Um jovem amigo meu escolheu para sua tese de mestre em lingüística o registro de uma língua indígena em extinção. Segundo seu professor um só homem velho, dentre todos os índios, conseguiria ainda falar a língua, que até há décadas era a de uma poderosa e temida nação do norte do Mato Grosso e sul da Rondônia.
Evidentemente não é recomendável fazer pesquisa em uma reserva indígena sem a autorização escrita da Funai, a ciumenta Fundação encarregada de proteger os índios e a sua cultura. O professor do nosso jovem amigo, bem conhecido na Funai, se ofereceu a apoiar as gestões burocráticas e a abreviá-las usando a sua influência, bem merecida após décadas de serviços aos povos indígenas. Projeto, formulários, cartas da Universidade e outros papéis foram preenchidos, apresentados em várias cópias e devidamente carimbados, nas mesas das partes envolvidas. Sabia-se que a permissão levaria meses para ser emitida e, por isso, tudo foi feito com muita antecedência do período previsto para o início da pesquisa. Mas, a demora da autorização superou toda e qualquer previsão pessimista. Tendo transcorrido bem mais de um ano, o candidato a pesquisador já tinha gasto dois pares de pneus da sua bicicleta indo e vindo da sua casa à Funai onde já era popular entre os índios que lá montam guarda; seu professor teve uma suculenta conta adicional de telefone ligando a seus conhecidos, que deveriam ajudá-lo e, o pior, o jovem já tinha terminado todos seus cursos e requisitos para o mestrado, sem receber a ansiada resposta. Sua preocupação não era só a perda de tempo, mas sua responsabilidade ante o CNPq que financiou o projeto e ante os prazos severos da Faculdade. O professor já não falava mais das suas obviamente caducas influências na Funai mas, teimoso, se negava a mudar o tema da tese. Finalmente, ele aceitou a mudança e o nosso decepcionado jovem se preparou para fazer uma tese de gabinete, sem atrativo, apenas para não perder seus estudos.
Quando já estava adiantado o trabalho na nova linha de pesquisa…. milagre… a autorização foi emitida. Preparativos urgentes foram encetados, a mãe ficou preocupada, mas prevaleceu o orgulho de ser útil à ciência e à cultura, a ilusão de ver a selva amazônica e, em especial, a oportunidade de compartilhar algumas semanas com índios de verdade. A viagem terrestre começou em Cuiabá e terminou na beira do rio onde sulcaria até a Reserva. Foram mais de 900 km de soja, pastagens e de incêndios, todos a perder de vista. Até chegou a pensar que os mapas do Brasil, que mostram a cor verde de “Amazônia”, nessa parte, deveriam estar errados. Mas, compreendeu a realidade quando no meio da fumaça observou que os caminhões que seu ônibus cruzava eram monotonamente portadores de madeira ou de gado. O pior foi constatar que até chegar à Reserva Indígena e, inclusive dentro dela, não viu um só lugar que poderia ser propriamente chamado de floresta. Apenas intermináveis pastagens abandonadas, chácaras de mandioca e pouca coisa a mais e, isso sim, muita capoeira de todas as idades.
Para sua surpresa os índios o receberam com satisfação e alegria. Para eles, que, em uma sessão especial do conselho, tinham dado sua benção para a pesquisa há mais de um ano e meio, ele tinha morrido, única explicação plausível para a sua demorada chegada. Os índios, curiosos com o recém chegado, acompanharam suas diligências e, com grande generosidade, facilitaram sua instalação numa das malocas onde ele estendeu seu mosquiteiro. Outra família se prontificou a alimentá-lo e, finalmente pôde começar seu trabalho, entrevistando o ancião e outros, que, com gentileza e diligência, muito contribuíram para que ele reunisse a informação necessária para o registro da língua.
Além das longas conversas com o velho e outros poucos que lembravam a língua ancestral, para facilitar seu trabalho, costumava acompanhar aos índios nos seus afazeres diários, na chácara, nas caçadas e pescarias, na colheita de frutas, lenha, ou de folhas de palmeiras, sempre munido de sua gravadora. Assim soube, pouco a pouco, algo da história recente da tribo. Ela começou com o início do pólo noroeste, o programa de desenvolvimento do Governo da década dos anos 1980s que, com o apoio do Banco Mundial, abriu essa região aos benefícios da civilização. Durante alguma tempo a presença dos forâneos parecia sem risco: agentes da Funai, médicos e enfermeiras, alguns pesquisadores, uns poucos gringos. Todos pareciam amigos benevolentes trazendo presentes e sorrisos e, claro, teve uma certa lua de mel com os recém chegados. Mas, aos poucos começaram a chegar outros personagens, inclusive alguns que se instalaram, sem solicitar permissão, nas suas terras. Já então traziam um líquido claro, que eles gostaram muito, a cachaça. Esses índios não sabiam que essa é a arma mais eficiente usada por séculos para conquistar a Amazônia. Ao mesmo tempo, chegaram as primeiras ofertas tentadoras de madeireiros, associados com funcionários públicos locais que convenceram aos pouco prudentes caciques a “vender” árvores. As motoserras e outros equipamentos irromperam na terra e tiraram árvores por muito tempo, com eventuais interrupções provocadas por desacordos quanto aos pagamentos e por algumas interferências da Funai e do IBDF, hoje transformado em Ibama.
Por isso é que nosso jovem pesquisador não pode ver uma verdadeira floresta. Por isso também que a maior parte dos índios já não era evidentemente de índios como ele os imaginava. Nada de vestimenta e fala tradicionais, poucos semblantes de longínqua origem asiática e, pelo contrário, evidência múltipla de sangue negro e branco, produto da generosidade das mulheres índias e lixo “civilizado” por todas as partes. Os índios de hoje são muito pobres por lá. Sua terra foi devastada e arruinada, apenas uns poucos bichos refugiados nas capoeiras ainda sustentam as caçadas, os rios viraram barrentos e com poucos peixes por culpa das colonizações e fazendas instaladas à montante e, a cada ano, a fumaça das queimadas contamina o ar, agravando as enfermidades que a civilização trouxe.
Após algumas semanas de trabalho produtivo chegaram dois funcionários da Funai. Um homem maduro, o chefe, e uma mulher jovem, uma antropóloga. Eles instalaram-se no posto da Funasa, a única construção “nobre” da aldeia. Saudações, apresentações, tudo bem. No dia seguinte teve reunião com os índios onde nosso pesquisador esteve presente. Tudo normal até que a antropóloga tomou a palavra e no meio de seu discurso, alertou os índios contra o imperialismo científico e a perda dos conhecimentos indígenas em beneficio dos piratas internacionais. Até aí….tudo bem. Mas, a funcionária, embalada no seu discurso antiimperialista, continuou exigindo precaução contra esses cientistas loiros que passeiam com uma gravadora e uma câmara fotográfica, pois eles são os agentes do imperialismo. O nosso amigo, embora brasileiro, é loiro e ainda estava, na mesma reunião, com a gravadora e a máquina fotográfica. Sentiu-se afetado. Ainda mais porque os índios mostravam consternação. Em quem acreditar? No pesquisador que explicou que estava lá para resgatar parte da sua cultura ancestral ou na antropóloga da Funai que lhes dizia, obviamente, que o objetivo da pesquisa era roubar-lhes o pouco que ainda era deles?
Perguntou, então, se a senhora se referia a ele. Ela respondeu que não; que ele estava lá convidado pela Funai, mas, sim, aos outros. Os índios, e ele mesmo, olharam por todos os rincões do espaço onde se realizava a reunião e ficaram perplexos. Não tinha mais ninguém, senão ele mesmo que se ajustava à descrição tão precisa do demônio imperialista. O fato é que o comentário foi repetido com poucas variantes pela antropóloga duas vezes mais, em outras circunstâncias. Finalmente o casal da Funai foi embora. Na sua última visão deles, os funcionários estavam comodamente sentados, esperando que meninos e meninas indígenas, abrumados pelo peso das volumosas equipagens, os carregassem até a embarcação, serviço pelo qual não deram nem um sorriso.
O nosso jovem amigo aprendeu muito nessa sua primeira viagem à Amazônia. Aprendeu que a Amazônia e seus índios já não são como se diz que eram. Que já não é uma terra misteriosa onde a natureza domina e onde os índios vivem pouco, mas vivem felizes. A Amazônia se está convertendo em uma terra arruinada e triste, onde as únicas ameaças provêem das ações humanas e das suas conseqüências e onde seus antigos povoadores vivem em favelas que nem têm as vantagens das favelas urbanas. E que, no meio dessa miséria humana e natural, continua campeando o mesmo comportamento estúpido que provocou a situação atual. Enfim, o nosso amigo constatou que o que se fala sobre a destruição da Amazônia não é ficção científica. Ficção científica é acreditar que a Amazônia de antes ainda existe.
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