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Megalomania bolivariana

A natureza sempre está sujeita a ser atropelada por projetos faraônicos de políticos. Mas a Amazônia corre sério risco nas mãos de Hugo Chavez e de empreiteiras.

4 de maio de 2006 · 18 anos atrás
  • Marc Dourojeanni

    Consultor e professor emérito da Universidade Nacional Agrária de Lima, Peru. Foi chefe da Divisão Ambiental do Banco Interam...

Megalomania, segundo o dicionário Aurélio, é a mania de grandeza, a superestima patológica de si mesmo, das próprias qualidades e, claro, seus perpetradores são os megalomaníacos. Essas palavras vêm à tona após o anúncio do Presidente da Venezuela, ecoado, embora não se saiba com que nível de entusiasmo, pelos seus colegas do Brasil e da Argentina, de construir um gasoduto que uniria os três paises. Este, se vier a tornar-se realidade, atravessará milhares de quilômetros de nosso continente a um custo situado na ordem de vinte bilhões de dólares.

Trata-se, sem dúvida, de uma proposta megalomaníaca. E seu proponente é, obviamente, um megalômano titulado que no seu afã de imitar ao Libertador Simon Bolívar, já decretou, sem solicitar opinião nem permissão, a guerra da independência latino-americana contra o jugo imperialista norte americano e, agora, em vez de enviar seus exércitos a rodar pela região como o fez o grande Bolívar, pretende nela derramar o petróleo do povo venezuelano para realizar o sonho hegemônico bolivariano.

Como muitos já escreveram nestes dias, o tal projeto é uma verdadeira ameaça ambiental e social para extensas regiões especialmente do Brasil e uma incógnita econômica, além de ser um grande desafio tecnológico. Mas é muito cedo para discutir especificidades do projeto, pois se encontra, aparentemente, apenas ao nível de diarréia mental num cérebro que já demonstrou sinais eloqüentes de fraqueza estrutural. O problema, como com outras idéias megalômanas é que já deve haver uma dezena de empresas transnacionais de consultoria e de engenharia esfregando as mãos ou com as babas pelo chão, pensando nos negócios suculentos que virão. Elas, evidentemente, já devem ter gasto algum dinheirinho para dar forma lógica ao projeto do megalômano e já estão movimentando seu arsenal de influências em congressos e jornais para demonstrar a viabilidade técnica e financeira, assim como o inócuo caráter sócio-ambiental da brilhante idéia do comandante presidente.

Marginal da Selva

A megalomania não é, lamentavelmente, exclusividade dos ditadores e quase ditadores. Muitos democratas também padecem do mal. Um dos mais notórios, na América Latina, foi o Presidente Fernando Belaúnde do Peru, que imitando os generais da ditadura militar brasileira, organizou a “conquista do Peru pelos peruanos” e construiu milhares de quilômetros de estradas na Amazônia e, em especial, sua famosa “Marginal da Selva”, hoje bem mais conhecida como a “Estrada da Coca”. Suas estradas destruíram milhões de hectares de floresta, exterminaram povos indígenas e disseminaram a pobreza e a guerra civil. Belaúnde era um megalômano puro. Não satisfeito com a Marginal, foi o maior promotor da interconexão fluvial das bacias do Orenoco, Amazonas e Prata. Para isso realizou pessoalmente, qual um moderno Fitzcarrald, uma patética viagem pelo rio Casiquiare a bordo de um navio de guerra, criando embaraços diplomáticos quase cômicos com o Brasil e a Venezuela, especialmente quando seu navio encalhou.

Não todos os megalômanos fracassam nas suas intenções. O Presidente Kubitschek também foi megalômano quando decidiu por em prática a idéia de tirar a capital do Brasil do Rio de Janeiro e levá-la para o centro do país, em pleno cerrado, terra quase ignota na época e, como bem se sabe, triunfou na sua atrevida empresa. A megalomania tem muitos triunfadores como os que construíram o Canal de Panamá ou o Canal de Suez, o túnel do Canal de la Mancha e tantas outras obras importantes. Existe, pois, megalomania e, também, megalomania bem calculada que, na verdade, deixa de ser megalomania para se converter em algo assim como “obra atrevida” as que, às vezes, determinam o progresso da humanidade. No final, o importante dessas obras monumentais é a sua utilidade à sociedade. Viajar no espaço ou no tempo, brincar com as intimidades do átomo, reconstruir seres vivos, dentre outros milhares de projetos científicos de ponta, não deixa de ter uma parcela megalômana.

Mas as infra-estruturas megalomaníacas, inclusive as bem sucedidas como a transferência da capital do Brasil, sempre trazem severos e nunca bem calculados impactos sociais e ambientais. O cerrado quase desapareceu sob a expansão agropecuária irrestrita e o problema é que agora a região sofre de falta de água e de outros serviços ambientais e que a erosão química, hídrica e eólica dos solos é tão violenta que o futuro já está comprometido. Nem falar de biodiversidade e de outros temas em que os megalomaníacos não se interessam jamais, como ficou demonstrado pelo comandante presidente da Venezuela, que “não vê” contradição entre suas promessas ambientais da semana anterior e sua promoção desenfreada de um gasoduto que atravessa ecossistemas frágeis e provavelmente inúmeras reservas indígenas e unidades de conservação.

Negócios apetitosos

A máxima expressão atual da megalomania na região se chama IIRSA ou Iniciativa de Integração da Infra-estrutura Sul Americana. Ela é promovida ardorosamente em especial pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e a Corporação Andina de Fomento (CAF) e, claro, por muitos dos governos dos países da América do Sul que assinaram no ano 2000 o acordo de levar essa “integração” adiante. Ela implica no investimento de 37,5 bilhões de dólares em 335 projetos, principalmente estradas, barragens, redes elétricas e comunicações. Seus primeiros estragos já são bem conhecidos, com o asfaltamento da estrada Interoceânica, entre o Brasil e o Peru, que já está provocando aceleração do desmatamento, invasão de terras indígenas, perda de biodiversidade, novos conflitos pela terra, erosão dos solos e mais desastres “naturais”, incremento das emissões de carbono, etc. Da IIRSA, por exemplo, forma parte a barragem do rio Madeira que com muita razão tanta preocupação tem levantado na sociedade brasileira. Sem dúvida, em breve, o gasoduto do comandante bolivariano também aparecerá na lista da IIRSA. Nem sequer os grandes bancos multilaterais de desenvolvimento podem resistir à tentação de negócios tão apetitosos.

Os bilhões e bilhões de dólares da megalomania regional avassalam qualquer intento de racionalizar os processos de aprovação das suas propostas. Estas nem sequer podem ser discutidas ou criticadas, sob risco de se ser considerado inimigo dos “anseios populares” e até da pátria, como insinuou muitas vezes o Presidente Toledo, do Peru, contra os que vêem problemas na Interoceânica. A verdade é que a principal motivação do presidente peruano era aprimorar seu triste 5% de aceitação popular e, quem sabe, como muitos já insinuaram preparar sua cama para seu previsível ostracismo após a transferência de poder. O dinheiro megalomaníaco muda manchetes de jornais, compra vontades, silencia protestos, torna ridículo qualquer argumento ou, simplesmente, passa acima de tudo e de todos, como os seus bulldozers nas florestas e sobre as malocas.

Os que criticam os governos democráticos nacionais, pela sua ineficiência e corrupção, devem estar preparados a lidar com inimigos muito mais perigosos que, a cada dia, são mais atrevidos, como o poder econômico transnacional que apóia as loucuras eleitoreiras mais custosas. Mas, a internacionalização do “neo-bolivarianismo” é um perigoso capítulo novo.

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