Uma semana antes dos cientistas do IPCC se reunirem em Valência – onde começaram a discutir, nesta segunda-feira, o texto do documento-síntese dos relatórios deste ano – um grupo de cientistas peso pesados, entre eles climatologistas que fazem parte do IPCC, se reuniu na universidade Harvard para discutir geoengenharia. O que chamou atenção na reunião é que nesse grupo, vindo de várias universidades, a convite de Harvard e da universidade de Calgary, havia muito poucos adeptos da geoengenharia. A grande maioria era composta por cientistas que a rejeitam como uma alternativa séria no combate à mudança climática. Que eles tenham se disposto a ouvir seus defensores e discutir a sério o investimento em pesquisa nesse campo é uma novidade que merece toda consideração, porque ela tem muitos significados.
Os dois mais importantes são os seguintes: cresce o número de cientistas que não acredita que as conversações sobre o pós-Quioto levem a algum resultado concreto e que considera remotas as chances de que o quadro político dominante na maioria dos países responsáveis pelas emissões de gases estufa permita que se adotem as atitudes e as políticas necessárias, em tempo de evitar o pior cenário. Ao lado dessa descrença nas instituições políticas e na possibilidade de mudanças de comportamento suficientes e na velocidade adequada, crescem as evidências – e o número de cientistas convencidos por elas – de que o aquecimento global acelerou dramaticamente nos últimos anos. O maior volume de observações na Antártica e a oportunidade aberta pelo ano antártico permitiram a constatação de que o aquecimento e o degelo superaram as previsões mais pessimistas. Os estudos que estão em curso na Groenlândia também mostram uma alarmante aceleração do processo de deterretimento da camada de gelo com a formação e ampliação de “rios de gelo”, que podem levar ao desprendimento de grandes massas de gelo, que cairiam no mar, elevando mais rapidamente o nível de suas águas.
O campo da geoengenharia tem sido farto em idéias e parco em respeito, como muito bem o definiu Eli Kintisch para a revista Science. Portanto, que seja repentinamente o objeto de uma séria discussão somente para convidados, em Harvard, por 50 cientistas de ponta, durante dois dias é um feito sob todos os aspectos surpreendente. A geoengenharia, como se sabe, imagina a possibilidade de controlar o clima com tecnologia, operando fisicamente sobre os principais fatores do aquecimento global. Uma das idéias em discussão seria a redução da incidência de raios solares sobre a Terra, aumentando o efeito albedo das nuvens, fazendo com que refletissem mais da luz solar, bloqueando sua chegada à terra.
A geoengenharia vinha sendo duramente combatida por cientistas de alto calibre, mas desde que alguns figurões da ciência passaram a considerá-la como alternativa, ela entrou para agenda das discussões científicas sérias. O principal responsável por isso foi o prêmio Nobel de química, Paul Crutzen que, em julho de 2006, publicou um artigo editorial na revista “Climatic Change”, defendendo injeções de enxofre na estratosfera para criar aerossóis de sulfato capazes de bloquear a luz do sol, anulando o efeito-estufa do carbono emitido pelos seres humanos. O artigo circulou nos meios acadêmicos em 2005, foi publicado em 2006 e fez compreensível sucesso na imprensa. O Realclimate, blog de climatologistas dedicado a explicar a ciência do clima com precisão científica e de forma acessível aos leigos,comentou o artigo de Crutzen em duas ocasiões. Na mais recente, Raymond Pierrehumbert, importante professor de Ciências Geofísicas da Universidade de Chicago, chama atenção para os riscos de manipulação do clima, sem conhecimento suficiente que permita prever efeitos colaterais, por exemplo, na termodinâmica alterada de um planeta com menos irradiação solar e mais carbono na atmosfera. Ou a possibilidade de que aerossóis não-homogêneos afetem a oscilação do Atlântico Norte, suscitada por um estudo sobre a seca no Sahel, publicado nos Anais das Academias Nacionais de Ciências dos Estados Unidos (PNAS), em 2005. Chama atenção, ainda, para o problema mais elementar: os gases de efeito estufa têm uma permanência de 100 a mais de 1000 anos na atmosfera, enquanto esses aerossóis não durariam mais que alguns anos.
No primeiro comentário para o Realclimate, Gavin Schimidt, da NASA, conta que o artigo de Crutzen seria publicado, de forma pouco usual, juntamente com vários comentários de outros cientistas, porque “o pedigree das soluções de geoengenharia não é bom e elas são geralmente abraçadas por pessoas que não desejam reduzir as emissões de gases-estufa”. Mas reconhece que Crutzen tem credenciais científicas muito mais respeitáveis, e não pode ser sumariamente desconsiderado, como mais um aventureiro que confunde ficção científica com ciência.
Crutzen parte de um fato trivial em seu artigo. Há evidência de que aerossóis de sulfato realmente bloqueiam os raios solares. É o que fazem os aerossóis emitidos por termelétricas a carvão, porém, com um elevado custo associado por causa dos danos dessa poluição à saúde e ao meio ambiente. Reconhece o óbvio impasse nas políticas de mitigação da mudança climática e se pergunta porque não estudar outras saídas, pelo menos como “Plano B”, para o caso, nada improvável, de esse impasse não ser rompido a tempo por todos os grandes emissores do planeta.
Pierrehumbert, no comentário no Realclimate, diz que “poderia fazer sentido usar uma pequena porção do aerossol que seria jogado na troposfera por velhas termelétricas a carvão e injetá-lo diretamente na estratosfera, onde ele restauraria o efeito de resfriamento perdido, ao mesmo tempo que (espera-se) causaria menos danos que o que era jogado na baixa atmosfera. Ir além disso, no entanto, e “tentar neutralizar toda a geração desregulada de CO2 do próximo século com aerossóis de engenharia é muito perigoso”.
Mas Crutzen não está entre os que acham que o investimento em geoengenharia deveria substituir a necessária conversão da economia global a uma economia de baixo carbono. Em seu artigo diz que “de longe a solução preferencial para resolver o dilema dos formuladores de políticas deveria ser a redução das emissões de gases-estufa”. Mas, continua, “deve-se reconhecer que até agora as tentativas nesse sentido têm sido um retumbante fracasso”. Por isso, argumenta, “embora não seja nem de longe a melhor solução, deveríamos explorar e debater a utilidade de aumentar o albedo da Terra e, por esse meio esfriar o clima, adicionando na estratosfera aerossóis que reflitam a luz solar, como uma forma de superar a situação de impasse presente e, adicionalmente, neutralizar o forçamento decorrente das emissões crescentes de CO2 ”.
Foi exatamente o que fizeram os cientistas reunidos em Harvard, muitos deles oponentes conhecidos da geoengenharia. O próprio Pierrehumbert já anunciava esse encontro em seu comentário no blog do clima, dizendo que todo cientista gosta de pensar nessas coisas e Harvard estaria hospedando essa reunião de cientistas para discutir a geoengenharia baseada em aerossóis, e “eu devo dizer que estou esperando ansioso por esse dia”. Embora a considerando uma idéia perigosa, ele reconhece que a ciência progride pelo “espírito da liberdade de investigação e seria anátema dizer que há determinadas coisas sobre as quais não se deveria pensar”. Onde ele se afastava de Crutzen era que ele ia até o “livre pensar”, mas afirmava que há determinadas coisas que, “uma vez pensadas, não deveriam ser construídas”.
A reunião, que teve pesos pesados da climatologia, como James Hansen, da NASA, Kerry Emmanuel, do MIT, Mark Cane, de Columbia, e o próprio Pierrehumbert, de Chicago, não levou a decisões formais, mas chegou a um consenso: deve haver pesquisa séria sobre a possibilidade de geoengenharia climática. Vários participantes fizeram questão de deixar claro que o consenso é que deve haver pesquisa sobre geoengenharia, não que se deva fazer geoengenharia na prática. Pierrehumbert confessou que mudou um pouco sua posição e agora pensa que se deve considerar seriamente a geoengenharia como um complemento às políticas mais efetivas de redução de emissões. Daniel Schrag, da universidade de Calgary, que ajudou a organizar o encontro, diz que queria trazer os cientistas do “mainstream”, do centro de excelência da ciência, para o debate sobre geoengenharia, para o qual torciam o nariz, mas teme que ela se transforme na saída fácil. Reconhece, entretanto, que a aceleração do degelo na Antártica e o aumento significativo das emissões em 2005 e 2006, estão forçando a mão dos cientistas e está ficando difícil descartar soluções mais drásticas. “Vamos fazer isso [geoengenharia] se começarmos a temer que algo realmente ruim aconteça, como o colapso da cobertura de gelo da Groenlândia”, reconheceu em entrevista a Kintisch. Esse seria um dos “tipping points” apontados pelos cientistas, que poderiam virar a tendência da mudança climática bruscamente e gerar uma tragédia de grandes proporções. No caso de colapso da calota de gelo da Groenlândia, a água do mar poderia se elevar em até 7 metros, em média, uma catástrofe inenarrável.
O princípio da precaução diz aos cientistas que não deveriam adotar a geoengenharia até que seus efeitos colaterais fossem conhecidos e pudessem ser antecipados com precisão. Mas, diante do risco de um holocausto climático, a precaução desaparece: quem seria capaz de esperar o pior, já previsível, acontecer, a tentar a sorte com a geoengenharia?
Dos 50 cérebros presentes na discussão de Harvard, poucos discordaram da conclusão de que se deve pesquisar seriamente a geoengenharia. A maioria concordou, porém, que o limite é a pesquisa, e não se deveria ir além, para desenvolver soluções na prática. Quem conhece a história das políticas públicas e do desenvolvimento científico e tecnológico sabe que esse movimento de parte importante da cúpula da ciência climática muito provavelmente fez com que a geoengenharia atravessasse o seu Rubicão. Ela saiu definitivamente do território das especulações de baixa reputação para o centro da agenda científica global. No médio para longo prazo, a geoengenharia provavelmente fará parte do arsenal que a sociedade humana usará para mitigar o aquecimento global.
Até 2020 veremos tantas mudanças no enfrentamento da mudança climática e testemunharemos tantas evidências de que ela já está em curso e acelerando, com conseqüências dramáticas, que teremos recorrentemente a sensação de estarmos vivendo um filme de ficção científica. Ora, nos parecerá estarmos em um desses filmes-desastre, pertos do fim do mundo. Ora, nos veremos como dentro de uma dessas histórias em que a ciência é capaz de coisas extraordinárias e que a salvação do planeta está garantida pelos avanços monumentais da ciência e da tecnologia. O início dessas duas histórias, que provavelmente se desenrolarão em simultâneo pelas próximas décadas, já está sendo vivido por nós.
O que temos visto, inclusive na nossa região, é uma amostra ainda moderada, embora dolorosa, do que vem por aí no capítulo dos desastres. As chuvas na Venezuela (1999, 2005), inundação dos Pampas argentinos (2000-2002); seca na Amazônia (2005); tempestade de granizo na Bolívia (2002) e em Buenos Aires (2006); o furacão Catarina no Atlântico Sul (2004). Isso para não falar na temporada de furacões de 2004 e 2005 no Atlântico Norte; na onda de calor na Europa, em 2003; na pior seca na Austrália em 1000 anos, com algumas regiões chegando ao sexto ano consecutivo de seca; no desaparecimento visível do gelo nos Alpes e nos Andes, ou no esquentamento notável da Antártica.
A própria idéia de uma geoengenharia capaz de bloquear parte dos raios solares, resfriando o planeta artificialmente, discutida por cientistas reais, na Harvard real, é uma boa amostra dos avanços da ciência que fazem muitos imaginarem que tudo não passa de ficção científica. Assistiremos a grandes descobertas científicas na área climática e veremos inúmeras inovações científicas e tecnológicas serem adotadas, em energia e outras formas de mitigação do efeito estufa. Ficará cada vez mais difícil olhar o noticiário, na mídia que for, e não ficar com a sensação de que é mesmo ficção científica, ainda que sem os ETs.
Uma vez, conversando com Carl Sagan, quando fazia o doutorado na universidade Cornell, perguntei a ele sobre as idéias extraordinárias sobre ciência e tecnologia que lia nas histórias de ficção científica. Ele me disse que muitas delas eram especulação alucinada e numerosas outras fariam parte do cardápio científico e tecnológico do nosso futuro. Quem sabe, sabe.
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