No começo dos anos 1980 li o livro “The call girls” (1972), do escritor húngaro nacionalizado britânico Arthur Koestler. Esse livro sempre esteve presente na minha mente pela sua descrição assombrosamente precisa do que eu mesmo vivia naqueles dias, quando ainda acreditava que era possível fazer uma contribuição aceitando os convites que recebia para participar em eventos que discutiam o futuro da humanidade. Lendo aquela novela, cujo fim nem lembro hoje, comecei a perceber que a minha pretensão era vã e que eu, sem sabê-lo, estava começando a me comportar como os personagens de Koestler.
A trama do livro, segundo lembro, gira em torno de um grupo de cientistas, todos famosos, cujo objetivo é discutir os problemas ambientais do planeta e tirar conclusões que deveriam ajudar os governantes a governar melhor. Suponho que Koestler se inspirou no Clube de Roma que, por aqueles dias, começou a trabalhar sua teoria de que os recursos naturais não suportariam a população humana em fins do século passado. Mas o que importa neste caso é o relato que ele fez dos participantes, de seu comportamento e da realidade que as suas caras sérias escondiam. Neste ponto, o livro e as minhas memórias coincidem tanto que apenas falarei do que lembro.
Na ampla mesa de reunião para duas dezenas de pessoas estão os velhos já importantes e os jovens inteligentes e ambiciosos que necessitam marcar a sua presença com discursos radicais. Estão, também, os cientistas puros e outros muito prudentes, para não dizer indecisos, que trabalham para os governos, as mulheres tão feias como sábias e astutas e as outras bem mais coquetes que alegram a vista. Há, ainda, o professor russo que passa distraidamente o pente pela sua barba frondosa e sonha com a garrafa de vodka jacente no seu dormitório; o assessor de algum governo que em todas as reuniões deve anunciar sua partida antecipada para se reunir com seu importantíssimo patrão; os dois ou três representantes do mundo subdesenvolvido africano e latino-americano indispensáveis para legitimar as decisões que os demais tomam; o veterano “meio artista meio cientista” que pinta aquarelas em plena sessão, embora sempre consiga colocar uma palavra conciliadora e oportuna na discussão; o que escreve ou lê qualquer coisa enquanto “faz de conta que escuta” no seu afã de imitar o personagem anterior; o inevitável indiano que jamais se cansa de intervir; o japonês que nunca abre a boca mesmo quando lhe é solicitado; e muitos que entre uma intervenção e outra olham intensamente para as formas agradáveis das poucas damas dignas de serem olhadas na sala, em geral as solícitas secretárias.
As discussões vão e vêm e se prolongam em sessões restritas, nos coquetéis e jantares ou, em pequenos grupos, nos bares dos hotéis. Formam-se alianças para dar vantagens a um ou a outro projeto ou país, ou para barrar uma ou outra iniciativa. Mas a maior parte das conversas não passa de simples fofoca, de críticas maldosas e de intercâmbios sem importância de informações pessoais, apenas para passar o tempo. Tudo regado com muita bebida e incentivado pela combustão de comida abundante, própria de hotéis cinco estrelas que em geral hospedam essas reuniões. À noite e até o amanhecer, portas se abrem e fecham discretamente sobre os novos ou velhos amores internacionais, por todos conhecidos e sempre gentilmente tolerados, como deve ser entre gente de mentalidade aberta.
Bilhões para salvar o mundo
A cada ano gastam-se bilhões de dólares em reuniões para “salvar o mundo”, quer seja em eventos sobre meio ambiente, saúde, fome, agricultura, vivenda, direitos humanos, etc. Trata-se de reuniões pequenas, como a descrita acima, ou gigantescas com milhares de participantes que apenas se limitam a escutar. A indústria das reuniões é tão grande que é considerada uma especialidade do turismo e no seu nome se construíram centros de eventos em todas as cidades que querem ser respeitáveis. Como segmento turístico essa indústria é, sem dúvida, importante, mas seu aporte para a sociedade, em termos da relação custo/benefício, é inquestionavelmente muito baixo.
Nos próximos dias começam, em Curitiba, a chamada 8ª Conferência das Partes da Convenção da Biodiversidade e o 3º Encontro das Partes do Protocolo de Cartagena sobre Biossegurança. Esperam-se mais de 3 mil participantes e observadores de todas as partes do mundo, que ficarão nessa cidade por mais de uma semana. Será que esse evento justificará o que custa? Quantos, dos milhares que participarão da conferência, aportarão algo para seus objetivos? Quem paga o custo do milhar de eventos que, só no Brasil, se realiza a cada ano apenas sobre temas ambientais?
Cabe responder que a maior parte dos congressos, conferências, assembléias, seminários, foros, oficinas e outros semelhantes só têm o propósito de que decisões previamente tomadas pelos mais poderosos sejam democratizadas ou popularizadas. Mesmo nas raras ocasiões em que as decisões são realmente fruto de consenso, poderiam ter sido obtidas a custos várias vezes inferiores, especialmente com menos participantes. Quanto mais participante, mais conversa fiada, mas é justificada para permitir que cada um possa voltar a seu escritório e dizer ao chefe “eu mantive a nossa posição” ou “eu apresentei uma moção” e, claro, “fui muito aplaudido”. Em outros eventos, de natureza mais informativa, até que com muita paciência pode-se aprender alguma coisa. Mas, em geral, trata-se de pura perda de tempo e de muito mal gasto de dinheiro e energia.
Na verdade, na sua maioria, esses eventos são programados pelas instituições apenas como atos rituais e não porque sejam necessários. Por exemplo, as assembléias anuais dos bancos multilaterais reúnem até 10 mil pessoas em torno de duas centenas de governadores, que são os únicos que tomam decisões que, ademais, no essencial já foram decididas semanas antes. O resto é puro circo, cujo custo milionário é pago pelos povos famintos que devem receber a “ajuda para o desenvolvimento”. Nos grandes eventos sempre tem mais gente fora da sala de reuniões que dentro dela e sempre tem mais gente visitando o país que na reunião, excetuando no dia da inauguração. Ninguém considera o fato de que as informações hoje circulam perfeitamente pela rede eletrônica e que os debates podem ser feitos através desses meios, sem necessidade de dar a volta ao mundo para se olhar olho no olho. Os eventos na verdade têm muito sucesso porque são uma necessidade para a promoção pessoal, para se exibir a própria competência, satisfazer a vaidade, criar oportunidades próprias de emprego e promoção e, com menos dissimulação, apenas para conhecer outros países e pessoas, comprar presentes exóticos para a família, adquirir algum produto especial no duty free, incrementar o currículo e dar inveja aos amigos e colegas.
Voltando a Koestler, e à minha própria experiência em centenas de eventos em que tive desde função passiva e até a de protagonista, apenas posso ratificar que em muitos casos o apelativo de “call girls” ou, se preferir garotas de programa, se justifica. Isso é no que nos convertemos, muitas vezes, os que assumimos que temos a capacidade ou o direito de falar no nome da nação ou da humanidade. Somos chamados, com os gastos cobertos, freqüentemente aos rincões mais belos do mundo, para que a nossa opinião seja ouvida. Mas, como acontece com as garotas de programa tradicionais, na verdade o convite é apenas para amenizar o evento, para validar o que os mais poderosos já decidiram e, quiçá, até para diverti-los. E, como sucede com elas, um dia ou outro a gente se satura do que faz e, às vezes tarde demais, até passa a ter vergonha.
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