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Coisa de pele

Exposição em museu de Nova Iorque mostra que o ativismo ambiental está perdendo uma causa. O ser humano continua fascinado pela idéia de se vestir de animal.

19 de janeiro de 2005 · 20 anos atrás
Beleza macabra.

Só para lembrar. Em 2002, ativistas da organização não-governamental Pessoas pelo Tratamento Ético de Animais (PETA, na sigla em inglês) interromperam um desfile de lingerie no qual Gisele Bündchen cobria-se com um casaco de pele. Os radicais protestaram contra a modelo brasileira com cartazes que diziam: “Gisele: Escória vestida de pele”. A coisa rendeu. Meter-se numa pele de bicho parecia crime ultrapassado, mais ou menos como o racismo. No entanto, por coincidência, usar cobertura de bicho – peles ou penas – como roupa ou enfeite está longe de ser algo que já era.

Humanos, apesar da PETA, continuam fascinados, alguns diriam obcecados, pelo material que envolve o corpo de outras criaturas que existem na face da Terra. Uma prova disso está em exposição que estreou em dezembro no Metropolitan Museum of Art. “Selvagem: a moda indomada” expõe pelo menos um século inteiro da ligação entre selvageria e moda. Não poderia ser considerada mais politicamente incorreta. Quem foi ou é gente de ponta no mundo da moda está lá – Roberto Cavalli (um amante da vida selvagem que patrocina a mostra), Christian Dior, Yves Saint Laurent, James Galanos, Jean Paul Gaultier, Karl Lagerfeld, Thierry Mugler, Zandra Rhodes, Arnold Scaasi, Elsa Schiaparelli, Valentino, Gianni e Donatella Versace.

Aliás, o próprio catálogo da exposição aponta que o ser humano, depois de passar um tempo contido em sua paixão por vestir o que vestem os bichos, voltou a soltar a franga e dar vazão ao seu desejo de pelo menos ficar parecido com onça, raposa, foca ou arara. Aparentemente, fantasiar-se de bicho deixou de ser um problema. Deve ser verdade. Ninguém apareceu para protestar contra a exposição. Aqui no Brasil, a PEA (Projeto Esperança Animal), numa óbvia tentativa de ficar parecido com a PETA, anunciou fazer um apitaço contra o uso de peles no São Paulo Fashion Week no último sábado. Brasileiro gosta é de fazer carnaval. Enquanto o metropolitan, em Nova York, exibe a controvérsia com estilo, nossos ambientalistas tupiniquins resolvem esculhambar o maior evento de moda do país com atitudes estudantis.

Na mostra estão mais de 100 trajes e acessórios criados a partir da incrível variedade de couros, peles de animais, penas e até materiais sintéticos que imitam a estética com que os bichos desfilam pelas florestas e montanhas. A fauna representada é imensa. Entre as aves, até pena de galinha tem. Dos grandes felinos, talvez só mesmo o leão escape. O resto – leopardo, tigre, jaguar, linces – comparece. Há até espaço para a morbidez explícita, traduzida em adereços feitos com aves empalhadas e cabeças de animas enfeitando chapéus e bolsas.

Como nota novamente o catálogo da exposição, a briga entre quem é contra ou a favor de usar peles e penas é antiga. O texto traça um paralelo entre o debate atual e as leis criadas na Idade Média para regular a caça com o objetivo de restringir o uso de peles por parte das pessoas mais abastadas. O excesso era considerado amoral, uma espécie de exibicionismo intolerável. Um lado bom desta exposição é que ela não se furta a discutir o atual debate sobre o uso de adereços ou roupas feitos primordialmente de matéria-prima animal.

Expõe inclusive símbolos do movimento anti-peles europeu, como o pôster da organização britânica Lynx que mostra uma mulher com um chapéu de peles na cabeça e um cachorro despelado ao redor do pescoço. A cena é chocante e de fato existe uma dimensão de crueldade nesse fascínio humano sobre peles. Quase um tapa com luva de pelica.

Por outro lado, os ativistas pró-animais deveriam relaxar um pouco e entender que o fascínio existe, que nem sempre ele é produto de devastações ambientais e que, mesmo quando é, produz algum tipo de prazer, ainda que seja tão somente estético – o que já é muita coisa. Duvido que eles não achem legal deitar-se sobre edredons ou travesseiros preenchidos com penas de ganso, ou admirar a beleza de uma bolsa feita de pele de cobra. No fim das contas, como todos nós, eles também são humanos. Eu não tenho casacos de pele. Nem teria.

Quem vive abaixo da linha do equador se restringe a adereços como brincos de penas ou coisa parecida (herança dos índios). Mas, numa ocasião em São Paulo, vesti um casaco de pele de uma imigrante polonesa e me senti o máximo, quase tão poderosa quanto Marlene Dietrich. Ela guardava o casaco há anos, como se fosse uma jóia rara, um pedacinho da sua história. Na verdade, acho que vesti um personagem e não um casaco de pele. Puro glamour. Constatei que mulheres “cobertas” podem ser tão ou mais sensuais e imponentes que mulheres de barriga de fora.

Independente da posição de fulano ou cicrano sobre o tema, a exposição no Metropolitan merece ser vista. Nem que seja pela Internet. Seu tom é sarcástico e ela tem muita coisa a dizer sobre o tema.

Elizabeth Taylor envolta em peles em “Butterfield 8”.

Pelo lado exclusivo da moda, ela ressalta seu aspecto teatral. O absurdo real. A arte retratando o comportamento humano. Logo na entrada da exposição, uma modelo se balança num trapézio envolvida por uma cascata de plumas de avestruz cor de rosa. É quase circense. Na última galeria da mostra, o horrendo chapéu de crocodilo de Stephen Jones. Pode-se até achar feio. Mas não dá para negar a dramaticidade das duas cenas.

O tom dramático da mostra é reforçado por fotógrafos que clicaram celebridades usando peles, como Ava Gardner num traje de banho com estampa de oncinha, Elizabeth Taylor envolta em peles em “Butterfield 8” e Sean Combs em seu elegante casaco de raposa branca. (O verdadeiro, feito por Nija Furs, também é exibido).

Cada seção é enfeitada com fotografias de pinturas e objetos que remetem ao comportamento humano com relação às peles. O catálogo procura dar embasamento histórico à eterna procura do homem por uma pele adicional. Talvez isso possa explicar o carnaval!
Um tema importante nessa mostra é o da mulher como caçadora “pós-moderna”, um conceito feminista adotado por estilistas e desenhistas de moda do fim do século 20. Estimulado por ficções românticas como a das caçadoras amazonas e “A bela selvagem”, um conceito da heroína nativa da “Idade da Razão”, projeta uma fusão sexy do bruto e do refinado, do civilizado e do selvagem.

Nada mais justo e coerente. Nada que nos espante. Afinal, somos todos filhos da contradição, da evolução que anda para frente e corre atrás do rabo. Vulneráveis, altruístas, egoístas, falsos moralistas, perdidos no espaço. Circenses e carnavalescos. Com ou sem pele ou fantasia.

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