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União sul-americana e Amazônia

A Transoceânica, estrada que vai cortar a Amazônia entre o Brasil e o Peru, ameaça as áreas mais preservadas do nosso vizinho, que tem leis ambientais fracas.

16 de dezembro de 2004 · 20 anos atrás
  • Marc Dourojeanni

    Consultor e professor emérito da Universidade Nacional Agrária de Lima, Peru. Foi chefe da Divisão Ambiental do Banco Interam...

Cusco, cidade bela e antiga, umbigo do poderoso império Inca que se estendia da Colômbia até o Chile e Argentina e que, provavelmente, ocupava também terras hoje brasileiras, foi escolhida como sede do encontro que lançou as bases da futura União da América do Sul. Ninguém acredita plenamente nisto, embora todo mundo aplauda. É certo que esta iniciativa levará muito tempo para se concretizar. E isso é bom, muito bom, pois tudo indica que o custo ambiental dessa união será deveras elevado. Para ilustrar o argumento, basta lembrar que a separação dos povos sul-americanos é feita pelos últimos redutos de selva amazônica.

De fato, a primeira e única decisão efetiva tomada nesse encontro foi a construção, em território peruano, da estrada batizada de “Transoceânica”, que deve unir Rio Branco (Acre) com Cusco ou Puno, interligando a rede viária do Brasil com a do Peru. O discurso do presidente peruano Alexandre Toledo, como sempre ridiculamente pomposo, mencionou entre outras coisas a necessidade de desenvolver as “potencialidades desperdiçadas” do território por onde essa estrada passará, em algumas centenas de quilômetros de selva ainda pouco alterada. É evidente que ele se referia à lavoura de soja, ou quiçá, a algum outro cultivo de oleaginosas para a produção de biodiesel.

Acontece que, do lado peruano, a estrada vai impactar o departamento (equivalente aos estados brasileiros) de Madre de Dios, o mais bem preservado do país, onde existem dois dos mais famosos parques nacionais das Américas, o Manú (1.716.000 hectares) e o Bahuaja-Sonene (1.091.000 hectares). Ambos conservam o melhor da diversidade biológica da Amazônia no sul do Peru, com destaque para o primeiro, e também têm algumas das últimas populações de índios arredios conhecidas. Estes parques estão bem conservados justamente porque estavam em relativo isolamento, pois em matéria de orçamento para seu manejo não estão melhores que os parques brasileiros. A nova estrada também vai impactar outras seis unidades de conservação e 51 comunidades nativas pertencentes a nove grupos étnicos localizados nos departamentos de Madre de Dios, Cusco e Puno.

A experiência na Amazônia revela que o asfaltamento de qualquer estrada provoca, num prazo de pouco mais que uma década, o desmatamento de uma faixa de 50 km de cada lado da estrada. Se estradas vicinais são construídas, o desmatamento se multiplica proporcionalmente. A ameaça para as unidades de conservação e para os territórios indígenas é, conseqüentemente, enorme. Essa região da Amazônia é muito mais diversificada do que qualquer outra no Brasil. Apenas como exemplo, o Parque Nacional do Manú vai de 300 metros acima do nível do mar até quase 4 mil metros de altitude, atravessando uma dezena de zonas com vida natural de elevadíssima fragilidade ecológica.

No Peru não existe ministério do Meio Ambiente, nem conselho nacional ambiental resolutivo. O licenciamento ambiental é outorgado pelo próprio setor que propõe a infra-estrutura, mediante procedimentos expeditivos. A estrada “Transoceânica” será licenciada pelo Ministério dos Transportes.

No lado brasileiro, a estrada existe até a fronteira com o Peru e, a partir de Rio Branco, se une à BR-364, famosa no mundo pela destruição ambiental que ocasionou em Rondônia e Mato Grosso. O desmatamento no trecho entre Rio Branco e a fronteira é relevante, porém até certo ponto controlado graças a uma política florestal e ambiental apropriada, liderada pelo atual governo do Acre e amparada pelas legislações federal e estadual. E este fato é uma boa introdução para o tema seguinte.

O Peru, diferentemente do Brasil, não está preparado para cuidar adequadamente de seu meio ambiente. De fato, apesar de todos os defeitos que a legislação e a política ambiental brasileiras possam ter, no seu conjunto estão muito mais adiantadas que as existentes no país vizinho. No Peru não existe ministério do Meio Ambiente, nem conselho nacional ambiental resolutivo. O licenciamento ambiental é outorgado pelo próprio setor que propõe a infra-estrutura, mediante procedimentos expeditivos. A estrada “Transoceânica” será licenciada pelo Ministério dos Transportes. A única entidade com certa capacidade de execução, no que concerne a alguns dos recursos naturais, é o Instituto Nacional de Recursos Naturais (Inrena), uma espécie de Ibama, mas vinculado ao Ministério da Agricultura. Não existe, fora do Inrena, nenhuma capacidade regional na área ambiental. O Peru tampouco dispõe de algo equivalente à Funai que, outra vez, apesar das suas bem conhecidas deficiências, é uma garantia para os direitos indígenas. O que o Peru tem a seu favor é uma população muito politizada e bastante bem organizada, que consegue evitar alguns dos erros e atropelos do governo, em especial no que se refere aos grupos indígenas. Mas, de um modo ou de outro, o fato é que o Peru não está tão preparado quanto o Acre, ou o Brasil como um todo, para evitar impactos ambientais negativos em áreas de suas estradas na Amazônia.

Tem mais! O Presidente Toledo mencionou que o financiamento para a “Transoceânica” seria proporcionado pela Corporação Andina de Fomento. Isso é má notícia. Essa entidade financiou a tão criticada estrada BR-174, construída para ligar o Brasil à Venezuela, atravessando territórios indígenas e áreas naturais. A Corporação Andina de Fomento tem um padrão de cuidados ambientais e sociais nas suas operações muito inferior aos do Banco Mundial e do Banco Interamericano de Desenvolvimento. Estes exigiriam do Governo do Peru a aplicação de seus próprios níveis de precauções ambientais e sociais, na ausência de um padrão aceitável no país.

Especialmente no caso da “Transoceânica”, há muitas outras coisas em jogo além do puramente ambiental. Pode se prever que essa rota será, também, via livre para o tráfico de cocaína e armas do Peru para o Brasil, acesso fácil para mais garimpeiros ilegais brasileiros que procuram os rios ricamente auríferos do Peru, caminho para exploração ilegal de madeira em ambos os lados, o que agrava os constantes conflitos fronteiriços provocados por madeireiros peruanos, etc. Por isso, a análise da estrada implica em um grande e honesto esforço de ambos os países.

A decisão sobre a construção de estradas na Amazônia dificilmente é apenas racional. Os povos as querem porque as querem, sem saber exatamente qual é o benefício que elas trarão localmente. Os consultores e os empreiteiros as querem porque são lucro certo para eles, os políticos também, pois assim aumentam sua popularidade. Os bancos gostam delas porque movimentam seus recursos e ganham dinheiro. Os proprietários rurais as querem pois valorizam suas propriedades e diminuem o valor dos fretes para o transporte de seus produtos. Por isso, ainda que uma estrada não seja economicamente viável num contexto nacional, ou ecologicamente recomendável, ela é construída assim mesmo. É inevitável. O interesse particular sempre acaba ganhando sobre o nacional.

Na verdade, as estradas são apenas instrumentos. Elas se parecem muito com uma arma de fogo. Sua utilidade e seus benefícios, ou prejuízos, dependem de como são usadas. Se a estrada “Transoceânica” tem por finalidade principal facilitar o acesso dos produtos agropecuários brasileiros aos portos peruanos no Pacífico, para baratear o frete até a Ásia, o lógico seria que ela passasse pela selva de Madre de Dios, Cusco, Puno e Acre sem deixar nenhum rastro, exceto a própria estrada. Se fosse assim, seria maravilhoso. Os países se beneficiariam da facilidade do transporte e a natureza ficaria praticamente intacta, como acontece cada vez mais com os gasodutos e oleodutos na Amazônia e no Chaco. A estrada, nesse caso, seria também uma via para o ecoturismo, facilitando a visitação aos magníficos parques nacionais da região. Mas isso é sonho ou desvario. Toda a terra ao longo da futura estrada já tem dono oportunista, esperando obter lucro. Até hoje, jamais uma estrada amazônica deixou de ser um deprimente cenário de destruição e fogo.

Algumas recomendações são importantes. Primeiramente, exigir avaliações de impacto ambiental e social bem feitas, públicas e oportunamente divulgadas e aprovadas por uma instância imparcial. Logo, sendo evidente que os impactos serão muito relevantes, prever no orçamento do próprio projeto o custo de medidas compensatórias significativas. Por exemplo, o Brasil deveria poder, através de recursos desse projeto, dar apoio técnico ao Peru para aprimorar seu mecanismo de licenciamento ambiental. Finalmente, como foi feito pelo Estado do Acre, solicitar, mediante outro projeto de investimento, os recursos que permitiriam aplicar nas selvas de Madre de Dios, Cusco e Puno um programa ambiental de manejo dos recursos naturais renováveis que seja consistente. Neste momento, existe um desequilíbrio muito grande de cada lado da fronteira que terminará prejudicando a todos.

Vale a pena ficar atento ao que acontecerá nesse lugar e lutar para evitar o pior. Outras estradas semelhantes, atravessando os últimos refúgios da Amazônia, já estão previstas pelo Brasil e seus vizinhos, ao norte com o próprio Peru e com Equador, Colômbia, Guiana e Suriname, e no sul com a Bolívia. Também continuam latentes os megalômanos projetos hidroviários que pretendem unir as bacias dos rios Orenoco, Amazonas e Prata. Nada se tem contra o progresso, mas este não pode ser feito a qualquer custo. O que está em jogo é demasiado sério para abandoná-lo apenas nas mãos dos gananciosos.

*Esse texto foi editado em 05/06/2024 para repaginação

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