, não acontece no Brasil, onde os senhores da casa são senhores demais para ousar pegar a máquina. Mas o costume de ensacar a grama cortada, por exemplo, é a cada dia mais comum no Brasil, inclusive nas quilométricas rodovias privatizadas.

Uma máquina de podar grama produz contaminação em volume equivalente a mais de 80 km rodados por um automóvel. Elas, como as motocicletas, são energeticamente ineficientes. Por isso, a pergunta é: porque ao invés de os senhores da casa percorrerem muitos quilômetros a cada dia ou passarem horas malhando na academia no intuito de tornar a barriga mais discreta, não compram máquinas mecânicas para podar a grama? Fazem menos barulho, são mais baratas e melhor ainda, queimam qualquer gordura recalcitrante. Claro que não é garantido que não seja, também, um caminho seguro ao hospital.

Deixando de fora as brincadeiras, o fato é que nenhum país, rico ou pobre, deveria se dar ao luxo de tanto desperdício como o que está envolvido no conceito atual de jardim. Outros modelos existem, por exemplo, na Europa, onde toda família que possui jardim tem nele uma horta e árvores frutíferas e onde ninguém se preocupa em podar a grama, sempre misturada com flores da estação, que engalanam a vista e satisfazem o olfato. Na Europa como na Ásia, onde o jardim é obra de arte ou fonte de alimentos e de plantas medicinais, o conceito de jardim é muito diferente e certamente muito mais ecologicamente correto que nos EUA, ou que na maior parte dos jardins dos ricos do Brasil. Em Brasília, impressiona ver como os novos donos de propriedades no Lago Sul ou Norte começam as obras “limpando o terreno”, ao invés de escolher as árvores e outras plantas do Cerrado que devem ficar no futuro jardim. As árvores nativas são as inimigas. Devem ser eliminadas.

Seria uma boa idéia que alguma organização não-governamental de Brasília, que na sua qualidade de capital nacional deveria dar o exemplo, estabeleça um prêmio aos jardins da cidade que melhor preservam espécies do Cerrado e que mais artisticamente as aproveitam para fazer jardins mais bonitos, mais diversos, mais ricos. De outra parte, os jardins úteis não devem ser exclusivos aos pobres deste continente. Os ricos amantes da grama pura enriqueceriam muito mais se também reconhecessem que seus jardins podem ser os últimos redutos de uma natureza que se vai.

*Esse texto foi editado em 02/06/2024 para repaginação

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