Esperteza tem perna curta. Principalmente no mundo globalizado. Mais ainda na sociedade da informação. O Brasil acha que não. Pensa que pode usar truques da era do telégrafo, no tempo da mudança climática. Vem tentando, desde o início das negociações da Convenção do Clima, aparecer como o mocinho do pedaço e, de quebra, ter tratamento de pobre coitado. Ofereceu duas sugestões na discussão da política do clima. Uma era brilhante e, numa negociação com o EUA, virou o Mecanismo de Desenvolvimento Limpo (MDL). A outra, nas negociações para o Protocolo de Kyoto, era uma versão climatizada do truque gasto de posar de subdesenvolvido para escapar de suas obrigações coletivas.
A delegação brasileira propôs que as metas de emissão de gases estufa dos países industrializados fossem baseadas em sua contribuição histórica para o aquecimento global. Os que tivessem dado maior contribuição teriam metas mais exigentes do que aqueles que tivessem menor contribuição. A convicção dos diplomatas brasileiros, certificados por cientistas de esquerda ou nacionalistas – hoje em dia no Brasil dá quase no mesmo, uma grande parte da esquerda brasileira é menos esquerda e mais nacional-desenvolvimentista – era de que o Brasil receberia uma meta mínima e não compulsória. As metas exigentes ficariam com países como Inglaterra, Alemanha e Estados Unidos, berços das revoluções industriais. Achavam que os gases estufa só saíam das chaminés das fábricas. As chaminés e os carros de um país de industrialização recente, pobretão como o Brasil, teriam uma contribuição histórica mínima.
Falando sério
Como estavam falando com gente séria, foram levados a sério. Criou-se um desafio metodológico com a necessidade de quantificar a cota-parte da sujeira de cada um. Um problema elementar é como avaliar a responsabilidade de cada um na produção de um problema, o aquecimento global, que no passado não era reconhecido como tal. A proposta brasileira não foi aceita. Mas as partes signatárias do Protocolo admitiram que o assunto deveria ser melhor estudado, sob o guarda-chuva do “Subsidiary Body for Scientific and Technological Advise” da Convenção das Nações Unidas sobre Mudança Climática.
Em 2002, a Convenção do Clima encomendou a vários grupos de pesquisa um teste da proposta brasileira, usando seus respectivos modelos climáticos. Os resultados, apresentados em um seminário com especialistas, do qual participou, como representante do Brasil, o físico Luiz Pinguelli Rosa, não foram considerados conclusivos. Criou-se uma rede de grupos de pesquisa, “MATCH – Modelling and Assessment of Contributions to Climate Change”, para aprofundar a investigação. O trabalho continua. Essa rede já produziu um artigo científico cooperativo, cuja principal contribuição era mais ou menos de se esperar: a chave dessa investigação está nas escolhas que se fizer para definir o modelo de medida. Essas escolhas obviamente sofrem influência de fatores que não se circunscrevem à razão científica e terminam por ser escolhas de alguma forma políticas. Certamente não existe um critério consensual para escolher: indicadores, o espaço de tempo da análise (quantas décadas para trás), qual o método a ser utilizado para escolher os gases que serão considerados para atribuir responsabilidade na determinação do efeito estufa, que base de dados usar.
Ciência política
A escolha de indicadores tem que ser orientada pelo objetivo da Convenção do Clima, que é estabilizar a concentração de gases estufa “em um nível que evite interferência antropogênica perigosa no sistema climático”. Já dá para perceber o tamanho do problema. Junte-se dez cientistas em uma mesa para discutir o que é perigo e eles se aposentarão antes de chegar a um consenso. Eu dou um curso sobre risco político no Instituto Coppead de Administração, da UFRJ, que começa com a discussão das noções de perigo, ameaça, risco. Dá para ficar um ano só nisso. Perigo tem uma dimensão filosófica, tem uma dimensão psicológica – pessoas diferentes percebem diferentemente o mesmo grau de perigo real (mais quem define perigo real?) – tem uma dimensão científica e tem, obviamente, uma dimensão política.
No plano filosófico, dá para discutir infinitamente a ética do perigo, para determinar qual o limite máximo de risco moralmente admissível para a coletividade correr, em nome das gerações futuras, na busca de seu próprio bem-estar.
Psicologicamente falando, o perigo não existe. Existe a percepção individual e/ou coletiva do perigo. O que é perigo para uns, não é para outros. O jornalista Mark Bowen conta duas historinhas ilustrativas sobre risco em seu livro Thin Ice – Unlocking the Secrets of Climate in the World’s Highest Mountains (New York, Henry Holt, 2005). Ele acabou nesse esporte radical de cobrir pesquisa climática, por acaso. A editora de uma revista ligou para ele dizendo que já haviam investido muito na cobertura de uma história que misturava aventura e pesquisa, para a qual haviam contratado uma repórter. A missão era acompanhar o climatologista Lonnie Thompson, da Universidade Estadual de Ohio, que ia obter amostras de gelo profundo no topo do monte Nevado Sajama, a mais alta montanha da Bolívia. Mas a repórter recuou um dia antes da viagem, porque não tinha experiência em altas montanhas e ficou preocupada com uma expedição a altitude tão elevada. Bowen é montanhista e fora selecionado a partir de uma matéria numa revista de montanhismo. Topou e acabou completamente seduzido pela história da pesquisa climática em gelo de altas altitudes, que levou a seu livro de leitura fascinante. Taí, uma recuou, sensatamente, diante do risco a que se exporia. O outro, com mais informação sobre o montanhismo e propensão à aventura, não via tanto risco, com razão, nem achava que montanha alta e picos nevados fossem um perigo do qual tivesse que se afastar.
Mas Bowen encontraria, em seguida, sua própria medida de risco. Foi informado pela mulher de Lonnie Thompson, Ellen Mosley-Thompson, que ele havia partido para a Bolívia levando um balão especial, de ar quente, desenhado por um experiente balonista. A idéia era inflar o balão no topo da montanha, o mais alto lançamento de balão da história, e usá-lo para levar o gelo coletado mais rapidamente até as câmeras frigoríficas e aos caminhões que o transportariam até o aeroporto. “Eu decidi rapidamente que eu queria estar em pé no topo, quando o balão decolasse, mas de jeito algum eu embarcaria naquela coisa”, conta ele em seu livro. É isso aí.
Agora, vai esperar que os cientistas se entendam a respeito do “perigo antrópico” para o sistema climático. Até porque, independentemente da noção de risco envolvida, não há critério científico que permita dizer que existe um indicador melhor que os outros. “Nenhum dos indicadores seria a escolha obviamente preferível”, dizem os autores do artigo coletivo. A escolha do indicador envolve duas dimensões, que elevam sua complexidade, dizem eles. Uma dimensão diz respeito à data das emissões, se a fonte é velha ou nova emissora. A outra, tem a ver com a emissão de gases de longa-vida ou de curta-vida. Indicadores que descontam rápido para trás, dão peso baixo às emissões mais antigas. Indicadores que não “olham” para frente superestimam os gases de vida-curta. Esses efeitos metodológicos têm peso geopolítico brutal.
Os carrascos do tempo
A escolha do horizonte temporal da análise tem um impacto enorme nas contribuições, dizem os autores. Escolher, uma data anterior a 1890 – 1760, por exemplo – aumenta a cota-parte de responsabilidade pela concentração de gases dos países que começaram a emitir mais cedo. EUA diminui sua responsabilidade, Inglaterra aumenta, com a escolha. Escolher uma data posterior tem o efeito contrário. Outro fator com carga geopolítica mais destrutiva que uma penca de Katrinas.
A escolha das fontes de gases é outra complicação. A esperteza da proposta brasileira só resiste ao teste dos gases do uso de combustíveis fósseis. A inclusão de dióxido de enxofre (SO2) aumenta a contribuição da Ásia. A inclusão do uso da terra aumenta a participação da Ásia, da América Latina e da África e sufoca a esperteza brasileira em gases emitidos pelo desmatamento, pelas queimadas, e pela agropecuária.
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