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O Fim do Desenvolvimento Sustentável

O desenvolvimento sustentável foi uma idéia de antes da crise climática global. Foi bom enquanto durou. O paradigma mudou: o tema não é a sustentabilidade, é o desenvolvimento.

31 de março de 2007 · 18 anos atrás
  • Sérgio Abranches

    Mestre em Sociologia pela UnB e PhD em Ciência Política pela Universidade de Cornell

O documento “Uma Nova Era para o Desenvolvimento Sustentável”, do International Institute for Environment and Development, traz a seguinte mensagem: “o conceito de ‘desenvolvimento sustentável’ foi amplamente endossado ao longo das duas últimas décadas, no entanto, o desenvolvimento continua longe de sustentável”. Não obstante essa constatação entre óbvia e sombria, o texto é otimista e afirma que se abre uma nova era para o desenvolvimento sustentável.

É mais que uma nova fase para o mesmo modelo, ainda que melhorado. O paradigma mudou. Na verdade, não houve, nem haverá desenvolvimento sustentável. Certamente não na concepção original da idéia. Porque ela se assentava numa visão ecológica de equilíbrio, sempre difusa demais para comandar um processo de aglutinação de preferências pela sustentabilidade, suficientemente forte para se contrapor às preferências por mais e imediato bem estar. Nunca foi uma questão ambiental ou ecológica. Sempre foi uma questão de economia política. Da dinâmica de interesses materiais que dá forma às escolhas coletivas e substância às maiorias, por um lado, e da superioridade de determinados interesses sobre outros, expressos nos anéis de poder que vinculam o estado a determinados interesses corporativos na sociedade.

O conceito de desenvolvimento sustentável ganhou corpo com o Relatório Brundtland, de 1987. Mas ele já era uma preocupação e sua premissa básica já estava enunciada muito antes. Era parte, por exemplo, da idéia de “limites ao crescimento”, proposta por Donella Meadows e seus associados, no livro publicado em 1972 com esse título.

Era parte de um projeto do Clube de Roma sobre “As Dificuldades da Humanidade”. Nos comentários finais a esse relatório, que se tornou livro famoso e leitura obrigatória para todos que se debruçam sobre a questão do desenvolvimento, o Comitê Executivo do Clube de Roma, explica a finalidade do projeto, em termos que obviamente são precursores do conceito de desenvolvimento sustentável. Dizem o seguinte: “Nós queríamos explorar o grau pelo qual [nossa] atitude sobre o desenvolvimento é compatível com as dimensões finitas de nosso planeta e com as necessidades fundamentais de nossa sociedade mundial – da redução das tensões sociais e políticas à melhoria da qualidade de vida para todos”.

Já naquela época, havia clareza sobre dois fatos contraditórios. Primeiro, que o desenvolvimento mundial era desigual e andava, entretanto, em uma senda convergente que levava à insustentabilidade, dada a disparidade entre a demanda estimada por recursos, energia, ar e água e a capacidade finita de provisão do planeta. O segundo, que as mudanças necessárias na base técnica da sociedade eram viáveis à luz da capacidade científica e tecnológica já acumulada e do dinamismo do sistema científico e tecnológico mundial. Uma terceira conclusão soava precoce naqueles anos “pré-globalização”: a mudança necessária só poderia ser alcançada “por meio de uma estratégia global”.

Quando se faz uma retrospectiva séria do que se disse, se estudou e se avançou no conhecimento daquilo que o Clube de Roma chamava de “a problemática mundial”, em confronto com o quanto se fez para evitar que a brecha entre a demanda humana e a capacidade de provisão planetária, não há razão alguma para conforto. Na verdade, os alertas dos anos 70, continuam atuais como se tivessem sido escritos como uma introdução ao último relatório do IPCC. O conselho do Clube de Roma, por exemplo, diz o seguinte em seus comentários de conclusão: “quanto mais próximo chegarmos dos limites materiais do planeta, mais difícil de resolver ficará o problema”. Donella Meadows e seus colegas dizem o seguinte na conclusão do relatório: “Não agir, para resolver esses problemas é o equivalente a adotar ações vigorosas. Cada dia de crescimento exponencial traz o sistema mundial mais perto dos limites últimos desse crescimento. (…) Por causa das defasagens no sistema, se a sociedade global esperar até essas restrições se tornarem inequivocamente aparentes, terá esperado demais”.

Modernizando-se um pouco a linguagem, é isso que os climatologistas estão nos dizendo, hoje, sobre a mudança climática global. Mas há uma diferença dramática, entre o alerta de limites ao crescimento e o anúncio da mudança climática global. Na década de 70, no primeiro estudo sobre limites físicos ao crescimento, os pesquisadores diziam que “não podemos dizer com certeza quanto tempo mais a humanidade pode postergar o início do controle deliberado do seu crescimento, até que percamos a chance de controlá-lo. Suspeitamos, com base no conhecimento hoje existente das restrições físicas do planeta que essa fase de crescimento não pode continuar pelos próximos 100 anos”. Acertaram uma data muito próxima daquela que seria fixada pelos climatologistas 30 anos depois. Hoje, o consenso científico é de que o ponto de virada, se continuarmos não agindo, deve se dar entre 2030 e 2050. Naquela época, o erro não foi na extensão do prazo, mas no tipo de limite que atingiríamos. E nem se pode de qualificar como erro, porque o conhecimento disponível não permitia por o foco no verdadeiro limite. Para eles o limite seria na provisão de energia e alimento e nos efeitos da poluição sobre a capacidade agrícola. Agora sabemos duas coisas novas. Atingiremos o limite muito antes de terminarem nossas reservas de petróleo e carvão e a redução da nossa capacidade agrícola já será efeito da crise, não gatilho da crise.

Essa mudança é fundamental e definitiva. Não se trata mais de um desafio de escassez de recursos, que sempre pode ser respondido com tecnologia e ganhos de produtividade. Trata-se de uma falha técnica intrínseca ao nosso padrão de desenvolvimento, centrado no uso intensivo e extensivo de recursos que liberam carbono. Carbono, claro, como metáfora para emissões de gases estufa em toneladas equivalentes de carbono. O nosso desenvolvimento dependente de carbono produziu limites físicos de uma natureza inesperadamente mais dramática, porque interfere com forças que produzem conseqüências irreversíveis e incontroláveis. E parte da suspeita dos autores de “Limites” se cumpriu. Para a primeira fase da mudança climática global, esperamos mais do que podíamos e teremos que viver em um mundo com seus regimes climáticos em alteração de agora em diante. Vamos falar claro: não se trata de esperar 2030 para ver os sinais da mudança global. Nós já os estamos experimentando e a freqüência desses sinais vai aumentar ano a ano, até que uma nova configuração climática fique evidente. Portanto, aquele desafio dos anos 70 foi superado e ultrapassado. Agora teremos que investir na adaptação à mudança inevitável e agir com vigor para evitar cenários piores.

Quando se toma a mudança climática global como premissa da discussão sobre desenvolvimento, altera-se radicalmente a lógica de sua economia política. No caso do projeto de desenvolvimento sustentável havia duas forças que diluíam em grande medida a força daqueles que desejavam uma mudança de padrão, que se tivesse resultado, provavelmente teria evitado a mudança climática agora em curso e inevitável. Como se tratava de uma tese a respeito de limites de provisão de recursos – e dos riscos de danos advindos da poluição – os países mais poderosos e ricos e os grupos mais poderosos e ricos em todos os países, tinham confiança de que poderiam transferir as restrições para os mais pobres, mundial e domesticamente. Segundo, com tecnologia seria possível controlar a natalidade, a poluição e aumentar a produtividade e a eficiência no uso dos recursos, de modo a empurrar os limites ao crescimento para bem longe.

E foi o que se fez, ou não? É evidente que houve melhora da poluição na maioria dos países ricos e na maioria dos hoje considerados emergentes, à exceção de Índia e China, entre os grandes. O esforço de eliminação do passivo ambiental das antigas nações do eixo soviético foi notável. Basta ver o que a Alemanha fez após a unificação. O crescimento populacional está em queda em praticamente todo o mundo. Um terço dos países do mundo tem hoje taxas de crescimento abaixo da reposição. A taxa global, hoje, é de 1,41% ao ano. Dobramos a população em 40 anos, entre 1960 e 1999. Agora, a esta taxa, seriam necessários 63 anos para dobrar a população, novamente. Mas isto não vai acontecer. As taxas continuarão a cair e a população global vai provavelmente se estabilizar antes que dobre. Também aumentamos imensamente a eficiência no uso de recursos. Mesmo de combustíveis fósseis. Basta comparar os carros dos anos 70, com os de agora. Mas, ainda assim, ficamos longe da sustentabilidade. Porque não há parâmetro suficientemente claro, que gere a percepção de risco capaz de produzir um movimento não apenas de opiniões, mas de interesses na direção da sustentabilidade. É uma meta, concretamente, inatingível.

Com a mudança climática, não é assim. Existem parâmetros claros o suficiente. As evidências de sua manifestação têm efeito dramático na percepção de risco e na dinâmica de interesses. Basta ver o efeito do Katrina na opinião pública e nas empresas no EUA. Está havendo mudança na configuração dos interesses econômicos de agentes importantes. Vejam o que está acontecendo com as empresas de seguros em relação ao risco de desastres naturais. Hoje, conhecemos o risco. Amanhã, conheceremos mais. Em cinco anos, o grau de percepção do risco climático será seguramente exponencialmente maior que o de hoje, que já é muito maior que o de cinco anos atrás.

Isso ainda não começou a gerar quedas globais significativas de emissões. As emissões totais de carbono por uso de combustíveis fósseis cresceram 66%, entre 1972, data de publicação de “Limites ao Crescimento”, e 2003. Entre 1994 e 2006, a concentração de CO2 na atmosfera, medida na estação de Jubany, na Antártica, subiu de 356,72 ppm para 378,74 ppm. Um crescimento de 6,2%. Se crescer mais 6%, bate no primeiro nível de risco, que é 400 ppm.

Mas essa nova percepção já levou alguns países a mudanças e investimentos significativos. Suécia e Nova Zelândia, por exemplo, estão em busca de um padrão econômico de baixo carbono. A Inglaterra acaba de anunciar que vai entrar nesse jogo. A Holanda investe pesadamente na adaptação à mudança iminente quando, com a elevação do nível do mar, diques e canais se tornarão inúteis. Parte do país terá que se tornar flutuante, porque terá que viver sobre a água.

É possível, até provável, que atinjamos a marca de 400 ppm, que pode levar a cenários razoavelmente duros de mudança climática, com maior intensidade em determinadas áreas do planeta. É claro que para evitarmos os piores cenários teremos que mudar significativamente os padrões de produção e consumo que caracterizaram o século XX. A dinâmica da economia política do século XXI provavelmente obterá essa mudança. Começam a se constituir interesses poderosos em torno da economia de baixo carbono. Há uma onda crescente de consumidores se afastando dos produtos carbono-intensivos e criando demanda por produtos de baixo-carbono. As indústrias do carbono já têm visualizado uma trajetória poente em seus modelos estratégicos, se não mudarem seu foco tecnológico. Muitas começam a abrir novas áreas, em um novo padrão-carbono, com o objetivo de tê-las como ‘core activities’ no futuro.

Há uma argumentação persuasiva que repete aquelas análises do passado da sustentabilidade, dizendo que parte da solução é possível de se obter com as tecnologias já disponíveis. Um relatório recente da conceituada consultora McKinsey, “Uma Curva de Custo para a Redução dos Gases Estufa”, afirma que seria possível, tecnicamente, abater 26,7 gigatoneladas de gases estufa, a um custo relativamente baixo. Mas essas soluções de baixo custo estão muito fragmentadas por setores e regiões, exigindo ação global. Segundo o relatório, poderia ser um grande desafio político. Mas, por outro lado, o incentivo implícito em soluções de menor custo, para a primeira fase de um programa, que tenha como meta manter as emissões em 400 ppm, pode mudar a economia política do problema.

Um complicador é que metade dessas soluções de mais baixo custo estão nos países em desenvolvimento. Um fundo de financiamento de preservação florestal, por exemplo, poderia dar resultados promissores. Menos da metade dessas soluções de baixo custo estariam nos setores de energia e indústria. A maioria está nos setores de florestas, agricultura, transportes e construção. A implicação é que é possível começar por uma via de menor sacrifício e menor custo, criando espaço para as mudanças que exigirão mais das sociedades e maior investimento de empresas e governos. Essas, sim, pressupõem mudanças mais profundas de padrão de consumo e produção.

As vias para uma nova economia política começam a se abrir. O novo padrão de desenvolvimento não precisa sacrificar nem a taxa, nem a qualidade do desenvolvimento, mas certamente terá que mudar a cesta de bens e serviços à disposição da sociedade. Envolverá, certamente, a reserva de uma parte do investimento para enfrentar o desafio da adaptação a novos regimes climáticos. A diferença específica, que se constitui em uma vantagem em relação à era do desenvolvimento sustentável, é que o risco é mais concreto, mais perceptível e emergirá fisicamente – e com conseqüências muito duras – mais rapidamente do que os limites de viabilidade de uma nova economia de baixo carbono. O medo nos ajudará a vencer o perigo de perder a oportunidade de evitar o pior. E não vai nos sair nada barato o tempo que já esperamos.

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