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A supresa do inesperado

O princípio cautelar muda o paradigma na regulação de riscos para o meio ambiente. Ao invés de responsabilizar quem comprovadamente polui, impõe ao dono de um agente a obrigação de garantir que ele não polui.

14 de agosto de 2004 · 20 anos atrás
  • Sérgio Abranches

    Mestre em Sociologia pela UnB e PhD em Ciência Política pela Universidade de Cornell

”… talvez, quem sabe um dia o inesperado faça uma surpresa…”
Johny Alf


As surpresas do inesperado podem ser boas ou más. Na letra de Johnny Alf é promessa boa. Licença poética. Mas, para quem trata de questões mais áridas – êpa, parece trocadilho, numa coluna de ecologia – ou menos românticas – o inesperado pode representar risco, incerteza e ignorância.
Esta é a tese defendida pelos editores do volume The Precautionary Principle in the 20th Century – Late Lessons from Early Warning (O Princípio Cautelar no Século XX – Lições Tardias de Avisos Prévios) – encomendado pela Agência Ambiental Européia a especialistas, para, sob coordenação de seu comitê científico, identificar avisos prévios de riscos, como foram considerados e quando ações preventivas ou reativas foram tomadas.


Surpresa nefasta


Não foi uma surpresa boa, para as pessoas que trabalhavam em fábricas de asbestos, a notícia de câncer no pulmão, gerados pela continuidade da produção e do uso, mesmo após os sinais de risco. As primeiras referências aos perigos à saúde humana, de exposição ao asbesto, surgiram ainda em 1898, em relatório de uma Inspetora Feminina de Fábricas, no Reino Unido. Em 1906, um Inspetor de Fábricas da França chamou atenção para perto de 50 óbitos de trabalhadoras em fábricas de asbestos. Em 1932, um investigador independente relatou ao Trade Union Council, o famoso TUC britânico, três casos de asbestose, em uma fábrica londrina. Em 1953, um produtor de asbestos, Turner Brothers, pediu ao epidemiologista Richard Doll que avaliasse as causas da mortalidade de seus trabalhadores em Rochdale. Ele concluiu que o risco de câncer pulmonar naqueles que haviam sido expostos ao produto por vinte anos ou mais era dez vezes maior do que na população em geral.

Não obstante, somente em no final dos anos 90 do século XX, ele foi banido na Europa. Mas o Canadá recorreu à OMC, contra a proibição e, só no começo deste Século, o recurso foi negado. Tampouco foi boa a surpresa do inesperado aparecimento de câncer vaginal, 20 ou 30 anos depois, para as mulheres que tomaram estrogênio sintético injetável, como preventivo para aborto natural. Ou para os filhos homens, que nasceram com atrofia dos órgãos sexuais pela mesma razão.

As primeiras notícias dessa ameaça surgiram em pesquisas de laboratório, com animais, em 1938. Em 1953, ficou determinada a ineficácia do estrogênio na prevenção do aborto natural. Mas somente em 1971, surgiram as primeiras evidências do efeito cancerígeno do produto. Nesses quase 20 anos, entre a descoberta de sua ineficácia médica e do risco fatal que envolvia, seu uso continuou a ser prescrito pelos médicos e encorajado pela propaganda dos laboratórios.

Banido das clínicas de obstetrícia, o estrogênio continuou sendo utilizado na pecuária e na avicultura, como promotor de crescimento. As evidências de suas propriedades carcinogênicas levaram ao seu banimento, na Europa, nos anos 70. Mas não havia a mesma convicção nos Estados Unidos e a proibição provocou uma disputa comercial, com imposição de tarifas retaliatórias a exportações européias. Em 1997, EUA e Canadá recorreram à OMC contra a decisão européia. A primeira decisão lhes foi favorável. No recurso, ela foi revertida, em parte. Mas a controvérsia permaneceu sem solução.

Em 1945, em uma entrevista ao New York Times, Alexander Fleming, descobridor da penicilina, alertava para os riscos de uso abusivo do antibiótico, pois “micróbios são educados para resistir” a ela. Ao final da década de 40, foram descobertas as propriedades dos antimicrobianos como promotores de crescimento, em testes com a tetraciclina. O uso desses produtos se disseminou na pecuária e na avicultura. Em meados dos 60, com o avanço das preocupações com infecções alimentares com salmonela resistente a amplo espectro de antibióticos – aparentemente o mesmo agente que causou a morte do ex-ministro das Comunicações de FHC, Sérgio Motta – o governo britânico convocou um estudo independente sobre o possível efeito dos antimicrobianos.

O comitê, presidido pelo professor Michael Swann recomendou uma série de medidas cautelares. Mas o Relatório Swann foi contestado por não apresentar evidência científica suficiente e, embora aquelas recomendações tivessem sido adotadas pelo governo de então, foram posteriormente abrandadas. Em 1986, o parlamento sueco aprovou severas restrições ao uso de antibióticos em animais, exceto para terapia e com prescrição veterinária. Quase dez anos depois, movido pela evidência de enterococos resistentes na carne de porco, o governo dinamarquês baniu o uso de vários antibióticos na alimentação animal e reportou o caso à Comissão Européia. Na Noruega o mesmo procedimento foi adotado um ano depois. Na Alemanha, em 1996. A União Européia, em 97, decidiu pela proibição temporária, de um tipo específico de antimicróbico. Essa proibição foi se ampliando, com a adição de novos produtos. Em 2000, a Organização Mundial da Saúde recomendou o banimento do uso de antibióticos como promotores de crescimento. A questão ainda não está esgotada.

Poderia relembrar outras histórias. Como a do uso do raio-X, logo após sua descoberta. Em 1896, Thomas Edison, alertava para a evidência de danos nos olhos e na pele, devidos ao uso excessivo de radiação. Alguns anos depois, seu assistente perderia o braço e viria, posteriormente, a morrer, por causa de radiodermatite. No início do Século XX, centenas de estudos alertavam para os riscos da radiação, então usada para detectar gravidez. Só vinte anos depois, os primeiros controles começaram a ser adotados e, ainda hoje, há quem desconfie da segurança dos aparelhos de raio-X.

A lista de encontros inesperados com os efeitos colaterais de determinados produtos, que durante muito tempo se julgou inofensivos ou benéficos para a saúde, é longa. São doze casos, analisados pelos especialistas, alguns com registro de maior sucesso, como o abandono do MTBE como aditivo, outros, menos conclusivos, como o do benzeno. Alguns estudos são mais persuasivos, outros menos.

No geral, o livro traz sérios argumentos para que se examine de forma desapaixonada a utilização do princípio cautelar, ou princípio da precaução, como preferem alguns. O assunto é o centro de uma das principais controvérsias, hoje, no campo da política ambiental. Um exemplo de ataque vitriólico a ele está na entrevista de Sir Colin Berry a Brendan O’Neill, do Spike, o qual deverá se repetir na conferência que fará no Euroscience Open Forum da Royal Institution, no dia 26 de agosto.

O Princípio Cautelar

O princípio cautelar apareceu, de fato, como critério de política ambiental, na Rio 92. A partir daí, se tornou a perspectiva dominante nos protocolos internacionais e na política ambiental européia, ou, como diz o cientista político Albert Harris, da universidade estadual Humboldt, uma norma internacional emergente. Ela tem sofrido, desde o governo Clinton, sistemática oposição dos Estados Unidos, que se tornou mais explícita e militante no governo Bush. Os think tanks estadunidenses têm se tornado referência crítica ao uso do princípio e na proposição de variantes mais utilitaristas e pragmáticas. Harris considera que Bush se opõe, por exemplo, ao Protocolo de Kioto, por aderir à versão utilitarista, ou minimalista, desse princípio, em contraposição à versão forte, ou maximalista, do protocolo.

O princípio cautelar representa uma mudança de paradigma na regulação voltada para a redução do risco ambiental e à saúde humana, porque muda a direção do ônus da prova. Na regulação tradicional, a proibição de um determinado agente considerado danoso, se daria a partir da comprovação científica dos males que geraria. Na perspectiva cautelar, o ônus da prova passa a ser dos responsáveis pelo agente, que devem provar que ele não causa danos. Em síntese, o princípio diz que em situações nas quais existe ameaça significativa de dano sério ou irremediável ao meio ambiente ou à saúde humana, a ausência de certeza científica cabal sobre esse risco não pode ser usada para postergar medidas que previnam a degradação ambiental ou a efetivação do mal.

Os exemplos que dei acima, retirados do livro patrocinado pela AEE, mostram situações nas quais a prevenção, ou a cautela, poderiam ter preservado vidas e evitado problemas de longa duração, médicos e ou ambientais. Os que se opõem ao princípio alegam que a ciência avançou muito, desde então, e que hoje tem maior capacidade de prever e evitar danos. Mas mesmo eles reconhecem que esse potencial é limitado e é impossível eliminar a incerteza. Os defensores da versão maximalista dizem que é, exatamente, a incerteza e a ignorância que justificam o princípio cautelar, na presença de dúvida razoável ou suspeita fundada.

Os termos do debate, apesar da carga científica utilizada de parte a parte, são, no entanto, ideológicos. Eles contêm elementos políticos, de julgamento moral e religioso e de posicionamento econômico. Exatamente os componentes que, na coluna anterior, procurei mostrar que impedem o avanço de um paradigma mais consensual e eficaz de desenvolvimento sustentável.

Os cientistas políticos Robert Durant, da American University, e Jerome Legge Jr, da University of Georgia, fazem uma síntese desse debate, com foco na discussão sobre alimentos geneticamente modificados, na União Européia, em trabalho recente, mostrando que é uma discussão turva e polarizada. A polarização se dá mais em torno de valores e menos em função de dados científicos objetivos. Mas eles reconhecem que os dois lados, pelo menos usam a ciência para apoiar suas posições.

Contrariedade de Critérios

O xis da questão é que os critérios da ciência, na busca de conhecimento, e os critérios da regulação, procurando evitar danos ambientais ou sanitários, não coincidem necessariamente. Ao contrário, podem se contradizer. É precisamente esta contrariedade entre os critérios de validação de hipóteses, na ciência, e de ação, na política pública, que torna quase irreconciliável a divergência em torno da “prova” suficiente. Como a evidência de risco é, em larga medida, estatística, há uma tensão, que precisa ser resolvida, entre o princípio de validação estatística, que pede, corretamente, que se rejeite a hipótese nula – um caso de “falso positivo”– e o princípio da prevenção de risco, para o qual, pode haver mais ameaça no “falso negativo”.

Na política de gestão de risco, um falso negativo corresponderia a não agir, por considerar que não há risco significativo, para futuramente descobrir que o risco existia. O falso positivo levaria à ação regulatória, na presunção de risco, que depois a ciência determinaria como inexistente.

A corrente dominada pelos EUA, vem defendendo a idéia de que estas dúvidas se resolvem racionalmente, por meio da análise de custo-benefício. A versão mais moderada e cautelosa dessa solução é defendida tanto por Harris, quanto por Durant e Legge Jr, sem, entretanto, quebrar o enquadramento conceitual mais preciso do princípio cautelar. Para simplificar, a ação cautelar se justificaria naquelas circunstâncias em que os custos de não agir imediatamente superassem significativamente os benefícios correntes da atividade em questão.

Custo-benefício e a inversão do princípio

Mas não é tão simples, porque é claro que, na vida real, seria preciso levar em consideração os custos e benefícios “intertemporais”, o que complica e torna muito imprecisa a análise. Dificilmente, se aplicada para valer e com toda a isenção, ela dirimiria as dúvidas a ponto de transformar o dissenso em consenso.

Indur Goklany, economista do ultraliberal Cato Institute, se propôs a oferecer uma alternativa que resolvesse definitivamente essa controvérsia. Mas logo na introdução de seu livro ele caracteriza o princípio cautelar em termos do dilema proposto por Tolkien: “Que fazer? Fugir dos duendes, para ser apanhado pelos lobos!”. Isto dá uma boa idéia das dificuldades. É o que os sociólogos chamam de “enquadramento” da questão (issue framing) que sobredetermina a conclusão.

Goklany alega que não toma partido na discussão e, apenas, propõe critérios objetivos para utilização do princípio cautelar. Mas todo o enquadramento proposto por ele para o tema, coloca o princípio, na sua versão forte, em termos intratáveis: banir o DDT na África significaria condenar milhões à morte por malária. É certo que o DDT causa câncer em roedores, mas não em certos outros animais, logo não se sabe como isto se relaciona com carcinoma em humanos.

Ele, de fato, põe o princípio cautelar de cabeça para baixo, ao utilizar uma versão radicalmente utilitária, que corresponde, na verdade à sua negação. Na discussão sobre aquecimento global, por exemplo, ele chega ao extremo de defender que nada se faça para conter a emissão de gases que causam o efeito estufa porque essa redução se dará, progressivamente, em todo o mundo, junto com o desenvolvimento. “Quanto maior a taxa de crescimento econômico, maior a taxa de descarbonização da economia”. Além disso, promover a redução das emissões mais rapidamente, pode comprometer o progresso, “retardando incrementos na riqueza global, o que poderia levar a mais fome, menos saúde e maior mortalidade”. Isso porque a maior concentração de CO2 na atmosfera aumenta a produtividade agrícola e das florestas. A ação cautelar deveria se resumir a aumentar a pesquisa para se entender melhor as causas do efeito estufa.

É claro que uma versão laissez-faire da ação cautelar na área ambiental põe mais lenha na fogueira das contradições e impede um enquadramento realista, objetivo, eficaz e ecologicamente correto da questão. E dá-lhe CO2!

Princípio Liminar

Nem por um momento imagino que não haja excessos entre aqueles que defendem o princípio cautelar. Há fundamentalistas dos dois lados. A pesquisa de Durant e Legge Jr, além de fazer um sumário equilibrado da guerra ideológica entre os dois lados, no tema dos organismos geneticamente modificados, examinou de forma muito criativa os resultados da pesquisa de opinião do Eurobarometer, sobre esse e outros assuntos relacionados. Eles mostram que é um debate dominado por julgamentos morais, opiniões valorativas, onde ciência e objetividade têm um papel coadjuvante menor. Por outro lado, quanto maior o conhecimento científico, maior o apoio ao princípio cautelar, ao contrário do que muitos imaginavam.

Minha cautela com relação ao uso fundamentalista do princípio cautelar vem de nossa experiência com as medidas cautelares na Justiça brasileira. O princípio que regula a concessão de liminares em mandados de segurança, diz que, diante da possibilidade de danos irreversíveis ou irreparáveis, o ato potencialmente gerador deve ser interrompido imediatamente, até que seja examinado no seu mérito. A interrupção não implica qualquer juízo de valor: nada tem a ver com a correção ou incorreção, boa ou má fé do agente. Tem a ver apenas com a evidência suficiente de risco de dano irreparável. Não obstante, o que mais se vê nos tribunais brasileiros é liminar suspendendo ações que não implicam, de forma alguma, dano irreversível ou irreparável. Nem são baseadas, tampouco, no mérito – legalidade ou não do ato – mas em julgamentos de valor.

A ciência tem contribuições obviamente relevantes para o bem-estar e o progresso humanos. O uso indiscriminado do princípio cautelar poderia causar danos significativos ao avanço da ciência. Um critério como esses deve usado criteriosamente e, da mesma forma que faz sentido dizer que a ausência de prova suficiente de inexistência de danos não deve justificar a inação, é preciso que a ação se justifique por uma ameaça significativa, com sinais fortes, ainda que não cientificamente substanciados. Se não, vira uma discussão de “todo progresso é desejável” contra “todo progresso é indesejável”, no qual se decide por ignorância e não por sensatez.

O princípio utilitarista não é um substituto eficaz para o verdadeiro princípio cautelar. Por isso, até que alternativa melhor se apresente, serei, aqui, um defensor criterioso da cautela.

Para quem se horrorizou com os exemplos que dei, devo confessar que escolhi alguns dos mais eloqüentes, para chamar atenção e ativar o carisma de um Fleming ou um Edison. Eles são válidos, mas há outros menos válidos. Proponho, entretanto, o seguinte exercício: diante das evidências volumosas de colapso, inépcia e omissão do poder público no Brasil, nem dá para pensar em princípio cautelar, né? Mas dá para imaginar o grau de risco em que vivemos, não dá?

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