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Pobreza analítica

O Brasil não tem pobres porque é pobre. Tem pobres porque exclui. Nossos problemas sociais são distributivos. Não há conflito entre o social e o ambiental.

1 de abril de 2005 · 20 anos atrás
  • Sérgio Abranches

    Mestre em Sociologia pela UnB e PhD em Ciência Política pela Universidade de Cornell

Dia desses, numa roda conversa entre amigos, todos ligados a atividades acadêmicas ou intelectuais, não consegui persuadir alguns deles sobre o acerto das preocupações ambientais. Um deles, de formação acadêmica impecável, em disciplina hoje quase unanimemente praticada por ambientalistas, estranhava que eu defendesse utilizar recursos para preservar espécies animais, quando esse dinheiro deveria estar sendo usado para tirar crianças da pobreza e colocá-las na escola. Sua reação foi tão mais enfática, quanto mais importância eu dava à defesa de nossos muriquis, o maior primata da América e uma espécie de grande importância para a antropologia animal. Mas, tirante os muriquis, a sua é a mesma tese defendida tempos atrás pela escritora Lia Luft em sua coluna na Veja. Um argumento similar, mas em escala global e com uma condição temporal, está no trabalho de Bjorn Lomborg. Ele acha que temos para enfrentar o problema do aquecimento global e deveríamos investir, hoje, no combate à pobreza. Suspeito que ele não compreenda o suficiente dos processos que levam ao aquecimento global, para poder considerar adiáveis as ações para contê-lo. Nem conheça o suficiente dos mecanismos que produzem a pobreza e a concentram na África e em determinadas regiões do Sudeste da Ásia, para imaginar que possam ser enfrentadas com auxílio financeiro global apenas. De um lado, lhe falta conhecimento científico. Do outro, noção da sóciodinâmica política de produção e reprodução da pobreza.

O que faz pessoas bem formadas, inteligentes, comprometidas com o progresso humano, cometer esse tipo de erro?

Estou convencido de que são duas as razões principais para tal equívoco. A primeira, é imaginar que o problema social brasileiro resulta da escassez de recursos monetários. Não resulta. O Brasil gera riqueza suficiente para reduzir sua pobreza significativamente. Poderíamos, hoje, estar nos dedicando apenas a mitigar os efeitos da pobreza residual e sazonal, que a maioria dos países tem também, mesmo quando muito ricos. Poderíamos ter todas as nossas crianças bem alimentadas, com saúde e na escola, recebendo educação de qualidade, sem precisar elevar em um ponto percentual sequer os recursos hoje disponíveis, nos setores público e privado. Mas não escolhemos coletivamente trilhar esse caminho, até agora. Nossas carências sociais têm raízes eminentemente distributivas. Não temos pobres porque somos um país pobre. Temos pobres porque somos um país que exclui.

A segunda fonte de erro está na premissa de que existe um jogo de soma-zero entre preservação ambiental e pobreza, ou seja, se investirmos na preservação, sonegaremos recursos para os pobres. Não existe esse jogo de toma-de-um-para-dar-para-o-outro entre carências sociais e cuidado ambiental. Tanto os pobres, quanto o ambiente, perdem recursos para outras atividades e outros setores sociais, mais poderosos. Esse erro é primo em primeiro grau daquele que imagina que se parássemos de pagar juros, poderíamos investir o dinheiro assim economizado “no social”. Os juros pagam uma dívida que foi contraída para financiar ações do setor público. Que ações? Combate à pobreza? Educação básica? Saúde pública? Não. A maioria dos recursos que resultam em endividamento do setor público, é gasta nas aposentadorias dos setores mais privilegiados do sistema previdenciário e transferida, sob a forma dos mais variados incentivos e subsídios, a setores do topo da sociedade, agravando as desigualdades e produzindo a concentração de recursos que nos impede de “investir no social” e na preservação ambiental. Mesmo no campo da educação, quando escolhemos dar universidade gratuita de primeira qualidade para os filhos das classes média e alta, estamos dificultando a tarefa de dar educação básica de qualidade a todos.

Não é só no Brasil que a tragédia social decorre mais da má distribuição dos recursos e da riqueza, do que da sua carência. Note-se que o Brasil não está na região de concentração da pobreza mundial. Um exemplo dramático disso está no estudo do prêmio Nobel Amartya Sen, sobre a mortandade por inanição na Etiópia, no Sahel (África Ocidental), em Bangladesh e em Bengala, todos nessa região do mundo de pobreza e fome, em Poverty and Famines: An Essay on Entitlement and Deprivation. Após detalhada análise de todas as condições, ele concluiu que a inanição mortal etíope aconteceu sem qualquer redução anormal da produção de alimentos. O consumo per capita de alimentos, no pico da crise, era bastante normal para a Etiópia como um todo. O fenômeno, ali, só pode ser entendido, segundo ele, em termos de extensas falhas distributivas, que destituíram a população Wollo e a isolaram do mercado. Essa comunidade pastoral “foi dizimada pelo mecanismo de mercado”, dadas as características excludentes da relação que se estabeleceu entre a economia pastoral e a agricultura comercial, diz ele. No Sahel, fatores políticos e distributivos também estão por trás da morte por inanição de milhares de pessoas. “A divisão política da região seca do Sahel impôs obstáculos arbitrários à atividade de pastoreio, reduzindo o escopo das respostas à seca”. Mais do que um problema de recursos, tratava-se de criar mecanismos institucionais que permitissem uma transição eficaz, dos métodos tradicionais da vida econômica, à economia de mercado. O problema alimentar da população do Sahel, afirma Amartya Sem, depende crucialmente de um conjunto de fatores institucionais, afetando o acesso à comida, através da produção e do comércio, havendo espaço para ações corretivas. “O que é preciso não é garantir disponibilidade de alimentos, mas assegurando as condições para obtê-lo”. Em Bengala e Bangladesh, a história se repete, com ligeiras variações de fatores específicos, mas seguindo as mesmas lógica e dinâmica.

É claro que parte do problema é escassez de renda. Mas essa insuficiência de renda está, muitas vezes, diretamente relacionada à estrutura de desigualdade de direitos e oportunidades da sociedade. “A capacidade de uma pessoa de obter alimento – na verdade de obter qualquer commodity ela queira adquirir ou manter – depende da estrutura de direitos que governa a posse e o uso na sociedade. Depende do que a pessoa tem, que possibilidades de troca lhe são oferecidas, o que obtém de graça, e o que lhe é tomado”, conclui Sen. O que a pessoa tem e as condições de troca a que tem acesso, têm a ver com seu acesso a capitais e terras, ao mercado de trabalho e à renda que, por sua vez, está associado às barreiras geográficas, étnicas ou religiosas, que regulam o pleno acesso aos direitos na sociedade. No Brasil, não é por acaso, que 70% dos pobres são negros, por exemplo.

O que a pessoa obtém de graça, tem a ver menos com políticas assistencialistas, do que com subsídios. Os ricos, no Brasil, recebem mais bens e serviços gratuitos do que os pobres e têm mais acesso ao barateamento subsidiado de seus investimentos. É o caso da educação superior de qualidade gratuita e de financiamentos subsidiados pelo BNDES aos investidores, por exemplo.

O que é tirado das pessoas tem a ver, principalmente, com taxação. É bom lembrar que qualquer produto que o pobre compre, de alimentos a vestuário essencial, tem imposto embutido no preço. E a fração do preço destinada ao imposto, retirada da renda do pobre, representa uma proporção muito maior dessa renda, do que essa mesma fração representa na renda do rico. Lógico, rendas diferentes pagando a mesma alíquota de imposto. No Brasil, portanto, os pobres pagam muito mais impostos que os ricos; os assalariados do mercado formal de trabalho são os únicos que pagam imposto de renda para valer; as empresas são beneficiadas por deduções, créditos e devoluções de impostos. Resultado: tiram mais do pobre, que dos ricos. Como os pobres recebem menos gratuidades que os ricos, devolvem menos impostos pagos aos pobres, que aos ricos. Esta é a segunda fonte principal de nossas desigualdades. A primeira, é a discriminação racial.

Correções de desigualdades e a equiparação dos direitos de acesso e das oportunidades teriam o condão de reduzir a pobreza no Brasil a um resíduo que, embora irremovível, seria de reduzida dimensão, e poderia ser tratado com políticas de assistência, financiadas por recursos já disponíveis na economia e na sociedade. Não é que não tenhamos problemas de pobreza e escassez no país. Temos. Mas esses problemas são, fundamentalmente, resultado de mecanismos institucionais concentradores de renda e bloqueios sócio-culturais ao acesso às oportunidades de ascensão e realização pessoais. Não decorrem de insuficiências econômicas graves de nossa estrutura produtiva, nem, necessariamente, de falhas de mercado. As raízes da destituição se encontram em nossa economia política: em nosso sistema institucional.

Significa dizer que não há um confronto necessário por recursos entre o “social” e o “ambiental”. O confronto é entre os privilégios dos ricos e as necessidades da maioria. Não é um jogo de soma-zero entre humanos e animais ou vegetais. É um jogo de expropriação entre as pessoas humanas. As outras espécies são inocentes nessa tragédia. Como se diria no jargão ambientalista, nossa pobreza é antrópica.

Além do mais, a redução da pobreza, em si, melhora o meio ambiente. Transfere a pressão sobre o meio ambiente das vias informais e extensivas de apropriação, para as vias formais e institucionais. Uma sociedade sem pobreza significativa, é uma sociedade em que quase todos têm acesso a moradia, água tratada, esgoto, coleta de lixo, emprego fixo. Uma sociedade mais educada. Se não houver contingentes pobres sendo expulsos para a “fronteira verde”, as pressões ambientais passam a ser aquelas para cujo enfrentamento existem soluções de mercado e de políticas públicas menos traumáticas e menos onerosas. A redução dessa pobreza tende a reduzir o desmatamento e as queimadas. Por outro lado, quanto mais universal o acesso dos brasileiros aos meios de prover, por conta própria, uma existência de qualidade e dignidade, maior a realização do potencial produtivo de nossa sóciodiversidade e maior o nosso mercado consumidor. Logo, maiores as chances de produzirmos mais riqueza e reduzirmos ainda mais a pobreza. Diga-se, de passagem, que não precisaríamos expandir nossa fronteira agropecuária, se houvesse bom tratamento dos solos, respeito às matas ciliares e investimento em ganhos “naturais” de produtividade. Hoje, o maior problema de distribuição de terras diz respeito à terra tornada inservível por seu mau uso. A reincorporação das terras destruídas às terras produtivas, salvaria um bom pedaço da Amazônia.

Também não é verdade que destinar recursos à preservação e proteção de espécies, signifique “tirar” recursos que serviriam para alimentar e educar nossas crianças pobres. Primeiro, porque a maioria dos recursos hoje destinados a atividades ambientais não vem dos impostos. Na verdade, o aporte de recursos privados e voluntários, nacionais e internacionais, ao meio ambiente, reduz a pressão fiscal e evita que o setor público “tire” mais renda dos pobres, elevando os impostos. Segundo, porque se não mudarmos o quadro institucional que gera desigualdade e destituição em nossa sociedade, se não removermos os bloqueios sócio-culturais ao acesso universal a boa qualidade de vida, qualquer recurso aplicado em favor dos pobres tende a ter baixíssima produtividade, perdendo-se a maior parte dele.

Por isso defender a preservação dos muriquis e das araras, não significa desviar recursos da comida ou da educação de nossas crianças, para alimentar e estudar nossos animais. Essa é uma visão ingênua, que beira à demagogia e que não tem eficácia alguma. Com ela, manteremos nossas crianças na pobreza e na ignorância e perderemos nossa biodiversidade. A luta pela preservação ambiental e a luta pela melhoria da qualidade de vida da população é a mesma luta. Se resolvermos os problemas que produzem e reproduzem nossos problemas sociais, entraremos em um estágio de avanço societário em cuja estrutura de valores fundamentais está, com prioridade, a preservação ambiental. A luta geral é pela sobrevivência a longo prazo de todos, em um patamar básico de qualidade de vida que seja bom e digno para todos. Esses dois objetivos – sobrevivência de todos com qualidade de vida – depende das condições ambientais de preservação da vida humana com qualidade. Sacrificar o meio ambiente no curto prazo, em nome do bem estar, também no curto prazo, significa sacrificar as chances de sobrevivência com bem-estar de nossos sucessores. Os chamados “serviços da natureza” não são inesgotáveis e os sinais de sua escassez já estão à vista.

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