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Da contaminação por pó de broca à luta ambiental: a história de um ambientalista da Baixada Fluminense

Em entrevista a ((o))eco, o ambientalista José Miguel da Silva fala sobre racismo ambiental, contaminação e como é militar pelo meio ambiente em um município da Baixada Fluminense

Neise Marçal ·
7 de maio de 2024

“Prefeito na Baixada Fluminense é considerado de interior e vira coronel. Se cerca de capangas, segurança, polícia, gente estranha. Aí monta um staff nebuloso que o povo fica com medo de reclamar. E se você não reclama, o Ministério Público só pode agir por demanda. A população fica com medo da sombra. Os mais necessitados aceitam um empreguinho na prefeitura ganhando um salário mínimo para trabalhar perto de casa. E esses cargos são distribuídos por 29 vereadores que atualmente não tem um na oposição, imagina o que o prefeito pode fazer. O povo pobre vai morar na beira do rio na esperança que um dia a prefeitura o tire dali e o coloque num conjunto habitacional. E quando constroem levam 20 anos. Isso é racismo ambiental!” 

A análise crítica de uma das regiões mais carentes de políticas ambientais do estado do Rio é de um morador que se dedicou ao ambientalismo para tentar reverter a realidade dura dos moradores da região. José Miguel da Silva foi criado na Cidade dos Meninos, a 41 km do centro do Rio. 

Abandono e descaso público 

Criada em 1943 por Darcy Vargas como um internato que ofereceria moradia e ensino profissionalizante em uma área de 1900 hectares do então Ministério da Saúde e Educação, foi repassado três anos depois para a Fundação Abrigo Cristo Redentor, que chegou a abrigar 1200 órfãos, além de moradores que já ocupavam a área rural da baixada. 

O Mapa de Conflitos, injustiça ambiental e saúde no Brasil, elaborado pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) registrou o aumento do número de doenças tropicais, especialmente a malária, no final dos anos 40 e início da década de 1950 na Baixada Fluminense, o que levou o governo federal a instalar no mesmo local um projeto de produção de pesticidas químicos para o combate aos vetores da doença, entre eles o hexaclorociclohexano, conhecido como pó de broca.

Em 1961 a fábrica foi fechada e o material tóxico produzido, cerca de 400 toneladas, abandonado no local, sendo utilizado pelos moradores para várias finalidades, sem o menor controle do Estado. 

Três décadas depois, com a venda ilegal do pó de broca até em feiras livres da região denunciada pela imprensa fluminense, as autoridades estaduais passaram a investigar o produto e seus impactos para o meio ambiente e saúde dos moradores. Em 1993, com uma decisão judicial, o orfanato que ainda abrigava 200 meninos foi interditado. A medida teve como base estudos realizados pela Fiocruz que constataram a contaminação de moradores próximos à fábrica. Foi neste cenário de risco e contaminação que o ambientalista José Miguel da Silva foi criado. 

“O prédio da fábrica desativado era nosso espaço de diversão. A gente entrava lá escondido e brincava entre o maquinário abandonado e o produto químico. O local não tinha cerca ou placa alertando. Eu cresci brincando com pó de broca”, conta.

Cidade dos Meninos, em Duqye de Caxias, em 2005. Crédito: Ana Carolina Fernandes/Folhapress

Da contaminação à luta ambiental 

O início dos anos 80 foi marcado por mobilizações populares e uma forte presença da igreja católica na Baixada Fluminense. Em 1982, com o início do processo de abertura política no país, Dom Mauro Morelli, primeiro bispo auxiliar da diocese de Duque de Caxias, estabeleceu uma aproximação com os moradores das comunidades eclesiais de base. 

“Com o bispo ajudando, quem se escondia com medo da repressão, começou a aparecer. Tínhamos aulas de estratégia política e luta por direitos”, lembra o ambientalista. 

“Eu levei um susto com a história do pó de broca em 1987 quando foram fazer uma entrevista com uma vizinha que morava no depósito da fábrica. Ela disse ao jornalista que quando os sobrinhos iam para a casa dela, sofriam crises convulsivas. Aquilo me alertou”, conta. José Miguel, que ainda mora ao lado da fábrica, ajudou a criar neste mesmo ano a primeira associação de moradores da Cidade dos Meninos. 

“Na época, 387 famílias moravam no local. A gente não tinha preocupação com o pó de broca e convivemos com uma montanha de pesticida que as famílias usavam nas crianças para matar piolho e nas plantações para conter as pragas. Só em 1991 é que o controle da contaminação começou a ser feito pela Fiocruz.”

Para o ambientalista, Dom Mauro Morelli foi um divisor de águas em Caxias. “A gente passou a ter liberdade para falar na igreja e fomos capacitados para assumir nossa responsabilidade como cidadão. Em um ato público da Pró Constituinte na cidade, que teve a participação do bispo, de Lula e Betinho, foi criada a Plenária Pró Participação Popular na Constituinte, que tinha o objetivo de garantir emendas populares na Constituição de 1988. Eu participava das reuniões na ABI [Associação Brasileira de Imprensa], aprovava propostas e fazia os abaixo assinados para nossas causas. Nestes eventos foi criada a primeira curadoria do meio ambiente com o promotor João Batista Petersen. Naquela época éramos chamados de ecologistas, por nossas lutas ambientais”. 

Participação popular na Constituição e Eco 92 

O movimento popular garantiu emendas importantes na Constituição de 1988. “No capítulo meio ambiente, conseguimos emplacar medidas importantes como a garantia do princípio poluidor/pagador. Mesmo não sendo culpado pelo esquecimento do pó de broca na Cidade dos Meninos, o Ministério da Saúde passou a ter a responsabilidade de recuperar a área e cuidar das pessoas. O meio ambiente na Baixada era muito incipiente, não tinha secretaria de meio ambiente, eram coordenadorias ligadas à secretaria de obras que cuidava de lixo, vazamentos e tudo relativo ao ambiente”, explica. Com as novas leis e a proximidade da Conferência Mundial do Meio Ambiente, que aconteceria no Rio de Janeiro em 1992, a Fiocruz passou a monitorar os casos de contaminação.

“Em 91 éramos a única associação de moradores que participava do Fórum Pré Eco 92. Com outros ambientalistas fizemos protestos simbólicos, como levar o pesticida para a porta da Fundação Estadual de Engenharia do Meio Ambiente (Feema). Levei um saco de veneno para a Eco 92 no Aterro do Flamengo e espalhei maizena no stand da Secretaria de Meio Ambiente para simbolizar a luta. Fechamos o stand com linhas vermelhas e escrevemos numa faixa “Fechados por omissão”, lembra no bate-papo com ((o))eco. 

Impactos da contaminação

“Perdi um irmão com câncer aos 19 anos, antes de sabermos as possíveis causas. Isso gerou uma revolta muito grande. Outro irmão também morreu de câncer recentemente. Minha irmã se recuperou da mesma doença. Eu não tenho diagnóstico, mas estou contaminado. A cada 5 anos a Fiocruz faz exames para monitorar os danos à saúde dos moradores.” O ambientalista diz que após a conferência do Rio as lutas ambientais ganharam força. “Ajudei em 1994 na organizadores de catadores de lixo em Jardim Gramacho. As nossas causas são muito distantes da realidade de outras regiões do estado do Rio. Como vou me preocupar com o microplástico na água se não tem água na torneira? Lixo reciclável se não tem coleta adequada? Como o aluno vai entender se nem a escola faz coleta seletiva?” questiona José Miguel. Segundo ele, o município da Baixada tem no polo petroquímico e na Refinaria Reduc os grandes poluidores, comprometendo as águas da baía de Guanabara. “A cidade tem rios assoreados, lixo sem tratamento adequado, habitações irregulares e esgotamento sanitário insuficiente. Se não for dentro de um condomínio ou em uma empresa, o saneamento não existe. O da população nas ruas é jogado dentro do rio mais próximo. O orçamento do município é alto, não é falta de dinheiro. É gestão. Como pode não termos recursos destinados ao meio ambiente? Como um município tão próspero não tem um olhar cuidadoso com o meio ambiente? O rio Sarapuí, por exemplo, tem 17 km de casa nos dois lados de suas margens”. 

Participação na vida pública 

À frente da Associação Ecocidade, que criou em 1998, José Miguel mantém parcerias com universidades para catalogar a história do pó de broca e oferecer cooperação técnica. Na gestão municipal de Caxias foi conselheiro e em 2008 foi secretário do meio ambiente na gestão de Washington Reis por 9 meses e deixou o cargo porque o prefeito não foi reeleito. 

Neste período na secretaria de ambiente, o ambientalista diz que foi surpreendido por uma condenação por crime ambiental. “Soube por um jornalista, quando já estava fora da secretaria que tinha sido condenado a um ano de reclusão numa ação movida pelo Ministério Público Federal. Um processo sem licenciamento ambiental para a construção de uma pista de motocross em Xerém. Eu não conseguia acesso ao processo todo e assumi um problema que já estava em curso quando eu entrei. Constituí advogado e recorri da condenação no STF e fui absolvido”, diz. 

Olhando para o futuro, José Miguel relembra o passado. “Percebi que dá para fazer mais do que estão fazendo. Duque de Caxias foi uma das primeiras cidades a ter licenciamento ambiental municipal. Aprovamos uma série de medidas com exigências e garantias para impactar o mínimo. O legado está lá”, garante o ambientalista.

  • Neise Marçal

    Jornalista, âncora de rádio, chefe de reportagem, apresentadora de tv e coordenadora de produção em diversos veículos do Rio de Janeiro. Formada em comunicação pela Universidade Gama Filho.

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Comentários 1

  1. Alfredo diz:

    Grande espelho pra nós da sua geração e muito mais , uma força política e pragmática para ser seguida. Salve Miguel!!!