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Depreciação da ética

Argumentos éticos e estéticos para a conservação da natureza não valem mais nada. O que importa, hoje em dia, é explorar ao máximo seus benefícios econômicos.

21 de janeiro de 2005 · 20 anos atrás
  • Marc Dourojeanni

    Consultor e professor emérito da Universidade Nacional Agrária de Lima, Peru. Foi chefe da Divisão Ambiental do Banco Interam...

Poucos, na atualidade, pensam que a natureza deve existir porque ela tem direito a existir ou, pelo menos, porque ela pode ser muito bela. Quase todos a observam precedida pelo cifrão do dólar (ou melhor, do euro). Se a natureza não gera lucro rápido, então “pode se estrepar”. Esta é uma realidade evidente na sociedade atual, independentemente do que seja levado à prática pela esquerda, com afinidades socialistas, ou pela direita apelidada de neoliberal. Todos querem agora que a natureza pague, ou seja, que a natureza traga benefícios tangíveis e rápidos. Esses grupos apenas diferem entre si no que diz respeito aos beneficiários. Para os primeiros devem ser os pobres, os excluídos; para os segundos são eles mesmos. Ambos os grupos utilizam como escusa a tentadora utopia do desenvolvimento sustentável. Essa realidade é muito triste. Rompeu-se o equilíbrio entre os argumentos éticos e os econômicos.

Acontece, com efeito, que no decorrer do século XX os argumentos éticos e estéticos para a conservação da natureza se perderam quase completamente. Tem-se colocado tanta ênfase na valoração econômica dos recursos naturais que agora poucos percebem a união inelutável entre o natural e o cultural ou, dito em outra forma, a necessidade essencial do ser humano de ter uma referência no entorno natural. Em lugar de ver a beleza de uma paisagem, a maior parte da gente só vê terra para loteamento urbano ou para novos assentamentos rurais, metros cúbicos de madeira ou toneladas de minério. Cachoeiras são para fazer pequenas centrais hidroelétricas (sem avaliação de impacto ambiental), rios são para construir barragens, lagos são para criar as tilápias africanas, após a eliminação dos peixes originais.

Como chegamos a esse ponto? Existem várias hipóteses entrelaçadas. Entre elas, a mais provável diz que isso é fruto do pensamento ocidental, hoje onipresente no mundo globalizado que, partindo de um monoteísmo pouco amigo da natureza (com poucas exceções, entre elas o simpático Francisco de Assis), moldou uma sociedade feita à imagem e semelhança de Deus. Daí a se sentir quase um deus era apenas um passo, postura ratificada com a recente descoberta do genoma humano e o de outras espécies, abrindo infinitas possibilidades ao potencial da engenharia genética. O sentimento de “poder tudo” afasta o sentimento de “Mãe Natureza” e faz perder os limites tradicionais de seu aproveitamento. Aplicando a tradição judaico-cristã, que favorece a cobiça e a acumulação da riqueza, instaura-se a lógica da destruição ilimitada, pois a natureza passa a ser apenas uma mercadoria que pode ser aproveitada agora, sem se importar com um futuro que, com perigosa arrogância, pensam poder contornar.

Vale lembrar que as culturas americanas, assim como as de outros continentes, tinham uma mitologia intimamente associada à natureza e eram os deuses que impunham os limites à exploração da natureza. O budismo, e até certo ponto o hinduismo, inserem-se também nessa linha. Pelo contrário, os únicos elementos naturais da simbologia cristã são pomba e cordeiro, bichos convenientemente domesticados. A tradição cristã, para melhor destruir os deuses bem mais naturais dos povos que os impérios europeus conquistaram, denegriu a floresta, onde vivem os espíritos do mal ou o lobo feroz, as bruxas, os anões e a demoníaca serpente, entre outros seres abomináveis. Voltando aos nossos dias, será por isso que os latino-americanos são tão pouco amantes da floresta? Por isso é que os agricultores do sul do Brasil têm a tradição de destruir até a última árvore das terras que ocupam, para depois plantar uns poucos eucaliptos patéticos para ter um pouco de sombra? É por isso que os pescadores extraem, com conhecimento de causa, até o último casal de peixes do rio para evitar que outro o pesque?

Até o final do século XIX a maior parte da humanidade acreditava firmemente no caráter inesgotável da natureza. O mundo era amplo e alheio. A Amazônia era ainda terra essencialmente selvagem. Matavam-se baleias aos milhares em todos os mares e as penas de avestruzes adornavam chapéus, tanto como as peles de onças e tigres faziam abrigos e a lã da vicunha se convertia nas telas mais finas. Essa atitude gerou uma reação intelectual muito forte e, por isso, até meados do século passado era bem visto falar de “proteção da natureza”, que essencialmente por razões éticas e estéticas devia ser mantida intocada, um conceito definitivamente exagerado e inviável.

Assim, nos anos 1960 e 1970, os filósofos do movimento ambiental inventaram sucessivamente os conceitos de “desenvolvimento racional” e de “conservação da natureza”, muito mais realistas e moderados, com bom equilíbrio entre a ética e a economia. Reconheceram, de fato, que a humanidade necessitaria de mais espaço e de maiores meios para sobreviver, e portanto preconizavam um difícil, embora mais harmonioso, equilíbrio entre crescimento humano e entorno natural. Quando os neo-filósofos ambientais de finais do século passado inventaram o termo “desenvolvimento sustentável”, que na superfície e no fundo é um oxímoro (figura que consiste em reunir palavras com significados contraditórios), voltou-se na prática à mesma situação que predominava no século XIX. Com efeito, o conceito de desenvolvimento sustentável, que de outra parte não dá a menor importância aos aspetos éticos, é simplesmente um conceito impossível, que virou dogma. Não significa nada nem serve para nada, mas não é discutível sob pena de excomunhão. O pêndulo foi de um extremo ao outro sem se deter.

Querer pisotear e explorar cada pedaço deste planeta, negando o direito a outros milhões de seres humanos de preservar o que amam, quer dizer, a natureza da qual saíram, é uma agressão violenta. Não importa que a destruição seja feita por ricos ou por pobres, ou que seja fruto da iniqüidade. O resultado é o mesmo. Milhões de pessoas neste mundo, quer sejam os povos que ainda moram nas florestas e em outras áreas naturais, ou os que simplesmente querem desfrutar das paisagens naturais, dos animais, das plantas e de suas flores, sentem destruídas suas raízes. Tem gente que, pelo menos por breves momentos, quer se confundir com a sua origem remota, sentir-se como um ser em um universo que não seja completamente artificial. Isso, no fundo, é apenas qualidade de vida, um direito consagrado em todo o mundo.

Então, por respeito a essa parte da humanidade, e para preservar o direito a esse sentimento das gerações futuras apesar da onipresença da filosofia dominante, é indispensável se manterem áreas naturais, onde a Mãe Natureza possa sobreviver e onde a sua veneração ainda seja possível. Se não se aceita que as áreas naturais protegidas sejam como os museus, quer dizer, lugares para proteger e venerar o patrimônio natural da humanidade, quiçá seja aceitável que elas sejam os templos da Mãe Natureza, onde possa ser adorada.

A cada dia é mais válido o ditado que diz que não temos o direito de destruir a vida que não podemos reconstruir.

*Esse texto foi editado em 18/06/2024 para repaginação

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