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Itacaré, paraíso perdido

Em breve as praias de Itacaré não poderão mais ser chamadas de paradisíacas. Em dez anos, o desenvolvimento tomou conta da região, devastador como de costume.

9 de dezembro de 2004 · 20 anos atrás
  • Marc Dourojeanni

    Consultor e professor emérito da Universidade Nacional Agrária de Lima, Peru. Foi chefe da Divisão Ambiental do Banco Interam...

Em apenas uma década, Itacaré, o pequeno município baiano que concentra algumas das praias mais bonitas do Brasil, deixou de ser terra de pescadores e agricultores para se transformar em famoso destino turístico. Apesar das advertências e das medidas cautelares, Itacaré tem seguido o mesmo caminho de outros lugares originalmente maravilhosos da costa nordestina. Mas ainda tem tempo de alterar o curso da rota e fugir de seu previsível destino medíocre.

Itacaré ainda pode ter um turismo de alta qualidade, que traga desenvolvimento limpo e duradouro para a região. Caso contrário, se converterá, como outros locais da costa do Nordeste, num paraíso perdido, medíocre e sem futuro.

Dez anos atrás, ligada a Ilhéus apenas por uma sinuosa estrada de chão, Itacaré não era uma desconhecida para turistas aventureiros. Muitos deles a escolheram como residência e base para desenvolver seu futuro pessoal. Ou seja, já existiam bons restaurantes, ótimas pousadas, poucas casas de veraneio e apenas o número adequado de barracas de praia, sem som. O equilíbrio entre as atividades tradicionais, pesca e agricultura e as atividades associadas ao turismo era bom. Na viagem de Ilhéus a Itacaré era possível observar à esquerda e à direita magníficas paisagens dominadas pela Mata Atlântica. As praias, próximas e distantes, eram limpas, sem vendedores ambulantes nem barracas. O acesso a elas era livre de pedágios e de assaltantes.

Como sempre, os problemas começaram em nome do desenvolvimento, cuja expressão principal foi o asfaltamento da estrada entre Ilhéus e Itacaré. Não foi fácil, mas o bom senso prevaleceu e conseguiu-se que essa estrada fosse algo aproximado ao que deveria ser uma estrada-parque. Com grande dificuldade, os responsáveis pelo turismo e pelo meio ambiente obtiveram do governo a criação do Parque Estadual Serra do Conduru, para proteger um pedaço importante da Mata Atlântica e garantir, por essa via, outra opção de turismo no futuro. Para garantir um uso apropriado da terra, foram criadas também duas grandes áreas de proteção ambiental, com um zoneamento complexo. Algum dinheiro foi investido na preparação de um plano diretor urbano e na capacitação de pessoal municipal. Resumindo, foram tomadas precauções e medidas excepcionais, onde se introduziram as lições aprendidas em outros lugares, como Porto Seguro, por exemplo.

Mas os eventos não seguiram o rumo traçado pelos idealizadores. Na área urbana e próximo a esta não só proliferaram as pousadas e as barulhentas e sujas barracas de praia, o que era de se esperar, como se gerou uma violenta expansão da urbanização, com construções novas implantadas sobre florestas ou capoeiras antigas em plantações abandonadas de dendê. O pior é que o tamanho dos lotes era tão pequeno que os proprietários, que em geral não gostam do mato, não tinham alternativa a não ser eliminar todas as árvores para construir suas novas residências. A população residente e a de veraneio explodiram, trazendo consigo os problemas bem conhecidos de tráfego, ruído, carência de água potável, de esgotamento sanitário, de coleta de lixo e sua destinação adequada. Ainda que seja aceitável, em ocasiões especiais como o Ano Novo ou o Carnaval, por exemplo, que se tragam bandas e equipamentos de som gigantescos, alguns dos empreendedores locais decidiram unilateralmente fazer isso todas as semanas. Pela configuração topográfica de Itacaré, ninguém consegue dormir quando isso acontece.

Pessoas ricas vêm de todas as partes para comprar terrenos na área rural, junto às praias mais longínquas do barulho da cidade. As coisas só não são piores porque, com base no zoneamento, alguns grandes proprietários desenvolveram instalações hoteleiras importantes e preservaram a mata ao redor delas. Por isso, ainda existem algumas praias limpas e rodeadas de florestas ou coqueiros, embora o custo para acessá-las varie entre elevado e proibitivo. A alternativa para se chegar a uma boa praia sem pagar é caminhar, o que seria delicioso se não existisse o risco de ser assaltado no caminho. Pelo menos, essa é a ameaça que os guias propalam para vender seus serviços.

De qualquer modo, o desmatamento das paisagens entre Ilhéus e Itacaré é mais que evidente e seria muito pior sem a esforçada luta de algumas organizações não-governamentais locais que ensinam aos agricultores o valor da floresta e a utilidade do reflorestamento.

Como era de se supor, o Parque Estadual Serra do Conduru não foi implantado e por isso não cumpre sua função de receber visitantes, proteger a biodiversidade e contribuir para o desenvolvimento econômico regional. Grande parte da área do Parque continua nas mãos dos proprietários originais, pois a desapropriação não foi concluída. Os esforços da sociedade civil para que o zoneamento das áreas de proteção ambiental seja respeitado têm dado alguns frutos, como no caso dos grandes proprietários, mas não foi eficaz para os pequenos e atualmente a correlação entre o zoneamento e os usos dos terrenos é baixa.

Outro problema sério é a pesca. Atualmente, a visita matinal ao porto de Itacaré para comprar peixe e mariscos frescos diretamente dos pescadores é estéril. Toda a produção é vendida com antecedência a pousadas e restaurantes ou, graças à estrada, vai para Ilhéus e para as cidades do interior. Mais grave ainda é o fato de que a demanda tem aumentado muito o esforço de pesca, cujos recursos começam a diminuir sem que sejam tomadas medidas a respeito.

Verdade é que o turismo cria direta e indiretamente muitos empregos novos. Isso é evidente no caso de Itacaré. Porém, muitos desses empregos não são para os nativos, pois sua educação e preparo são insuficientes. Por outro lado, o desenvolvimento atrai mais gente do interior, e no final das contas a situação fica pior. Na descida até a cidade, um dos cartões postais de Itacaré, com vista para o mar, rio e florestas, foi literalmente destruído por uma invasão de “sem-terra”. Dizem que a convite de um prefeito. Os sem-terra decidiram construir uma favela no lugar da floresta. E muitos ricos fazem o mesmo, sem que se aplique o famoso plano diretor da cidade. A delinqüência, antes uma desconhecida, tem aumentado muito em Itacaré, especialmente nos dias em que os empresários locais trazem bandas para fazer barulho.

Itacaré ainda é um paraíso, embora previsivelmente por muito pouco tempo. As medidas que a prefeitura e as autoridades estaduais precisam tomar são óbvias e não são difíceis. Requerem apenas decisão. Itacaré ainda pode ter um turismo de alta qualidade, que traga desenvolvimento limpo e duradouro para a região. Caso contrário, se converterá, como outros locais da costa do Nordeste, num paraíso perdido, medíocre e sem futuro.

A história recente de Itacaré é tão comum que é quase uma regra. Agora que as últimas praias pouco desenvolvidas da Bahia estão sendo abertas, na extraordinária península de Maraú, que esta história sirva de lição, e não se repita.

*Esse texto foi editado em 02/06/2024 para repaginação

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