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Casa de ferreiro…

A penúria dos animais silvestres encontrados num “Centro de Recuperação” sob a guarda do Ibama mostra que o órgão é incapaz de cumprir suas atribuições.

19 de novembro de 2004 · 20 anos atrás
  • Paulo Bessa

    Professor Adjunto de Direito Ambiental da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO)

Recentemente, a imprensa noticiou as precárias condições nas quais se encontram os animais recolhidos ao Centro de Recuperação de Animais Silvestres do Ibama, sediado em Seropédica, Estado do Rio de Janeiro. A notícia é relevante e preocupante, sob diversos pontos de vista. Com efeito, o mencionado Centro de Recuperação de Animais, segundo se informa, foi construído com recursos oriundos da multa aplicada à Petrobrás por ocasião de vazamento de óleo na Baía de Guanabara há alguns anos. A Polícia Federal, atendendo denúncias de abandono e maus-tratos aos animais dirigiu-se ao Centro, encontrando, no local, condições lamentáveis. Alguns ambientalistas chegaram a temer que o local se transformasse em um novo Bwana Park.

Algumas questões merecem destaque: (i) a precária condição dos animais em si; (ii) a falta de recursos do órgão ambiental para o desempenho de suas atividades; (iii) o tratamento policial de uma questão que se refere às políticas públicas e que não encontra solução na mera criminalização; e (iv) a falta de definição do papel do Ibama.

O problema dos maus-tratos a animais é tema de grande repercussão e merece ser tratado de forma criteriosa. Com efeito, o relacionamento dos seres humanos com animais é bastante complexo e, de certa forma, tende à “humanização” de determinadas espécies, que se transformam em uma “elite” animal. Os animais de estimação, verdadeiramente, chegam a ocupar o papel de “membro” da família. Com a acidez crítica e a irreverência que o caracterizam, o multimídia Eduardo Dusek chegou a cantarolar “Eu conheço um garotinho que queria ter nascido pastor alemão”. É fato que, dificilmente, veremos pastores alemães abandonados em vias públicas, como infelizmente é usual com crianças em nosso país. Muito embora o próprio Estado gere uma “dependência química” em tais animais quando os treina para que se transformem em farejadores de drogas ilícitas. O tratamento, certamente, é cruel e sua prática poderia estar enquadrada dentro da própria lei de crimes ambientais! (1)

Os animais silvestres, no Brasil, são propriedade do Estado, competindo à União, por intermédio do Ibama, zelar pela sua segurança e proteção. A tarefa é muito grande e, indiscutivelmente, nem o Ibama nem a Polícia Federal dispõem da estrutura adequada para desempenhá-la a contento. A associação civil RENCTAS há muitos anos vem desenvolvendo ações visando denunciar e coibir o tráfico de animais silvestres que, segundo se informa, é uma das principais atividades ilícitas realizadas internacionalmente e possui conexões com outras formas de crime organizado. Ainda que precariamente, o tráfico de animais silvestres vem sendo coibido, o que tem gerado uma crescente apreensão de animais em aeroportos, portos, lojas, etc. Os animais apreendidos, normalmente em péssimas condições de saúde, são custodiados ao Ibama que, sem recursos, não raras vezes repassa-os para terceiros de boa vontade. (2)

É importante que se alerte o leitor para o fato de que a reintrodução do animal no ambiente natural é extremamente problemática, muitas vezes impossível. Surge daí a necessidade de que existam locais capazes de abrigar tais animais. Veja-se que o artigo 25 da Lei de Crimes Ambientais, dentro da melhor tradição brasileira, estabelece uma obrigação de custódia dos animais apreendidos, mas não estabelece os meios para o seu financiamento. Com isto, reforça-se o surrado adágio de que “o Brasil tem uma das legislações ambientais mais avançadas do mundo”, sem que se examine, efetivamente, a norma e a sua aplicabilidade prática. Entretanto, a norma, abstratamente considerada, serve de bálsamo para muitas consciências que estão preocupadas com a mera exibição, em congressos internacionais, de uma legislação “moderna”, e não com a realidade ou com os próprios animais.

Foi exatamente em um dos centros criados para a custódia de animais capturados que o problema ocorreu. A título de lembrança, permito-me transcrever uma matéria publicada no site do Ministério do Meio Ambiente:

“O ministro do Meio Ambiente, José Sarney Filho, determinou ao presidente do Ibama, Hamilton Casara, que instaure inquérito administrativo para apurar responsabilidades sobre maus-tratos e mortes dos animais no Bwana Park, um zoológico particular localizado em Guaratiba, no Rio de Janeiro. Casara informou que, se constatada negligência ou falta de gerência do setor em Brasília, os responsáveis serão punidos na forma da lei, inclusive com demissões. A comissão de inquérito presidida pelo corregedor José Batista Lima é composta pelo procurador Jurany de Souza Nunes e pelo técnico especializado do setor de fauna João Carlos Alciete Tomé. A comissão já está no Rio de Janeiro. Segundo Casara, a comissão de inquérito apresentará amanhã uma avaliação do caso.

“Para enfrentar o tráfico de animais silvestres, considerado o terceiro mais volumoso do mundo, Casara, também por determinação do ministro Sarney Filho, instalou recentemente a nova diretoria de Fauna e de Recursos Pesqueiros do Ibama. A nova estrutura tem dois objetivos: geração de emprego e renda e combate ao tráfico de animais silvestres. Mas, de acordo com Casara, a modificação administrativa não justifica a demora do Ibama na análise e encaminhamento legal ao relatório da gerência do órgão no Rio de Janeiro, enviado à sede nacional há três meses, dando conta do descumprimento da Lei de Crimes Ambientais praticado pelos donos do Bwana Park. As penalidades da Lei incluem prisão e multa máxima de R$ 50 milhões.

“O presidente do Ibama explicou que, com o cancelamento do registro do zoológico e a interdição da área, os animais serão transferidos para outro local. Para isso, ele já manteve entendimentos com representantes de universidades do país para promover a acomodação adequada dos animais que sobreviveram no Bwana Park.

“O presidente do Ibama informou ainda que o Instituto está realizando um grande levantamento em todo o país para averiguação não só em zoológicos particulares mas de todos os criadouros para detectar a situação dos animais em cativeiro. O Ibama irá, também, reforçar a atuação contra o tráfico de animais silvestres. Por meio do Programa Brasileiro de Proteção à Fauna Silvestre, o Instituto passou a desenvolver ações anti-tráfico compartilhadas com a Polícia Federal, a Infraero, as Polícias Florestais, o Ministério Público e ONGs. O principal alvo do programa são as rotas utilizadas pelos traficantes. O Ibama mapeou todas as regiões brasileiras e identificou os locais de onde saem, por onde passam e para onde vão os animais traficados. Os agentes do Ibama também dispõem de informações sigilosas sobre a forma de atuação e os nomes dos principais traficantes”. (Ibama vai apurar responsabilidades no caso Bwana Park). A notícia é de 2001. Como se vê, três anos depois, o problema se transferiu para dentro do próprio governo e, ao que sei, o resultado dos “competentes inquéritos” então instaurados não veio a público.

O fato é que a falta de políticas ambientais faz com que as questões sejam tratadas pontualmente e sob demanda. Tão logo um assunto seja substituído por outro na mídia, as atenções do órgão ambiental se voltam para a nova matéria e assim sucessivamente. É evidente, portanto, que o Ibama, com recursos escassos e sem a definição de uma política ambiental clara a ser cumprida, não pode dar conta de uma quantidade de problemas que vão desde o licenciamento nuclear até a proteção ao mico-leão dourado. A crescente ampliação das atribuições do Ibama, sem a existência de uma política ambiental clara e, principalmente, sem os recursos para executá-la caso ela existisse, só pode ter como resultado fatos como os que aqui estão sendo apontados e que, infelizmente, continuarão a ocorrer.

Toda esta situação, seguramente, valeria boas lágrimas. É necessário, como lição do episódio, que o Ibama busque cair na real e dimensionar suas atividades dentro dos seus limites orçamentários, de forma que a sua atuação se faça menos espalhafatosa e mais eficiente. Se todo o palavrório gasto com os transgênicos fosse transformado em energia para arrumar a própria casa, certamente a situação não teria se verificado. Enfim, “casa de ferreiro, espeto de pau”.

(1) Lei nº 9.605: Art. 32. Praticar ato de abuso, maus-tratos, ferir ou mutilar animais silvestres, domésticos ou domesticados, nativos ou exóticos: Pena – detenção, de três meses a um ano, e multa. § 1° – Incorre nas mesmas penas quem realiza experiência dolorosa ou cruel em animal vivo, ainda que para fins didáticos ou científicos, quando existirem recursos alternativos. § 2° – A pena é aumentada de um sexto a um terço, se ocorre morte do animal.

(2) Lei nº 9.605. Art. 25. Verificada a infração, serão apreendidos seus produtos e instrumentos, lavrando-se os respectivos autos. § 1° – Os animais serão libertados em seu habitat ou entregues a jardins zoológicos, fundações ou entidades assemelhadas, desde que fiquem sob a responsabilidade de técnicos habilitados.

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