Reportagens

“A conta chegou. E não chega só no Rio Grande do Sul”, crava ambientalista

Em conversa sobre o Pampa, Juliano Bueno falou sobre o desafio de conservação em um estado quase todo antropizado. Discussão sobre biomas marcou 2º dia do seminário organizado pelo IDS

Gabriel Tussini ·
8 de maio de 2024

Nesta terça (7) foi realizado o segundo dia dos “Seminários Bússola para a Construção de Cidades Resilientes”, evento organizado pelo Instituto Democracia e Sustentabilidade (IDS). Após o primeiro dia tratar do tema Água e Alimentos, desta vez os palestrantes falaram sobre Biodiversidade e Biomas. Nas exposições, eles abordaram o papel dos municípios na conservação da fauna e da flora, visando o bem-estar das comunidades urbanas e rurais. As transmissões são feitas no canal do IDS no YouTube, sempre das 18h às 20h.

Foram chamados 6 representantes de organizações que atuam em cada um dos biomas brasileiros. Da Amazônia, falou Sila Apurinã, presidente do Grupo de Trabalho Amazônico. Na sequência, foi a vez Juliano Bueno, do Instituto Arayara, falando sobre o Pampa e especialmente sobre os impactos, causas e responsabilidades pela atual tragédia climática vivida pelo Rio Grande do Sul. Em seguida vieram Fabio Bolzan, da SOS Pantanal; Malu Ribeiro, da SOS Mata Atlântica; Francisco Campello, da Fundação Araripe, falando sobre a Caatinga; e Marcos Woortmann, do próprio IDS, abordando o Cerrado.

Após os seminários de segunda e terça-feira, os Seminários Bússola trarão os temas “Clima, Cidades e Comunidades”, nesta quarta; “Democracia, Diversidade e Dados”, na quinta; e, fechando a semana, “Economia Verde, Equidade e Empregos”, na sexta-feira.

Amazônia

Abrindo o evento, a teóloga Sila Apurinã, presidente da rede Grupo de Trabalho Amazônico, frisou a importância da preservação de todos os biomas brasileiros. “A Amazônia não vive sozinha, ela precisa de outros biomas. É importante a gente enfatizar isso: apesar de termos a maior floresta tropical, só a floresta tropical da Amazônia não se sustenta. Nós precisamos que todos os outros biomas estejam preservados”.

“Para a gente ter um novo olhar, para a cidade ser sustentável e preservarmos a biodiversidade do território, nós precisamos ter algumas questões que precisam ser resolvidas. Uma é a questão da própria governança municipal. A gente precisa ter governos comprometidos com a pauta socioambiental. Se não, nós não vamos ter êxito, não vamos ter um município chamado sustentável”, alertou a palestrante.

Segundo ela, muitas secretarias municipais têm seu trabalho engessado pelo acúmulo de atribuições, inclusive de temas bastante diferentes. “É secretaria de meio ambiente, de agricultura, de pesca e de turismo. Uma pessoa pra trabalhar 4 temas é impossível. Esse acúmulo de pastas para uma só pessoa… ela não sabe se derruba, se planta, se proíbe, se fiscaliza. Isso é muito preocupante, e por isso, por falta dessa governança, os municípios começam a ter grande desmatamento, grandes queimadas”, avaliou.

Para Sila, superar o cenário de “perdas irreparáveis” pela perda de biodiversidade e vidas humanas por conta do descaso com o meio ambiente e as mudanças climáticas depende de diálogo entre a sociedade civil e o poder público. Mas isso só seria possível com uma mudança de postura da classe política. “Se nós continuarmos elegendo pessoas que não tem responsabilidade socioambiental, nós vamos chorar cada dia mais. E a pecuária vai aumentar, o garimpo vai aumentar, os poços de petróleo vão aumentar, o gás vai aumentar, a pobreza vai aumentar, tudo isso vai aumentar”, disse.

“Se não for por política partidária, política de governança que tenha esse compromisso socioambiental, nós vamos avançar muito pouco. É a realidade que nós estamos vivendo nas cidades amazônicas, a realidade que estamos vivendo no nosso território. É o total descaso e o total descompromisso com a vida. E não é só a vida de povos e comunidades tradicionais, é a vida como um todo. Tanto no interior quanto na cidade”, disparou.

Pampa

A imagem clássica do Pampa, próximo a Quaraí (RS). Foto: Fabio Olmos.

Em seguida, o engenheiro ambiental Juliano Bueno, diretor do Instituto Arayara lembrou a destruição vivida pelo bioma gaúcho, o que ajuda a explicar as causas de tragédias ambientais como a que acontece atualmente no estado. “Esse é o bioma mais antropizado e destruído do país. Nessas últimas décadas, nós tivemos uma perda de 32% de todo o território”, afirmou. 

“E agora, nesses últimos anos, houve, infelizmente, a destruição de políticas públicas e de marcos regulatórios sobre a proteção do bioma Pampa no estado do Rio Grande do Sul. E a gente está assistindo exatamente um pedaço desse caos climático. Nesse momento a gente passa por uma dor agigantada, de ter centenas de pessoas que deixaram de ter as suas vidas. São mais de 350 cidades atingidas no Rio Grande do Sul, fruto também de políticas ambientais e climáticas que foram destroçadas nos últimos anos, e também pelo governo do estado do Rio Grande do Sul, que fez mais de 400 flexibilizações e mudanças na legislação para proteção dos biomas”, relembrou.

“Ao falar do bioma pampa, hoje, a gente não consegue falar só disso. A gente tem que falar da consequência, da destruição desse bioma, o que isso significa, hoje, na vida das pessoas. O que isso significa enquanto desafio climático para todos nós brasileiros. O que isso significa em relação a quando destruímos qualquer bioma, seja Cerrado, bioma Amazônico, Mata Atlântica”, disse Bueno, citando a morte de uma familiar no que classificou como “desastre, crime ambiental, porque parte dele foi fabricado por aqueles que destruíram esses biomas”.

“Quando a gente fala de crise climática, quando nós falamos dessa crise que se estabelece, eu falo de outra crise, que é a crise de políticas públicas ambientais do nosso país e dos nossos estados. Essa conta chega duramente para todos nós. Para alguns mais. É como aquelas imagens que parecem de ficção científica, em que cidades inteiras desapareceram”, afirmou. “Essas políticas mal feitas geraram todos esses contornos de dor e de sofrimento que se estabelecem hoje no Rio Grande do Sul, mas para não deixar de falar, para todos nós brasileiros, que estamos assistindo aquilo que há décadas falamos”, apontou. 

“Nós cobramos das autoridades públicas nas últimas décadas, mas infelizmente a surdez e a incoerência tomou conta de muitos. E a conta chegou. E não chega só no Rio Grande do Sul”, resumiu o palestrante.

Pantanal

Fabio Bolzan, coordenador técnico-científico da ONG SOS Pantanal, iniciou alertando para o aumento de ondas de calor no bioma, apontando a forte correlação disso com o aumento no número de queimadas na região. Mostrando dados e gráficos, o ecólogo afirmou que “invariavelmente, e independente do modelo que se utilize para projetar as ondas de calor, a gente aqui no Pantanal vai sofrer mais do que já estamos sofrendo com as ondas de calor, e as consequências dessas ondas de calor” para a biodiversidade e populações humanas.

Para os espaços urbanos, Bolzan sugeriu a criação e fortalecimento de planos de arborização urbana, com áreas verdes e parques. Ele apontou que os municípios “mais estruturados” costumam ter esses planos, mas que “são planos rasos, que muitas vezes não saem do papel”. “Pensando em ondas de calor, a vegetação urbana, os espaços verdes e parques, além da arborização nas margens de vias, são extremamente importantes para amortecer essas ondas”, apontou.

Ele apontou ainda a necessidade de um planejamento urbano “inteligente”, pensando em situações como o “alinhamento de ruas com a posição do sol” e outras medidas que costumam ser “ignoradas ou pouco trabalhadas“ nos planos diretores ou de urbanização. “Isso precisa ser trabalhado de forma mais técnica, com capacidade mais elevada de aterrissar o conhecimento que já existe em políticas públicas, e isso passa também por quem está sentado nas cadeiras, que tomam as decisões”.

“O Pantanal vai sofrer. Esse evento ocorrido em 2019/20/21 muito provavelmente vai se repetir. Nós estamos numa situação alarmante de seca, que está só começando. O que era pra chover não choveu. E isso ainda tem uma correlação com outros biomas, como a Amazônia. Os rios voadores da Amazônia fazem chover no Pantanal. O Pantanal é um bioma com baixíssima quantidade de chuvas, depende de águas de fora dele”, alertou.

Mata Atlântica

A jornalista Malu Ribeiro, diretora de políticas públicas da ONG SOS Mata Atlântica, alertou para os impactos da expansão urbana para a biodiversidade e as populações humanas que vivem no bioma. Lembrando as chuvas torrenciais que atingiram São Sebastião (SP), no ano passado, Ribeiro afirmou que a tragédia poderia ter sido ainda pior se não fossem as florestas preservadas nas cercanias da cidade. “Por sorte nós tínhamos o Parque Estadual da Serra do Mar, uma área protegida de Mata Atlântica, o que impediu que essa tragédia fosse ainda maior do que o registrado”, disse.

“É importante ressaltar que um estudo feito sobre a resiliência que a floresta em pé traz para as áreas suscetíveis a deslizamento de encosta, enchentes e assoreamento de rios, analisando áreas da região Serrana do Rio de Janeiro, 80% das áreas que não tiveram óbitos, perdas econômicas, de vidas humanas, de atividades, enfim, estavam em áreas protegidas”, apontou, frisando a importância da queda do desmatamento no bioma.

Ela alertou, porém, para o avanço das monoculturas e atividades econômicas prejudiciais ao meio ambiente sobre zonas de transição entre a Mata Atlântica e outros biomas, áreas que “detém grande biodiversidade”. Segundo ela, são setores econômicos que “infelizmente usam a bandeira do segundo setor, de ESG, de uma visibilidade de investimentos na agenda ambiental, mas que no bastidor atuam para flexibilizar a legislação ambiental brasileira”.

Mata Atlântica apresenta a maior concentração de carbono orgânico por hectare de solo, estima levantamento inédito do MapBiomas. Foto: Marcelino Dias/CC 2.0

“A gente ouve muito que ‘falar do desmatamento na Mata Atlântica é obrigação’. Mas essa não é a realidade quando nossos municípios passam a fazer licenciamento ambiental. Quando a lei geral do licenciamento ambiental entra na agenda política. E quando, na agenda política do Congresso Nacional, a área que é mais prejudicada nas trocas, negociações e acordos para votações é a nossa área ambiental e de clima”, resumiu.

“Nós precisamos, agora nessa agenda eleitoral, qual é o real valor da nossa biodiversidade. O que significa quando a gente faz a restauração florestal e devolve uma mata, para área de preservação permanente, inferior à necessidade que os ecossistemas e os ambientes precisam, e que é uma floresta silenciosa”, disse, alertando também para as zonas urbanas “sem uma área verde” espalhadas pelo Brasil, gerando problemas sérios, como as ondas de calor e até problemas psicológicos causados pela falta de arborização nas cidades.

“A gente precisa internalizar a criação de unidades de conservação, parques lineares, áreas verdes, arborização urbana e soluções baseadas na natureza para minimizar esses impactos do clima e ter alguma condição de não termos uma falência do modelo de megametrópoles, que depende de outras regiões para ter água, que exporta poluição, exporta problemas”, concluiu Ribeiro.

Caatinga

O engenheiro florestal Francisco Campello, diretor-técnico da Fundação Araripe, alertou para a importância do manejo adequado e sustentável dos recursos naturais para a preservação ambiental. “O medo do uso dos nossos biomas fez com que a gente começasse a se afastar deles. E a natureza, quando ela se manifesta, a gente vê que nós somos totalmente incapazes”. “Todos os reflexos de comportamentos que nós temos, sejam positivos ou negativos, são frutos da nossa ação sobre o meio ambiente”, disse.

“O nosso grande desafio é saber usar. No caso da Caatinga – isso é muito parecido com a questão do Pampa –, são ambientes mais frágeis do ponto de vista do processo de restauração. A Caatinga e o Cerrado, especialmente, exigem muito esforço de restauração. Para a gente ter uma ideia, um custo aproximado de recuperação por hectare da Caatinga está entre R$ 25 mil a R$ 40 mil, dependendo da condição do ambiente, do solo e da precipitação. Então é um custo extremamente oneroso para o Estado ou para a própria sociedade. Então o que a gente precisa fazer é saber usar para evitar esse custo”, avaliou.

“A Caatinga está presente na matriz energética. Infelizmente está presente de forma inadequada, irresponsável, oportunista. Mas poderia estar presente de uma forma propositiva, racional, sustentável, inclusiva, de baixo custo e renovável, através das técnicas de uso sustentável que são tão conhecidas e presentes no nosso marco legal. Mas a gente insiste no oportunismo, nas fragilidades institucionais, e quando a gente quer promover o uso. E a ação de comando e controle é maior por conta dos medos. E a gente não avança no uso sustentável, mas não consegue controlar o desmatamento”, exemplificou.

“Quando a gente não olha para o papel que a nossa biodiversidade exerce sobre a nossa economia, essa demanda é atendida de forma marginal, de forma negativa”, apontou o palestrante. “Em vez de eu ter uma matriz energética inclusiva, sustentável, renovável e de baixo custo, eu tenho uma agressão ambiental para fazer com que 40% do parque industrial do Nordeste continue funcionando à base de biomassa florestal, e somente 4% de toda essa demanda de aproximadamente 30 milhões de metros de lenha vem de base sustentável”, criticou.

Cerrado

Marcos Woortmann, coordenador de políticas socioambientais do IDS, lembrou que o bioma já perdeu 51% de sua área, um dado que classificou como “muito grave”. Segundo ele, por ser um bioma geologicamente mais antigo, o Cerrado tem muitas “microadaptações” específicas, que vão se perdendo com seu encolhimento. “O nível de endemismo do Cerrado é gigantesco. Tem espécies que existem num único vale de um único riacho do Cerrado brasileiro. Isso é um patrimônio inestimável para os próximos séculos da humanidade. E não é só um patrimônio em termos de fármacos ou de usos que se possa dar, mas em termos de vida”, apontou.

Nesse cenário de perdas irreparáveis, o palestrante criticou a falta de proteção ao bioma. “Hoje o Cerrado é profundamente ameaçado. Porque quando nós falamos de combate ao desmatamento, combate aos incêndios, uma coisa é combater aquilo que é ilegal. Outra coisa é vermos um cenário, cientificamente, e falarmos ‘olha, isso aqui é impossível continuar da forma como está’. Porém a legislação atual permite que continue. O Cerrado é uma das áreas menos protegidas de todos os biomas brasileiros. Apenas 2,09% do Cerrado – são dados oficiais – são protegidos em Unidades de Conservação. Uma quantidade ínfima”, alertou.

Woortmann frisou a importância do Cerrado como conector de todos os biomas brasileiros, à exceção do Pampa. É por ele que passam os rios voadores amazônicos, antes de chegar a outras regiões, e também dele que nascem 1/3 das águas que chegam à Amazônia. “Espero que pelo menos agora os representantes políticos abram seus olhos. Porque enquanto as consequências eram pagas apenas pelas populações periféricas, por exemplo, e não pela quebra de safra, era possível ainda adotar posturas negacionistas. Só que agora até mesmo os produtores rurais têm dificuldade em securitizar suas safras, por exemplo, e isso envolve todo o equilíbrio macroeconômico do Brasil”, criticou.

“Ou seja, o Cerrado é uma peça-chave de todas as décadas pela frente, do que o Brasil vai ser ou não vai ser. Se o Brasil vai se tornar um país justo, equitativo, sustentável e com uma mínima qualidade de vida, isso passa pelo Cerrado. Ou se o Brasil vai, infelizmente, tornar-se um país árido, seco, improdutivo e cheio de refugiados ambientais por áreas que não vão ser mais habitáveis, isso passa pelo Cerrado”, apontou o palestrante, falando da importância do Cerrado para evitar a formação de desertos no país, como acontece em outras regiões do mundo cruzadas pelo Trópico de Capricórnio. “Ou o Cerrado será preservado, ou São Paulo pode se tornar um deserto em 100 anos”, alertou Woortmann.

Para alcançar essa preservação, o palestrante apontou a importância de se banir os incêndios, especialmente criminosos, e da restauração de nascentes em parceria com a população e os pequenos produtores da região. “Esse tipo de gestão comunitária tem um papel muito importante, porque ela gera pertencimento, identidade e, o mais importante de tudo: por ela ser feita com baixíssimo recurso, o valor de fato engajado nesse tipo de atividade, quando a gente fez na calculadora, deu 3% do valor empenhado em compensações florestais” realizadas pelo poder público, que segundo o dirigente do ICS, chegam a 98% de perda das espécies plantadas, um gasto que ele classificou como “ineficiente” e “queimar dinheiro”.

“Quando a gente fala em racismo climático, não adianta a gente defender algo enquanto princípio e não trazermos políticas públicas nítidas e claras para poder endereçar esse problema. E quando a gente fala em requalificação urbana, fazer jardim de infiltração, ciclovias, todas essas coisas, tudo isso é muito importante. Mas todas essas são políticas pensadas primeiro, geralmente, para as áreas do centro, e não da periferia”, afirmou.

“Quando a gente pensa em hortas urbanas, viveiros comunitários, quando a gente pensa no encontro do mundo rural com o mundo urbano, nós estamos falando de periferias sempre. E isso é muito importante ser sempre, no nosso olhar de sociedade civil, uma prioridade. Inclusive porque a cidade vai sentir aquilo que está presente no bioma onde ela está inserida, e é partir sobretudo da área periurbana [encontro do rural com o urbano] que esse bioma chega na cidade”, explicou.

  • Gabriel Tussini

    Estudante de jornalismo na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), redator em ((o))eco e interessado em meio ambiente, política e no que não está nos holofotes ao redor do mundo.

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Comentários 1

  1. O sistema baseado na exploração, acumulação e desperdício, dar sinais do fim!