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Ato franciscano

Será que o governo mentiu para o bispo? Dom Cappio, graças a Deus, a tempo, acordou a opinião pública e reabriu o debate sobre a transposição do São Francisco.

7 de outubro de 2005 · 19 anos atrás
  • Sérgio Abranches

    Mestre em Sociologia pela UnB e PhD em Ciência Política pela Universidade de Cornell

A greve de fome do bispo Luiz Flávio Cappio já produziu um resultado concreto fundamental: alertou a opinião pública sobre uma decisão arbitrária do governo, que não obedece aos critérios mínimos de segurança e qualidade decisória em projetos de alto risco e longo prazo. O São Francisco está muito mais debilitado do que o religioso, após dez dias sem comer. O presidente Lula faltou com a verdade ao dizer, em carta, que a revitalização estava em andamento, não as obras de transposição, logo que soube da greve de fome. O bispo e todos que conhecem o projeto sabem que não é assim. O que tem sido feito sob o nome de revitalização é pífio e a obra só não está andando porque espera a licença do IBAMA. Mas os quatro batalhões do Exército que se encarregarão da obra, esperam apenas o comando para começar. Agora, parece que alguém faltou, de novo, com a verdade, ao convencer dom Cappio a encerrar seu protesto. Dom Cappio entendeu – como saiu na imprensa antes do desfecho – que o governo não prolongaria o prazo o debate do projeto, antes de iniciá-lo.

O governo acenou com uma emenda constitucional para vincular 0,5% do orçamento à revitalização nos próximos 20 anos. Se confirmado, estaria prometendo o que não pode cumprir. Não tem sustentação parlamentar para aprovar nada, muito menos emenda constitucional, que mexe com recursos. Além disso, trata-se de um valor arbitrário, que não reflete um programa consistente técnica, científica e administrativamente. Não bastassem as dificuldades políticas, provavelmente intransponíveis, nessa crise de governança que vive e viverá, por muito tempo, o governo Lula, a vinculação, se aprovada, além de sua duvidosa valia ambiental, representaria mais um equívoco fiscal.

Vincular recursos do orçamento é a pior prática fiscal possível. É por isso que todos os serviços públicos estão à míngua, quanto mais se vincula, menos sobra para prioridades novas. Quem tem recursos garantidos desperdiça. Não tem incentivo para gastar responsavelmente, nem compromisso com resultados. A saúde tem vultosos recursos vinculados. Alguém acha que o serviço público de saúde vai bem? Tem prefeitura, que recebe muito mais do que precisa e é obrigado a gastar. Compra aparelho de tomografia computadorizada, que fica na caixa por que não tem quem opere e dinheiro para contratações não tem. Tem município que recebe menos do que precisa. Fundos vinculados engessaram o orçamento todo e estão tornando o país ingovernável, incentivam a ineficiência e alimentam o clientelismo e a patronagem.

Além disso, revitalizar após agredir mais não é solução. Não é lógico, nem sensato, mexer primeiro no fluxo e no regime de águas de um rio “ferrado”, como o definiu o ministro Ciro Gomes, da Integração Nacional, para depois tentar revitalizá-lo. Sabe-se mais sobre os problemas do rio, suas causas e providências necessárias, do que sobre os impactos negativos potenciais da transposição. Evidência da forma descuidada com que os problemas do rio estão sendo encarados pelo governo é a promessa, contida no acordo com dom Cappio, de “intensificar as obras de revitalização” Se é preciso intensificá-las, é porque são insuficientes. Pior ainda, revitalização de rios não é como consertar estradas – que o governo também não faz – que se possa fazer aos pedaços. Requer um plano rigoroso, de ações múltiplas e articuladas entre si, para se ter alguma chance de sucesso. E o sucesso não é garantido. Estudos sobre os rios dos Estados Unidos e da França dão conta de que não há registro de um programa de revitalização de rios de grande porte, como o São Francisco, que tenha sido técnica, política e administrativamente viabilizado e do qual já haja resultados mostrando sucesso significativo. Há registro de revitalização de bem sucedida de alguns rios de pequeno e médio porte, a partir de programas muito mais complexos que isso que o governo chama de revitalização. Demoraram décadas e custaram muito dinheiro.

O governo Lula prima pelo mau comportamento. Semana passada mesmo deu vários exemplos. O presidente se reúne, em palácio, com a bancada de seu partido, incluindo os deputados indicados para cassação por corrupção, para discutir uma estratégia que pode terminar em pizza ou renúncia esperta. Presidentes são magistrados, não fazem isto. Foi por ter aberto o gabinete presidencial para a conspiração de acobertamento do escândalo de Watergate, que Richard Nixon sofreu processo de impeachment e teve que recorrer à renúncia esperta. Se não cumprir a palavra empenhada com o bispo, terá sido um papelão. A ministra do Meio Ambiente assina um artigo em O Globo, junto com o ministro Ciro Gomes, no qual a defesa do projeto, que chama de interligação de bacias, para fingir que não está sendo feita a transposição, sem que nele haja um novo argumento sequer, com base técnico-cientítica, que responda às objeções sensatas e aos alertas responsáveis, que vêm sendo feitos, desde que o governo considerou que já havia discutido demais e cedido demais. Como se estivéssemos discutindo uma medida provisória rotineira e as objeções não passassem de picuinhas da oposição. A ministra Marina Silva estava impedida, moral, política e administrativamente, de assinar um artigo desses, antes que o órgão licenciador, subordinado a ela, tornasse público e oficial seu parecer definitivo. Não se trata, portanto, de um projeto, que, por seu porte, prazo de maturação, custo e riscos envolvidos e interferir no pacto federativo, devesse ser tratado como questão de estado. É apenas mais um programa da pilha de programas do governo, tratado com a mesma teimosia que o programa Fome Zero, que continua existindo no nome, mas na verdade foi abandonado por que era incompetente e inviável, como foi dito ao governo e ele se recusou a admitir, até que quebrou a cara.

Do IBAMA, que tem primado por cometer erros fragorosos no licenciamento – e já tem no seu passivo uma floresta primária de araucária que ninguém viu, só na hora de destruir – sabe-se que está prestes a conceder o nihil obstat, de resto antecipado pela ministra, para o que pode ser a pena de morte para o São Francisco. Licencia, inadequadamente, mas não existe, hoje, no marco institucional brasileiro um mecanismo eficaz que permita responsabilizá-lo pelas conseqüências danosas de suas decisões desavisadas. Deveria haver. O Brasil precisa desenvolver mecanismos ágeis para responsabilizar e punir agências e administradores públicos que decidem erradamente, sobretudo quando existe opinião séria e fundamentada contrária à decisão. Regulação pressupõe, antes de tudo, transparência, contencioso e o que, em inglês, se denomina accountability: os agentes reguladores têm que prestar contas à sociedade de suas decisões e responder por elas, judicial e administrativamente. Erros regulatórios óbvios e graves sem retificação e sem punição fazem parte da vasta cadeia de impunidades que destruíram a confiança dos brasileiros nas instituições, nas leis e no governo. É equivocada a forma com que o governo vem tratando a transposição. Acho que, para terminar, vale repetir alguns argumentos.

Não existem elementos suficientes para apoiar a afirmação feita pelo ministro Ciro Gomes de que “o projeto chegou num ponto em que é possível dizer que 12 milhões de pessoas serão beneficiadas no Nordeste, sem que um brasileiro sequer seja prejudicado”. Tenho lido opiniões técnicas, científicas e políticas abalizadas, que me convenceram de que o estado atual de conhecimento sobre os impactos prováveis do projeto sugerem o oposto: neste momento é impossível garantir que não haverá prejuízos significativos, ambientais e sociais, se a transposição for executada da forma como está prevista. Como é, também, impossível garantir que haverá 12 milhões de beneficiados, pois não basta, apenas levar a água até eles. É preciso garantir o acesso, inclusive no preço, e habilitá-los a usá-la produtivamente. É mais provável que se beneficiem uma meia dúzia de grandes exportadores do que esse milhão de dúzias de pessoas, que aparece, também, como principal âncora do artigo de Ciro Gomes e Marina Silva. Um número de beneficiados que parece muito inflado e o governo não apresenta a memória de cálculo de sua estimativa, para que se possa examinar s hipóteses em que se baseou. Do jeito que está, cheira a pura demagogia. Mais uma chantagem social para ganhar o debate na emoção e não na razão.

Qualquer governo, na segunda metade de seu mandato, deve avaliar de forma muito criteriosa, projetos que tenham efeito de longa duração e, portanto, transcendem seu mandato. Se não há consenso técnico sobre o balanço de custos/benefícios do projeto e se há dúvida razoável sobre seus riscos, o governo deve gastar o tempo necessários recolhendo evidências técnicas e científicas que possam formar esse consenso. Está mais do que óbvio que não há consenso técnico, nem político, em relação à transposição. O dissenso político ficou claro na Carta Aberta de Belo Horizonte ao Presidente Lula, assinada pelos governadores de Minas Gerais, Bahia e Sergipe e pelo Comitê da Bacia. Nela pedem ao presidente da República que não leve adiante as obras do projeto, enquanto não forem apuradas as denúncias existentes e amplamente negociado um pacto com os estados da bacia doadora. A contrariedade técnico-científica está registrada em inúmeras publicações da comunidade científica e tecnológica. Existem fundamentos para dúvida até mesmo em documentos como o “Diagnóstico Analítico da Bacia do São Francisco e sua Zona Costeira”, do Comitê da Bacia, que se pode encontrar no site da ANA – Agência Nacional de Águas, que alerta para o estado de degradação do rio e seu entorno. A discordância culmina no ato extremo de dom Luiz Flávio Cappio.

Um projeto desses só deveria ser implementado se tivesse assegurado seu financiamento integral, de modo a evitar os riscos associados ao seu emperramento futuro, sobretudo porque, se não for integralmente realizado, pode causar danos irreparáveis. Esse projeto não está viabilizado financeiramente. A crise fiscal estrutural do estado torna duvidosa a implementação integral e no prazo adequado de obras dessa envergadura, com recursos públicos: orçamentários e de endividamento. O projeto tem um orçamento de R$ 4,5 bilhões, dos quais menos de 14%, em torno de R$ 620 milhões, estão sendo contratados ou em execução. É pouco provável que o cronograma das obras seja cumprido e o orçamento não tenha que ser aditado. Quando se examina os valores e os prazos para que cada parte do projeto esteja concluída, se vê, com clareza, que a parte prejudicada seria, precisamente a de saneamento e revitalização do rio. Nem o governo, nem o ministro Ciro Gomes, podem garantir que seja integralmente realizado. Até porque, parte importante do projeto ficaria para depois de 2006 e, ainda mais agora, eles sequer têm a garantia de que serão reconduzidos em 2006.

O fato de que é a revitalização que tem menos garantias de ser plenamente executada, fere o princípio elementar da segurança desse programa. Seria razão suficiente para o IBAMA só conceder licença para transposição após concluídas e avaliados os resultados da revitalização. Procedimento cautelar mínimo, dadas as conhecidas condições críticas em que o rio se encontra – reconhecidas pelo próprio Ministro da Integração Nacional. Qualquer órgão ambiental competente e responsável impediria qualquer nova interferência no fluxo e no estado atual da bacia do São Francisco, antes que se obtivessem provas medidas de sua recuperação, em decorrência do plano de revitalização. Hoje, a prioridade para a revitalização é um discurso vazio e uma promessa vã que embromaram dom Cappio.

Tristes dias estes que vivemos, de brumas e de bromas.

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