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APPs ou ADPs?

A finalidade das Áreas de Preservação Permanente é proteger a vida humana. Mas o Conama está a um passo de transformá-las em Áreas de Destruição Permanente.

19 de maio de 2005 · 20 anos atrás
  • Marc Dourojeanni

    Consultor e professor emérito da Universidade Nacional Agrária de Lima, Peru. Foi chefe da Divisão Ambiental do Banco Interam...

APPs significa Áreas de Preservação Permanente. Elas nos acompanham em nosso dia-a-dia e estão por todas as partes. No caminho ao trabalho, nas áreas urbanas, peri-urbanas ou rurais, passamos sem perceber por dezenas de APPs. Elas são determinadas pelo só efeito da lei (o Código Florestal e suas modificações) e, por isso, não têm sinalizações especiais.

APP é mata ciliar na beira de canais, riachos, rios, lagoas ou lagos. Também é vegetação natural em encostas muito acentuadas e também é duna, restinga, manguezal e outros ecossistemas ameaçados. O denominador comum das APPs é que são indispensáveis para manter a vida humana e a sua qualidade.

Cada vez que se noticia a morte de mulheres e meninos soterrados pela lama numa favela ou numa zona rural, isso ocorreu porque a APP não foi respeitada. Cada vez que as inundações arrastam automóveis e alagam vilas ou bairros é porque as APPs foram destruídas. Metade das vezes que uma população padece de dor de barriga ou sofre envenenamento coletivo, é porque uma APP foi violada e nela se instalou uma vila, uma indústria ilegal ou uma exploração de minerais. APP não é unidade de conservação. Seu objetivo não é proteger a diversidade biológica, nem os cenários naturais. A finalidade das APPs é, simples e diretamente, proteger a vida humana.

Não é que no Brasil se respeitem as APPs. Se esse fosse o caso, o número de brasileiros mortos ou mutilados, direta ou indiretamente por causa do desrespeito por essas áreas, seria bem menor. Ainda assim, graças ao conceituoso lema “a letra entra com sangue”, o povo está começando a entender que isso de cuidar da natureza em volta da casa não é bobagem de “ecochato”. Que, realmente, manter ou restaurar a vegetação nas encostas e cuidar das matas ciliares traz benefícios tangíveis, na forma de maior segurança e de melhor qualidade da água. O povo começa a se dar conta de que as vilas rurais ou urbanas localizadas na beira dos cursos de água são fontes de graves epidemias propagadas pelo esgoto doméstico e que o gado, quando vai beber água no rio, deixa também porcaria na água que logo será consumida, sem tratamento, por outros.

Por isso resulta absolutamente incompreensível que, por estes dias, o Conselho Nacional de Meio Ambiente (Conama) esteja discutindo e, pelo visto, aprovando um dispositivo legal que, com o pretexto de regular as APPs, praticamente elimina o conceito de APP ou enfraquece-o a um extremo tal que virará letra morta. Tão morta como as matas dos rios e das encostas e os milhares de brasileiros que sofrerão das conseqüências.

A resolução atenua todos e cada um dos objetivos originais da declaração de APPs (leia a íntegra da resolução, em arquivo .pdf). Nela se estabelece que o “órgão ambiental competente” pode permitir quase qualquer atividade econômica ou infra-estrutura nas APPs. A lista é interminável, mas, apenas como amostra, inclui: atividades agrícolas sob o pseudônimo “atividade agroflorestal sustentável”, exploração de produtos florestais, exploração mineira, infra-estruturas de interesse social, casas e até vilas, ciclovias e parques, equipamentos de cultura, lazer e esporte e, entre outros, até servir como lixões para “material estéril e rejeitos”. Na verdade, as muitas páginas do projeto não eliminam praticamente nenhuma possibilidade de usar, explorar, desmatar ou contaminar as APPs. A única exceção, em boa hora, refere-se à Mata Atlântica.

Claro está que a redação do projeto apresenta cuidadosas restrições a estes atropelos contra as APPs. Mas cuidadosas apenas para enganar o leitor desavisado. Elas incluem avaliações de impacto ambiental (EIAs), declaração de utilidade pública e interesse social, obrigação de fazer atividades ambientalmente sustentáveis, autorização pela “autoridade ambiental competente”, dentre muitas outras. Mas, para quem sabe das coisas, qualquer dessas condições pode ser facilmente driblada, no nível local ou estadual. Basta um exemplo: se o prefeito de uma cidade, que é empresário da mineração, deseja explorar uma mina no leito do rio e, para obter apoio popular, também propõe fazer um campo de futebol na mata ciliar que resta na cidade, quem vai impedi-lo de fazer, se a regulamentação o permite? Ele, claro, vai mandar fazer um Eia-Rima (desses em série, de mil reais cada um), vai obter a declaração de utilidade pública, vai declarar urbi et orbi que não vai prejudicar o meio ambiente e, finalmente, ele mesmo vai se auto-autorizar, pois ele é quem designou previamente o secretário municipal de Meio Ambiente e o Conselho Municipal do Meio Ambiente. E se não puder obter licença no seu município, igualmente vai conseguir que o “órgão ambiental competente” no nível estadual, aprove o projeto. Esse é apenas um exemplo de todas as opções de falcatruas que a mudança proposta vai possibilitar. Aberta a janela, não ficará nenhuma porta fechada.

O projeto, que nada tem de cômico, obriga quase a rir quando, depois de permitir tudo e muito mais nas APPs, já perto do final, diz que “em todos os casos, incluídos os reconhecidos pelo Conselho Estadual de Meio Ambiente, a supressão eventual e de baixo impacto ambiental não poderá comprometer as funções ambientais destes espaços, especialmente, a estabilidade das encostas e dos corpos de água, a regeneração e manutenção da vegetação nativa, a qualidade das águas” (o sublinhado é meu). Como imaginam que podem fazer tudo o que propõem sem impactar nas encostas e nos corpos de água? Isso só poderia ser obra de um milagre. E esses são muito raros.

Logo agrega que “a intervenção e supressão da vegetação nas APPs não poderá exceder ao percentual de 5% dela”. Quando se sabe que qualquer organismo público ambiental pode demorar anos para atender uma denúncia ou fazer uma inspeção, cabe sorrir sobre o como e o quem vai comprovar a veracidade do cumprimento da “regra” dos 5%. O caráter utópico, ou a burrice da proposta, revela-se quando ela propõe que se pode fazer “manejo agroflorestal, ambientalmente sustentável, que no descaracterize a cobertura vegetal, ou impeça sua recuperação, e não prejudique a função ecológica da área”. Isso, simplesmente, não existe. A agrosilvicultura é quiçá uma opção em matas secundárias ou em matas que não são APPs, pois sempre implicam em abrir a mata para que os cultivos disponham de luz. Essa não é condição adequada em matas ciliares ou em pendentes pronunciadas, que devem se manter cobertas por vegetação a mais densa possível. Ou os ilustrados autores da proposta já viram cultivos se desenvolver sem energia solar?

Como sempre, em meio a tanta bobagem, o projeto aporta alguns elementos positivos e que merecem ser considerados. Dentre estes está a construção de trilhas para visitação nas matas ciliares, a construção de cercas, a captação de água, a manutenção de vivendas construídas nas matas ciliares antes da ação da lei, a construção de rampas para embarcações, de estradas e pontes que atravessam as APPs, etc. Tampouco parece errado que, nas áreas urbanas que dispõem de planos diretores de boa qualidade, inclusive referentes a zonas de população de baixa renda, sejam feitas exceções conforme estes planos. Mas quase todos esses casos caem, simplesmente, no bom senso, e nenhuma dessas necessidades justifica os atropelos contra as APPs que ocupam a maior parte das páginas do projeto do Conama.

Em conclusão, três impactos desta lei são inevitáveis: (1) uma forte aceleração da destruição das APPs em todo o país, (2) um aumento enorme da atividade de consultoria de baixo nível, para preparar os requisitos dos processos burocráticos e (3) uma expansão considerável da corrupção. As APPs, graças a este projeto, se converterão em Áreas de Destruição Permanente (ADPs) e a já infernal burocracia que impacta na gestão ambiental será ainda maior, tornando-a inexecutável, para beneficio de uns poucos e mal de todos.

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