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Nota zero

Brasil não surpreende e tem papel medíocre na cúpula mundial do clima em Buenos Aires. Prefere fazer proselitismo a assumir suas responsabilidades ambientais.

10 de dezembro de 2004 · 20 anos atrás
  • Sérgio Abranches

    Mestre em Sociologia pela UnB e PhD em Ciência Política pela Universidade de Cornell

O Brasil está realizando as piores expectativas de desempenho na COP 10, em Buenos Aires. Abriu mão definitivamente do papel de liderança que já teve, pela qualidade técnica e pela criatividade de suas propostas, para fazer diplomacia de terceira, como se fosse um país de quarta.

As péssimas expectativas foram criadas já na preparação de nossa participação em Buenos Aires e estão sendo concretizadas pelas atitudes, palavras e obras da missão oficial brasileira. Nem mesmo o ilustrado e experiente Diretor de Política Ambiental e Desenvolvimento Sustentável do Itamaraty, André Corrêa do Lago, que chefia a missão diplomática brasileira na COP 10, conseguiu escapar da deliberada passagem da liderança com brilho do passado à mediocridade terceiro-mundista de hoje. Declarou aos jornais, antes mesmo do embarque para a cúpula, que “não há possibilidade de aceitar a imposição de metas, nem mesmo depois de 2012”. Antes de assumir compromissos, disse, “os países em desenvolvimento querem ver os resultados dos esforços realizados pelos países desenvolvidos”. Justiça seja feita, a degeneração de nossas posições na questão ambiental não começou no governo Lula, apenas piorou nele.

A declaração de Corrêa do Lago não passa de uma síntese elegante da falsa questão que alimenta a atitude oficial brasileira. É evidente que não se trata de elidir obrigações em nome da lambança alheia, nem de prestar contas à humanidade. Não estamos competindo num frívolo concurso de miss degradante do meio ambiente. Nossas obrigações, em primeiro lugar, não são com a humanidade – da qual, como doem as obviedades, fazemos parte – mas com nosso próprio futuro. E achar que, por trás de uma densa nuvem de gases de efeito estufa e da Amazônia desertificada, se esconde o Eldorado do desenvolvimento é só tolice. Seria patético, se não representasse uma tragédia para as próximas gerações. E, pelo ritmo do estrago – que a ministra Marina jamais vê – as gerações que serão sacrificadas pela devastação ambiental brasileira já podem ter nascido.

Era de se esperar que fôssemos fazer um papelão em Buenos Aires. Afinal, o Conselho sobre Mudança Climática foi reunido na última hora e, ao invés de ser o local onde o governo apresentaria suas diretrizes, foi palco para um discurso desataviado do Presidente da República. Pouco tinha, também, a dizer de substantivo para a Comissão a ministra do Meio Ambiente, Marina Silva que, até a antevéspera de sua viagem para Buenos Aires, ainda ouvia especialistas, aparentemente em busca de o quê dizer. Mas era só impressão. Nenhuma autoridade tinha muito a dizer, de novo, nem estava interessada em desenvolver um novo discurso. Todas tinham a cabeça feita: repetir o discurso surrado das responsabilidades diferenciadas e realimentar as suspeitas de um conluio imperialista para congelar os países subdesenvolvidos, no seu papel de fornecedores de ar puro, para que os ricos continuem enriquecendo.

O coordenador do Conselho, o físico José Pinguelli Rosa, por sua qualificação técnica poderia ter salvado a missão brasileira do vexame, não tivesse optado, como sempre costuma fazer, por temperar a visão científica com velhas suposições ideológicas. As mesmas que expressa na conclusão dos “Comentários à Proposta Brasileira”, onde reconhece “o problema é como envolver os países em desenvolvimento, na redução de emissões de CO2, aumentando a energia per capita, sem aumentar suas respectivas emissões per capita, à mesma taxa, de modo a não seguir a mesma trajetória dos países desenvolvidos”. Este é mesmo um dos desafios. E era para ele que se esperava a missão brasileira contribuísse com boas idéias e não com blá-blá-blá. Mas, a leitura atenta do texto mostra que dessa fonte não se pode esperar por boas idéias, principalmente por idéias inovadoras.

Ele conclui dizendo que “o mecanismo de desenvolvimento limpo, que saiu da proposta brasileira em Kyoto, deveria ser considerado cuidadosamente como um ponto de partida para o envolvimento dos países em desenvolvimento na prevenção de emissões desnecessárias”. Parece de uma sensatez cristalina. Mas toda a clarividência desaparece no fecho condicional, que resume, de verdade, a tese essencial: “Contudo, isto não pode se tornar um substituto para o cumprimento das obrigações dos países desenvolvidos na Convenção do Clima”. Qualquer semelhança com a declaração de Corrêa do Lago não é mera coincidência. Em tempo, antes que alguém resolva contestar, dizendo que este documento não é de hoje: o documento está nos anexos sobre os antecedentes da COP 10, que se realiza agora em Buenos Aires. É velho, sob vários aspectos – não apenas o cronológico – mas continua atual como expressão das idéias do grupo que controla a posição brasileira atual nas discussões oficiais sobre o clima. E não é só de Pinguelli Rosa, é assinado também por Suzana Kahn Ribeiro e Maria Silvia Muylaert. Mas tenho certeza de que Pinguelli Rosa o teria subscrito integralmente, se fosse o caso.

Coerente, ele declarou, esta semana, como coordenador do Conselho e representante, nele, do presidente Luiz Inácio, que “o Brasil não deve assumir metas de redução”. Para ele, essa pressão é “parte do jogo de interesse dos países que não cumprem suas obrigações e estão tentando transferi-los para outras nações”. Ao próprio Pinguelli Rosa essa repetição da teoria do complô parece não estar convencendo totalmente e, talvez por isso, ele dê uma temperada nesse destrambelhamento e alerte que “isso não justifica que o país deixe de combater o desmatamento”. Desde a assinatura da Convenção sobre Clima, tem justificado, e nos últimos dois anos, mais ainda.

Mas essas não são posições pessoais ou isoladas. É a palavra oficial do governo brasileiro. Ao comentar, sem ter sequer percebido seu alcance trágico, o “Inventário Brasileiro de Emissões de Gases de Efeito Estufa”, o ministro da Ciência e Tecnologia, Eduardo Campos, pontificou: “considerando a série histórica de dados, que mostra a contribuição de cada país para o aumento da temperatura desde o início do processo de industrialização, o Brasil encontra-se em posição ainda bastante confortável em comparação com os outros países: nossa contribuição histórica situa-se na ordem de 1% das emissões mundiais”. Poderia ser o discurso de entrega do prêmio de Miss Degradante Ecológica. Recomendaria ao ministro que não se sentisse tão confortável assim, pelo menos não antes de examinar nossa contribuição presente.

Um dos erros elementares dessa posição é confundir passado com história. O passado mostra um grande movimento de devastação e poluição dos países desenvolvidos. Mas a história não nos absolve tampouco. Recomendaria aos ministros a leitura de “A Ferro e Fogo”, de Warren Dean, para se ilustrarem um pouco sobre nossa história. Infelizmente, terão que recorrer ao acervo da Biblioteca Nacional, porque a edição em português está esgotada e a editora não julga interessante reeditá-lo. E não pensem, por favor, que se trata de um documento do complô gringo para manter o Brasil verde e subdesenvolvido. As evidências de Warren Dean são indisputáveis. Além disso, se o complô existisse, já teria perdido seu objeto direto. Basta dar uma olhada nos documentos produzidos por dependências de seus dois ministérios, para que constatem que não somos mais subdesenvolvidos, nem verdes.

Mas o mais importante, é que história é processo, é dinâmica. Se o mundo repetir o Século XX, em termos ambientais, no Século XXI, arrisca nem chegar ao reveillon do Século XXII. O modelo passado de desenvolvimento não é reprodutível e nem existe, nos dias que correm, com a tecnologia e a economia global que temos, correlação entre desmazelo ambiental e prosperidade econômica. Se continuarmos achando que se trata de um concurso de Miss Sujeira, para ganhar uma tiara de brilhantes, não conseguiremos mais que uma faixa de PET. Felizmente, essa não é uma posição consensual. É só a pior em vigor. Como mostrou a reportagem de Manoel Francisco Brito, Choque de ordem, já há quem saiba que por trás do desmatamento não tem prosperidade, mas deserto, capoeira e pobreza. Os rendimentos são aceleradamente decrescentes, até porque a maioria dos que desmatam exaure o solo rapidamente.

Uma jornalista suíça amiga minha ficou escandalizada com os estoques de agrotóxicos e fertilizantes químicos que viu nas fazendas de soja do Mato Grosso. Como diria um candidato irônico, em campanha, “é o modelo de desenvolvimento…”. Já começam a introduzir soja transgênica, porque a produtividade não é mais crescente como no começo e os preços estão caindo. O próximo passo será perder competitividade internacional. O mundo desenvolvido, que o governo brasileiro teme tanto, está parando de comprar grãos geneticamente modificados para consumo humano. Só para alimentação animal. Daqui a mais alguns anos, se as hipóteses mais pessimistas sobre os OGM se confirmarem, nem para isso. “É o modelo de desenvolvimento…”.

Ministra Marina Silva, não sabe e nem viu. Aliás, não viu os relatórios preliminares que mostram que, quando usa dados que sugerem desaceleração no desmatamento, está apenas adiando o reconhecimento, inevitável de que seu governo – e sua gestão – estão sendo desastrados na Amazônia. O desmatamento não está diminuindo, está crescendo. Não está crescendo menos, está crescendo mais. Mesmo admitindo, porém, que os números da ministra, indicando taxa de aceleração zero este ano, estivessem corretos, aceitar apenas estabilizar o ritmo de desmatamento na Amazônia é uma atitude menos que medíocre. Significa tolerar que se subtraia algo como 25 mil km2 de mata todo ano. Se ela pedir a alguém para fazer as contas, verá que, nesse ritmo, a era da desertificação não se contaria mais pelo tempo geológico. Caberia na cronologia das pessoas. Não estou entre os que acham que o deserto amazônico é inevitável. Só se persistirem atitudes como essas no Brasil.

A humanidade agradece o zelo com que o governo brasileiro cuida do cumprimento das obrigações contratuais dos países do Anexo I do Protocolo de Quioto, mas informa que sua boa vontade é desnecessária, diante da crescente mobilização da sociedade civil e dos consumidores desses países, com o mesmo objetivo. É óbvio que nem tudo anda às mil maravilhas, principalmente nos Estados Unidos. Mas o mundo descarta essa operosidade brasileira, porque ela serve apenas para esconder nossa própria irresponsabilidade, não diante da comunidade global, mas da própria Nação brasileira. O fato é que não estamos cumprindo com nossas obrigações ambientais, Quioto ou não Quioto, e essas obrigações são com a nossa posteridade e as perspectivas de desenvolvimento sustentável para o próprio Brasil.

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